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A democracia ateniense em cujo apogeu se deu no séc. V a.C durante o mandato de Péricles (443-429 a.C) terá sido precedida de reformas levadas a cabo por Sólon e Clístenes que mudaram a organização política de Atenas (MOSSÉ, 1982; HELD, 2006). Essas reformas foram responsáveis pela introdução de medidas na organização política de Atenas como, por exemplo, a isegoria e a isonomia que terão sido fundamentais para a substituição do anterior regime (Aristocracia) pela Democracia.

Isto porque os cidadãos passaram a dispor de liberdade e da igualdade perante a lei (isonomia) e do mesmo direito de falar na Assembleia (isegoria) e assim participar na deliberação dos assuntos públicos (HELD, 2006, p. 26). Assim, essas reformas estiveram na base do surgimento de um modelo de democracia do qual a literatura especializada sobre a teoria democrática é unânime em apelidá-lo como sendo democracia direta (Ibidem; BOBBIO, 2000; MACPHERSON, 1997).

Esse modelo de democracia inventado e desenvolvido em Atenas do séc. V a.C. pode ser entendido como um modelo no qual o poder é exercido pelo povo (conjunto de cidadãos livres) através de participação direta nas decisões ou nos assuntos públicos sob discussão na Assembleia (HELD, 2006, pp. 22-39). Como é evidente, esse modelo desenvolveu-se sob condições específicas, conforme se disse acima, que permitiram que as decisões fossem tomadas diretamente pelo conjunto de cidadãos habilitados a participar, ou pelo menos, pela maioria deles reunidos em assembleia de todos os cidadãos.

Conforme estipula Bobbio se por democracia direta entendamos hoje “literalmente a participação de todos os cidadãos em todas as decisões a eles pertinentes, a proposta é insensata” (BOBBIO, 2006, p. 45). Isto porque as características basilares do modelo clássico eram, precisamente, a pequenez territorial, a pouca diferenciação social, o reduzido número de habitantes, a proximidade regional, a igualdade entre todos os cidadãos e a autonomia das cidades-estados (DAHL, 2001).

Atualmente, devido às transformações ocorridas no sistema sociopolítico bem como o crescente processo de complexificação e diferenciação social surgidos com o advento da idade moderna, tal proposição seria, do ponto de vista material e empírico, impossível e humanamente indesejável (BOBBIO, 2006, p. 54).

Contudo, naquele modelo, a Assembleia constituída por 500 cidadãos (HELD, 2006) dispunha do poder soberano e se afigurava como principal espaço político porquanto os assuntos mais importantes e que envolviam os interesses dos cidadãos e da cidade-estado eram objeto de debate político do qual a força do melhor argumento saía vitoriosa (Idem, p. 26).

Tendo a Assembleia o órgão supremo da soberania e o principal centro da atividade política, o processo de governação terá sido baseado naquilo que Péricles chama de discussão própria, isto é, discussão livre no qual a todos é garantido o igual direito de participar ou de falar em assembleia por meio do princípio da isegoria (Ibidem).

Nesta lógica, o princípio do Governo inerente a este modelo de organização sociopolítica inaugurada pelos atenienses se transformou em uma forma de vida da qual a participação direta dos cidadãos ganha evidência e se transforma em um método a partir do qual todas as decisões importantes da cidade-estado a ele deviam ser submetidas.

Além da participação direta dos cidadãos nas funções legislativas e judiciais da cidade-estado ser algo garantido e de suma importância para a democracia grega, outra base do modelo ateniense prende-se com o fato de coexistir diferentes métodos de seleção dos candidatos para os cargos públicos.

Dentre esses métodos destacam-se, a eleição direta no âmbito da qual os cidadãos votavam diretamente, por meio do levantamento do braço, nos candidatos a cargos de direção pública; o sorteio a partir do qual eram selecionados os candidatos – sendo maioria deles escolhidos através desse método e, por fim, através do método de rotação segundo o qual os membros do Comitê dos 50 cidadãos são selecionados pela rotação dos membros do conselho (HELD, 2006, pp. 29-30).

Entretanto, com a exceção das posições conectadas com os cargos de guerra, os mesmos cargos não podiam ser exercidos por mais que duas vezes pelo mesmo

indivíduo o que aponta para um sistema contendo fortes limitações no que tange às possibilidades de permanência no poder, configurando assim a existência de breves mandatos (Idem, p.38).

