• Nenhum resultado encontrado

Mrs Minerva Nicholas

3.2 Derivas informacionais

Como demonstra o exemplo do The city stories project, pode-se afirmar que todos os espaços são marcados por memórias, lendas, fatos históricos, curiosidades que constituem o significado desses lugares, como se fosse sua identidade.

Mas, num espaço cada vez mais dirigido à velocidade, à fluidez e à

efemeridade, onde, em muitos casos, as diferenças sócio-econômicas fazem aflorar a criminalidade que tanto causa medo em seus habitantes, despertando o medo da convivência e a necessidade de construir espaços que

proporcionem segurança, como espaços cercados e vigiados, perceber os significados dos espaços se torna cada vez mais difícil. Abandonados ou esquecidos, muitos espaços se tornam vazios – de sentido, de significado, de memórias.

Como forma de resgatar a percepção desses espaços, alguns projetos

passaram a utilizar-se de aparelhos sofisticados, como laptops, GPS, palms e mais todo um aparato técnico para promover caminhadas pelo espaço,

buscando mapear os lugares que possuam para elas algum sentido. Esses projetos, dentre os descritos neste estudo, são os que mais se assemelham às excursões dadaístas, às deambulações surrealistas e, principalmente, às derivas psicogeográficas situacionistas.

Um deles, é o já citado projeto 34north118west11, no qual os interagentes são convidados a percorrer um determinado espaço, um distrito de Los Angeles, por exemplo, equipados com aparelhos de comunicação e posicionamento, como um de um aparelho GPS (Global Positioning System), um laptop e fones de ouvido. Durante a caminhada, guiado pelo aparelho de posicionamento, interagente vai construindo um mapa de seu percurso, enquanto recebe na tela do laptop e nos fones de ouvido, sons, imagens e textos que dialogam com o espaço observado, como a trajetória histórica de determinado edifício, uma lenda que faça parte do local, uma música que foi composta para ele, a imagem registrada por um outro interagente que por ali passou, enfim, uma variedade de tipos de memória que são próprias a esse lugar.

É uma forma de flanar, como definiria Walter Benjamin (1985) esse ato de caminhar observando os locais, como se os investigasse. E cada caminhante, ao percorrer estes trajetos, constrói sua própria história, uma narrativa

particular que se mescla a uma grande narrativa coletiva composta pelo

conjunto de obras produzidas por todos os interagentes, assim como na descrição da obra presente no site do projeto:

(...) A fictional narrative is an agitated space. A story world is constructed with

attention to selection of detail and level of its description (setting and its establishment of tone, subtext and above all, physical place). The traditional role of the author has been to carefully use these tools to create the other world. The city is also an agitated space. A city is a collection of data and sub-text to be read in the context of

ethnography, history, semiotics, architectural patterns and forms, physical form and rhythm, juxtaposition, city planning, land usage shifts and other ways of interpretation and analysis. (...) The project ‘34 North 118 West’ utilizes technology and the physical navigation of a city simultaneously to forge a new construct. The narrative is

embedded in the city itself as well as the city is read. The story world becomes one of juxtaposition, of overlap, of layers appearing and falling away. Place becomes a multi- tiered and malleable concept beyond that of setting and detail to establish a fictive place, a narrative world12.

Na verdade, retomando o que já foi dito, o que os responsáveis pelo projeto 34north118west realizam é a materialização de algo que é comum a todos os seres e que também estava presente no The city stories project: o fato de cada habitante de um local, seja urbano ou não, ter uma história para contar, experiências vividas ou tomadas de relatos de antepassados, de livros, ou até mesmo inventadas. A reunião de todos estes relatos, da visão que cada indivíduo faz do lugar onde habita, constrói a narrativa do local.

Essa idéia aproxima-se também de uma outra afirmação de Michel de Certeau em relação ao espaço que é a de que as narrativas, os relatos de caminhadas e viagens podem funcionar como meio de transporte que conduz os seres pelos espaços, isto é, o relato é uma prática do espaço:

E todo relato é um relato de viagem – uma prática do espaço. A este título, tem a ver com as táticas cotidianas, faz parte delas, desde o abecedário da indicação espacial (‘dobre à direita’, ‘siga à esquerda’), esboço de um relato cuja seqüência é escrita pelos passos, até ao ‘noticiário’ de cada dia (‘Adivinhe quem eu encontrei na

padaria?’), ao ‘jornal’ televisionado (‘Teherã: Khomeiny sempre mais isolado...’), aos contos lendários (as Gatas Borralheiras nas choupanas) e às histórias contadas (lembranças e romances de países estrangeiros ou de passados mais ou menos remotos). Essas aventuras narradas, que ao mesmo tempo produzem geografias de ações e derivam para os lugares comuns de uma ordem, não constituem somente um ‘suplemento’ aos enunciados pedestres e às retóricas caminhatórias. Não se

contentam em deslocá-los e transpô-los para o campo da linguagem. De fato, organizam as caminhadas. Fazem a viagem, antes ou enquanto os pés a executam. (CERTEAU, 1994, v. 1, p. 200).

