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4 SABRES NO PICADEIRO: A PASSAGEM DE LAERTE PELA

4.1 DO UNDERGROUND AO UDIGRUDI

4.1.2 Os underground comix

No início da década de 60, a indústria de quadrinhos norte-americana estava em frangalhos. Assolada pelo estigma de produto nocivo, as HQ enfrentavam migração maciça de profissionais para outras áreas, cancelamento de séries, fechamento de várias editoras, queda na circulação e concorrência com a televisão, que passara a existir em 90% dos lares, em comparação aos 10% do início da década de 50 (DUNCAN; SMITH, 2009). “Se os quadrinhos sempre foram considerados um produto infantil descartável, agora começava a ser considerado irrelevante.” (GARCÍA, 2012, p. 159).

78 According to the Code, “all scenes of horror, excessive bloodshed, gory or grue-some crimes, depravity, lust,

sadism, [and] masochism shall not be permitted.” The Code even prohibited using the words horror or terror in a title.

Associado a isto, o Comics Code passava a ser visto, pelos profissionais que produziam quadrinhos, cada vez mais como um nó que estrangulava a criatividade. A autocensura reduzira os quadrinhos a produtos voltados exclusivamente para o público infantil (ou, ao menos, ao que estereotipadamente poderia corresponder a esta faixa etária, segundo o discurso hegemônico sobre o assunto). As únicas exceções eram as publicações marginais conhecidas como Tijuana Bibles, que ainda circulavam:

Por volta de 1930, surge o que se denominou como o primeiro quadrinho de protesto contra os padrões éticos vigentes, chamado Tijuana Bibles, também conhecido como “oito-páginas”, porque era um panfleto de oito páginas. Os temas tratados se relacionavam com figuras bastante conhecidas do público, personagens de ficção como Popeye, ou da vida real como Gandhi; eles eram retratados em ambientes pornográficos, o que era uma afronta para a época. (SILVA, N., 2002, p. 19).

No Brasil, o equivalente às Tijuana Bibles eram os chamados “catecismos”:

Ao longo das décadas de 1950 e 1960, sobretudo, prosperou no Brasil um gênero de publicação clandestina que ficaria conhecido como catecismo, ou revistinha de

sacanagem. Eram pequenas revistas, impressas em preto e branco, em formato ¼ de

ofício, em papel barato, que narravam encontros sexuais ricamente ilustrados. Dentre os inúmeros autores e ilustradores de catecismos que, quando muito, identificavam-se por pseudônimos ou anagramas, um se destacou a ponto de confundir-se com o próprio gênero: Carlos Zéfiro, a quem são atribuídos mais de 800 títulos. (CARDOSO, 2013, p. 1, grifos da autora).

Paradoxalmente, o enfraquecimento da indústria de quadrinhos mainstream79 e as restrições de conteúdo que a faziam definhar ensejaram o surgimento de uma nova proposta, nascida no seio das universidades dos EUA, em ressonância com a contracultura. Os quadrinhos gestados neste contexto foram chamados de comix, para diferenciá-los dos produzidos “[...] no contexto industrial e comercial.”80

(ALONSO; LÓPEZ, 2006, p. 42). A alteração da última letra da palavra, de “s” para “x”, mais do que elemento diferenciador, apelava à associação com o símbolo que distinguia produtos eróticos ou pornográficos, o “XXX”.

Estes quadrinhos, produzidos do fim dos anos 50 até os primeiros anos da década seguinte, valiam-se do barateamento do processo de impressão e eram feitos de modo quase artesanal, com a liberdade de criação que decorre de sua distribuição desatrelada da necessidade de lucro (GARCÍA, 2012). O que se chamou de underground comix, porém, viria a ter maior abrangência.

79 O mainstream se refere às editoras tradicionais, que nos EUA estão situadas, em sua grande maioria, em Nova

York (DUNCAN; SMITH, 2009, p. 52).

Tendo seu nascimento vinculado à estética e irreverência das Tijuana Bibles, os

underground comix convencionalmente têm como seu marco inicial o lançamento da revista Zap Comix, por Robert Crumb, em São Francisco, EUA, em 1967 (DUNCAN; SMITH,

2009). “Ironicamente, as coisas melhoraram quando os baby boomers, aqueles cujo Código de Ética deveria proteger, chegaram à maturidade e desafiaram as restrições produzindo quadrinhos com ousadia e relevância, lidando com os temas da época.” (SCHUMACHER, 2013, p. 170).

Como não operavam dentro da lógica mercantil convencional, estes quadrinhos se diferenciavam grandemente da produção do mainstream:

a) as revistas não ostentavam o selo do Comics Code, o que liberava cada artista a utilizar qualquer tema desejado, inclusive sexo e drogas;

b) cada autor mantinha total controle criativo e de direitos de propriedade sobre suas obras, recebendo, em vez do pagamento por página que ganhariam numa editora,

royalties por seu trabalho;

c) a divisão de trabalho que ocorria nas grandes editoras – com uma cadeia de profissionais especializados em roteiro, desenho, colorização e outras etapas – não existia na produção dos comix, sendo as tarefas realizadas quase sempre por um único artista;

d) longe dos sistemas convencionais de distribuição81, os pontos de venda utilizados eram “[...] livrarias alternativas, lojas de discos e head shops[82

] [...]”83 (DUNCAN; SMITH, 2009, p. 52);

e) foi quebrado o paradigma da periodicidade, na medida em que os quadrinistas não obedeciam aos prazos da indústria formal;

f) quadrinhos que fizessem sucesso poderiam ser continuamente reeditados, algo impensável no mercado editorial convencional de então, movido a novidades;

81 Para empreender a distribuição dos comix, “[...] editores e autores começaram a unir forças e criaram o

Underground Press Syndicate, com a intenção de pactuar um compromisso comum para preservar a total liberdade artística dos quadrinistas.” {[...] editores y autores empezaron a unir fuerzas y crearon el Underground Press Syndicate, con la intención de pactar un compromiso común para preservar la total libertad artística de los dibujantes.} (MENDIA, 2013, p. 117).

82 “Head shop […] [é] uma loja que vende parafernália para drogas, incenso, pôsteres, isqueiros e outros

produtos e serviços associados ao uso de drogas [...].” {Head shop […] [is] a shop that retails drug paraphernalia, incense, posters, lights, and other products and services associated with drug use […].} (DALZELL; VICTOR, 2007, p. 327)

g) eram quadrinhos voltados para adultos que, mesmo vinculados à erotização, não se enquadravam entre as produções tipicamente pornográficas.

Por fim, vale dizer que os comix trabalhavam extensamente com a linha autobiográfica e que a terminologia underground – literalmente, subterrâneo – tinha valor estratégico para o movimento:

Como o nome “underground” sugere, a violação intencional de tabus sociais era central para a ideologia do movimento dos comix, e nos subterrâneos [undergrounds] o estilo de desenho previamente identificado com inócuos quadrinhos para crianças se tornou o modo preferido para a irrestrita representação de sexo, violência e rebelião política.84 (WITEK, 2012, p. 34).