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4 SABRES NO PICADEIRO: A PASSAGEM DE LAERTE PELA

4.1 DO UNDERGROUND AO UDIGRUDI

4.1.1 Quadrinhos e (auto)censura: o Comics Code

A súbita atenção dispensada pelo Senado dos EUA às HQ contrariava, historicamente, a escalada de um produto cultural que, até então, gozava de uma liberdade não usual entre os meios massivos: “O cinema e o rádio atendiam a regulamentações oficiais, mas o comic book [revista de quadrinhos] estava por demasiado por baixo da atenção dos adultos para merecer alguma normativa ou controle.” (GARCÍA, 2012, p. 151). A mudança de posicionamento das autoridades costuma ser associada, diretamente, à publicação do livro Seduction of the

innocent: the influence of comic book on today’s youth (A sedução do inocente: a influência

das revistas de quadrinhos sobre a juventude de hoje), também em 1954, pelo psiquiatra Fredric Wertham. Neste livro, Wertham expunha suas conclusões após sete anos de pesquisa sobre as HQ, acompanhando a recepção por parte das crianças. Embora não pedisse pelo banimento dos comic books, sua intenção restritiva era clara já no primeiro capítulo:

Lentamente, e a princípio relutantemente, eu cheguei à conclusão que esta estimulação crônica, tentação e sedução [das crianças] pelas revistas em quadrinhos, tanto pelo seu conteúdo quanto por sua atraente propaganda positiva de facas e revólveres, são fatores que contribuem para o desajuste de muitas crianças.

Todas as revistas em quadrinhos com suas palavras expostas em balões são más para a leitura, mas nem todas as revistas em quadrinhos são más para as mentes e emoções das crianças. O problema é que as “boas” revistas em quadrinhos são soterradas sob aquelas que glorificam violência, crime e sadismo.75 (WERTHAM, 1954, p. 10).

Seria sedutor, para utilizar a terminologia de Wertham, tomar seu livro como causador do que ocorreria depois; no entanto, uma única obra não pode ser responsável por todo um contexto. Embora sua análise, que mistura argumentos psicológicos (“más para as mentes e emoções das crianças”) e biológicos (“más para a leitura”) seja contundente, só poderia ter repercussão num ambiente que lhe fosse favorável. De fato, já havia mobilizações, por todos os Estados Unidos, de grupos de pais, pedindo pela interferência do Estado no sentido de regular ou banir as publicações de quadrinhos (DUNCAN; SMITH, 2009). As histórias em quadrinhos, destarte, já haviam recebido, no solo dos EUA, reações de repúdio e valorização, respectivamente no período anterior à I Guerra Mundial e no período entre guerras, levando

75 Slowly, and at first reluctantly, I have come to the conclusion that this chronic stimulation, temptation and

seduction by comic books, both their content and their alluring advertisement of knives and guns, are contributing factors to many children’s maladjustment.

All comic books with their words and expletives in balloons are bad for reading, but not every comic book is bad for children’s minds and emotions. The trouble is that the “good” comic books are snowed under by those which glorify violence, crime and sadism.

em conta seu suposto efeito na sociedade, sem que análises que discutissem seu valor intrínseco tivessem significativa expressão (KENT; WORCESTER, 2004). A tal ponto era distante qualquer perspectiva de legitimação per si das HQ até a primeira metade do século passado que Groensteen (2009, p. 6) chegou a afirmar que: “Uma antologia do que foi escrito sobre histórias em quadrinhos entre o começo do século e os anos 60 seria extremamente aborrecida.” 76

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Vale dizer ainda, sobre o alcance da visão depreciativa sobre os quadrinhos, que, durante a década de 50, o fenômeno de protestos contra os quadrinhos de origem estadunidense não se limitou ao país em que foram criados, atingindo alguns países para os quais foram exportados, como Canadá, Austrália, Inglaterra, Alemanha Ocidental, Coreia do Sul e Filipinas, e até mesmo alguns títulos autóctones (LENT, 2009), o que sugere um contexto receptivo mais amplo.

Foi nesse turbilhão de oposição crescente aos quadrinhos que o Subcomitê para a Investigação da Delinquência Juvenil realizou suas audiências, inclusive tendo como depoente o próprio Fredric Wertham. Apesar de o Subcomitê apenas ter chegado a conclusões vagas de repúdio, de que as crianças americanas estariam sendo submetidas a uma intensa carga de “crime, horror e violência” (DUNCAN; SMITH, 2009), a repercussão na mídia estadunidense foi tão negativa que os editores de revistas de quadrinhos se anteciparam a qualquer decisão oficial, numa “oferenda de paz”:

Logo após a conclusão das audiências em junho de 1954, os editores de revistas de quadrinhos se reuniram para trabalhar em um código autorregulatório que pudesse ajudar a apaziguar críticas e tirar dos trilhos esforços para aprovar legislação para regular o conteúdo das revistas de quadrinhos.77 (NYBERG, 2009, p. 64-65).

Basicamente, o Código criado pela Comics Magazine Association of America (CMAA), mais conhecido como Comics Code, criou um selo de aprovação que certificava a adequação do conteúdo para o consumo infantil. A maioria das editoras aderiu à normatização, com poucas exceções, como as indústrias Disney, que alegaram já produzir, declaradamente, material para crianças (NYBERG, 2009). Além desta medida, outras foram tomadas:

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An anthology of what was written about comics between the beginning of the century and the sixties would be extremely boring.

77 Shortly after the hearings concluded in June 1954, the comic book publishers set to work on a self-regulatory

De acordo com o [Comics] Code, “todas as cenas de horror, derramamento de sangue excessivo, crimes sanguinolentos ou macabros, depravação, luxúria, sadismo, [...] [e] masoquismo não serão permitidos.” O [Comics] Code ainda proibiu o uso das palavras horror e terror em um título.78 (DUNCAN; SMITH, 2009, p. 40, grifos do autor).

A influência da CMAA se mostrou tão duradoura que o selo do Comics Code foi ostentado por revistas em quadrinhos nos EUA até o ano de 2011, quando a última editora a adotá-lo anunciou sua desvinculação (NYBERG, 2011).

No Brasil, como informa Gonçalo Jr. (2004), vale dizer que houve apaixonados protestos contra os quadrinhos, resultando em mobilização que alcançou o Congresso Nacional. Em 1949, Gilberto Freyre – que, na ocasião, era Deputado Federal – foi relator da “[...] comissão de Educação e Cultura da Câmara para investigar as denúncias que o INEP [Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos] continuou a fazer sobre os efeitos das revistinhas na educação das crianças.” (GONÇALO JR., 2004, p. 156). Freyre deu parecer favorável aos quadrinhos acerca das acusações, mas a pressão continuou, maximizada pela aprovação do Comics Code, levando à criação de um código semelhante, exibido em publicações das editoras signatárias de 1961 a 1971:

O regulamento tinha os mesmos objetivos de qualquer regra de autocensura em moda entre os editores de quadrinhos em vários países durante a Guerra Fria: proibia temas políticos, sexo, violência, ofensas aos valores religiosos, morais, aos pais, aos professores, às autoridades e aos deficientes físicos. (GONÇALO, JR., 2004, p. 346).