E, balizando o que havia sido afirmado, Michel de Certeau diz que o corpo desses relatos é retirado, na verdade, da memória que se encerra em cada local, ou antes da percepção que cada indivíduo tem desse lugar, constituindo- se uma espécie de antimuseu:

A dispersão dos relatos indica já a do memorável. De fato, a memória é o antimuseu: ela não é localizável. Dela saem clarões nas lendas. Os objetos também, e as

palavras, são ocos. Aí dorme um passado, como nos gestos cotidianos de caminhar, comer, deitar-se, onde dormitam revoluções antigas. A lembrança é somente um príncipe encantado de passagem, que desperta, um momento, a Bela-Adormecida-no- Bosque de nossas histórias sem palavras. ‘Aqui, aqui era uma padaria’; ‘ali morava a mere Dupuis’. (...) Os demonstrativos dizem do visível suas invisíveis identidades: constitui a própria definição do lugar, com efeito, ser esta série de deslocamentos e de efeitos entre os estratos partilhados que o compõem e jogar com essas espessuras em movimento. (CERTEAU, 1994, v. 1, p. 189).

E continua:

Os lugares são histórias fragmentárias e isoladas em si, dos passados roubados à legibilidade por outro, tempos empilhados que podem se desdobrar mas que estão ali antes como histórias à espera e permanecem no estado de quebra-cabeças, enigmas, enfim simbolizações enquistadas na dor ou no prazer do corpo. ‘Gosto muito de estar aqui!’ é uma prática do espaço este bem-estar tranqüilo sobre a linguagem onde se traça, um instante, como um clarão. (CERTEAU, 1994, v. 1, p. 190).

“Histórias à espera” de serem redescobertas pelo caminhar mais detido e observador desse tipo de pedestre. O interessante do projeto é que cada novo interagente pode somar seus relatos e imagens aos produtos das caminhadas de outros interagentes, como numa narrativa coletiva.

Mas há duas formas de vivenciar esta experiência: de forma passiva ou ativa e linear ou não-linear. Há o interagente que caminha guiando-se pelo mapa e seguindo cada ponto indicado dentro de um trajeto já pronto e planejado, com começo, meio e fim, esta seria uma experiência passiva e linear. Há outros interagentes que preferem saltar pontos e determinar o trajeto de acordo com sua curiosidade diante dos locais, buscando por sua própria vontade nos aparelhos informações sobre os locais por onde deseja passar, constituindo-se uma experiência mais ativa e fragmentária, ou seja, não-linear. São os mesmos termos que são comumente aplicados à leitura, como acontece ao leitor de um livro como O jogo da amarelinha, de Júlio Cortázar, por exemplo, tanto fazer um leitura linear, seguindo a ordem seqüencial das páginas , quanto não-linear, saltando de uma página a outra de acordo com a numeração indicada no final dos capítulos ou, ainda, escolher qual texto deseja ler, aleatoriamente.

São termos também utilizados pela idealizadora de um projeto bem semelhante ao 34north118 west, chamado Annotate Space DUMBO13. Foi elaborado por Andrea Moed e tem esse nome por causa do seu local de aplicação, uma região antiga do Brooklyn de frente para a vizinhança de DUMBO (Down Under the Manhattan Bridge Overpass). Ao contrário de 34north118 west, Andrea

trabalha apenas com palm, computador portátil que, apesar da tela reduzida, pode comportar muitas informações e permitir leituras razoáveis.

Depois de um longo tempo promovendo pesquisas pelo local e entrevistando seus habitantes, além de ter promovido uma incursão pelas histórias e relatos de pessoas que vivenciaram experiências instigantes em diversos locais do mundo, a artista elaborou o que para ela é a continuação de uma prática milenar de contar histórias, comparando-se inclusive a Marco Pólo:

I believe that beyond this task-oriented set of options, the potential remains for more engaging, enlightening digitally mediated interactions with the urban environment, using technology that is now widely available. While some

technologists see this promise in augmented vision and other sensory-immersive strategies, I am more interested in the perspective-altering potential of narrative. Annotate Space is inspired by centuries of great place-based storytelling by writers, artists and documentarians, from Marco Polo to Rick Burns. Philosophically, it draws upon the work of the historic preservation movement, which for over a century has responded to the accelerated rate of change in the built environment by encouraging people to appreciate the aesthetic, educational and spiritual

qualities of places, so that great places may be recognized, valued and maintained. Finally, I am influenced by digital artists from the hypertext novelists onward, who design computer-mediated experiences that build in the act of reflection14

13 Annotate space - Dumbo. Disponível:

http://www. panix.com/~andrea/annotate/index

Mas é fato que tanto um projeto quanto o outro mantém, mesmo que sem querer, um diálogo com as obras situacionistas; percorrer esses locais

marcados numa tela de um aparelho de posicionamento não deixa de ser uma forma de desvendar os sentimentos que esses locais despertam nos seres, ou seja, essa experiência torna-se uma deriva psicogeográfica. A proximidade entre esses locais e os “lugares afetivos” dos situacionistas é bem pequena.

Documentos relacionados