Ainda, a despeito da democracia direta inerente ao modelo clássico, Bobbio (2006) afirma que essa democracia entendida em sentido estrito da palavra leva a que se tenha em conta dois institutos fundamentais que a caracteriza: de um lado, a assembleia dos cidadãos deliberantes sem intermediários e, de outro, o referendum (BOBBIO, 2006, p. 65).

Nesta perspectiva, ele assegura que o primeiro instituto só terá sido possível na medida em que no modelo clássico:

Os cidadãos não passavam de poucos milhares e a sua assembleia, considerando- se os ausentes por motivo de força maior ou por livre e espontânea vontade, reunia-se com todos juntos no lugar estabelecido (no qual escreve Glotz, raramente podiam ser vistos mais que dois ou três mil cidadãos, mesmo que na colina onde habitualmente se realizavam as assembleias ordinárias coubessem, sempre segundo Glotz, vinte e cinco mil pessoas em pé e dezoito mil sentadas) (Ibidem).

Portanto, esse instituto fundamental da democracia direta seria, na acepção de Bobbio (2006), difícil de ser concretizado hoje na medida em que mesmo se pensássemos na divisão de cidades em bairros e as organizássemos em comitês de bairro de forma a se constituir em democracia direta é, igualmente, verdade pensarmos que a sua institucionalização e a forma pela qual se organizaria implicaria a constituição da democracia representativa.

No que se refere ao referendum, enquanto único instituto da democracia direta que dispõe de efetiva aplicabilidade empírica na maior parte dos Estados modernos e de democracia avançada, ele afirma que a sua aplicação contínua geraria dificuldades na governação do Estado porque significaria prever, em média, uma convocação por dia, tendo em conta as leis aprovadas a cada ano na Itália (Idem, pp. 65-66).

Ainda, autores como Setӓlӓ (1999) afirmam que esse instituto, apesar do seu apelo à participação direta dos cidadãos no processo decisional e da sua função de veto que retarda o processo político, geraria uma situação de saturação no eleitorado provocada por apelos constantes e permanentes ao referendo.

Associadas a essas dificuldades práticas imputadas ao modelo clássico se juntam também algumas críticas dirigidas à democracia grega e que têm a ver com o modo da

sua estruturação e funcionamento. Entre as críticas, se destaca o seu caráter patriarcal no qual a mulher não tinha direitos de participar na vida da polis e os direitos cívicos a que lhes assistiam eram extremamente limitados (HELD, 2006, p. 30).

Por outro lado, e a despeito da perspectiva liberal que coloca os cidadãos atenienses com poder de influenciar as decisões, autores críticos do liberalismo como Luciano Canfora, sustentam uma posição que coloca os cidadãos atenienses sem poder de influência nas decisões e advogam que aquela democracia [ateniense] se traduzia no governo dos ricos proprietários no qual se assistia a primazia dos interesses dos ricos proprietários sobre os dos não ricos (CANFORA, 2007).

Aliás, Platão em A República teria dito que o igual direito de participar em Assembleia não significa estritamente igual poder de todos os cidadãos em participar na tomada das decisões. Esta constatação está na origem de uma das maiores críticas ao sistema ateniense feita pelos gregos, dos quais Platão e Aristóteles se afiguram como os principais impulsionadores.

Nesta lógica, Platão assegura que a Democracia deve significar mais do que um voto em ocasiões periódicas (HELD, 2006, p. 34). Ademais, ele assevera que este modelo embasa numa forma de organização social que trata todos os indivíduos como iguais mesmo que não sejam e assegura que todos os indivíduos são livres para fazer o que querem (Idem, pp. 34- 35). Assim, segundo Platão, esse compromisso com a igualdade e liberdade políticas enquanto cerne da democracia grega seria a base da sua característica mais deplorável (Idem, p. 35).

Aristóteles, tal como Platão, enquadra a democracia dentro das formas degradadas do governo e afirma que como a democracia é o governo do povo (maioria) este acaba sempre por governar no seu interesse em detrimento do interesse de toda a população. Neste sentido, como a maioria é pobre, o governo acaba por adotar uma linha de orientação que privilegia mais os pobres em detrimento dos ricos (ARISTÓTELES, 1988; 1279b, 1317b).

Todavia, a decadência das cidades-estados ateniense levou também à falência desse modelo e da própria democracia que só viria a reaparecer dois mil anos depois no século XVIII (MACPHERSOM, 1997) e sob a forma da democracia representativa que será objeto

de análise no próximo tópico.