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Depois da excursão à igreja de Saint-Julien-le-Pauvre pelos dadaístas, da viagem realizada pelos surrealistas pelo interior da França em uma

deambulação em busca do inconsciente e dos primeiros escritos situacionistas, o passeio de Tony Smith por uma rodovia em construção na periferia de Nova York é um dos eventos mais marcantes do final da década de sessenta, no que tange à relação dos seres com o espaço por meio da caminhada, da deriva, tido por Gilles Tiberghien como a origem da Land art e da série de apreensões do espaço que seriam realizadas nos anos seguintes. Francesco Careri assim narra este evento:

Uma noite, junto a alguns estudantes da Cooper Union, Smith decide entrar sem permissão nas obras da rodovia, e recorrer de carro a faixa de asfalto negro que a atravessava, como se fosse uma cesura vazia, os espaços marginais da periferia americana. Durante sua viagem, Smith experimenta uma espécie de êxtase inefável que define como ‘o fim da arte’, e reflete: ‘O asfalto ocupa grande parte da paisagem artificial, mas não é possível considerá-lo como uma obra de arte’. (CARERI, 2002, p. 120).

E tratando esta experiência como um fato estético, Smith questiona:

‘A calçada é uma obra de arte ou não é? E se é, como? Como grande objeto

readymade? Como signo abstrato que cruza a paisagem? Como objeto ou como

experiência? Como espaço em si mesmo ou travessia? Que papel desempenha a paisagem que há ao seu redor?’ (CARERI, 2002, p. 120).

Após esta experiência Tony Smith formulou muitas vias de pensamento, sendo a rua vista de duas formas distintas, que seriam a base da arte minimalista e da Land art: A primeira é a percepção da rua como signo e objeto no qual se realiza a travessia; a segunda é a própria travessia como experiência, como atitude que se converte em forma.

Na verdade, não se tratava de decretar literalmente o fim da arte, mas de tomar consciência de que ela não necessitava estar dentro de uma galeria para ser considerada arte, ou seja, trata-se de uma nova forma de entender e de fazer arte, de reconquistar a experiência do espaço vivido e das grandes dimensões da paisagem.

Com Carl Andre e Richard Long, as dúvidas suscitadas pela experiência de Smith podem ser respondidas de duas formas diferentes: para Carl Andre a rua não é somente arte, é a própria escultura ideal; já para Richard Long a arte reside no próprio ato de andar, no fato de viver essa experiência, passando, assim, do objeto à ausência de objeto.

“Um dos trabalhos mais originais da arte ocidental do século XX” (CARERI, 2002, p. 146), é assim que o artista inglês Hamish Fulton considera a primeira

obra de Richard Long, A line made by walking. De fato, um ano após a

experiência na rodovia de Tony Smith, esta é uma das obras mais significativas e um marco na arte contemporânea. Apesar de tantos elogios, a obra não tem pretensões grandiosas, ao contrário, é muito simples: apenas uma linha reta desenhada em um terreno coberto de grama, cujo traçado foi realizado com o ato de pisar e amassar a grama. A obra, registrada em fotografias, demonstra extrema fragilidade e ausência de durabilidade; uma chuva, o crescimento da grama e outros fenômenos naturais a fariam desaparecer. Com esta obra, Richard Long realiza duas atividades: a escultura (a linha) e o andar (a ação), evitando de converter-se em um objeto, como no pensamento de Tony Smith quando rodava pela rodovia.

(...) A line made by walking produz uma sensação de infinito. É um largo segmento que se detém nas árvores que encerram o campo visual, mas que poderia seguir percorrendo todo o planeta. A imagem da grama pisada contém em si mesma a presença de uma ausência: a ausência da ação, a ausência do corpo, a ausência do objeto. Por outro lado, trata-se sem dúvida do resultado da ação de um corpo e de um objeto, algo insinuado no meio caminho entre a escultura, a performance e a

arquitetura da paisagem. (CARERI, 2002, p. 146 -148).

A obra de Long é uma forma de medir o ambiente, no sentido de individualizar pontos de percepção, assinalá-los. E a medida utilizada por Long para realizar este reconhecimento do ambiente é o próprio corpo, seus passos são um registro da mudança dos ventos, da temperatura e dos sons. É uma

intervenção sem suportes tecnológicos, a única ferramenta utilizada é o próprio corpo, o movimento e a força dos membros.

A maior pedra que se utiliza é aquela que se pode deslocar com as próprias forças e o próprio corpo durante certo período de tempo. O corpo é um instrumento para medir o espaço e o tempo. (CARERI, 2002, p. 150).

Os espaços escolhidos para a realização dessas operações, como na obra A line made by walking, são lugares geralmente desprovidos de arquitetura ou de sinais da presença humana, espaços onde é possível realizar uma obra que assume um caráter atemporal, uma travessia que não tem necessidade de deixar pistas, pegadas permanentes, mas que atua sobre o mundo

superficialmente, apenas transforma o ambiente por um tempo determinado.

A experiência do caminhar se converte assim em uma escritura ou uma pintura. O plano onde se desenha a obra não é uma tela ou uma folha de papel, mas o próprio ambiente torna-se uma imensa tela, cuja apreensão total, ou seja, para que se enxergue a obra em seu todo, é necessária uma visão, talvez um

sobrevôo. Enquanto anda, o corpo do artista vai “tomando nota” das variações do terreno, dos sentimentos que lhe despertam, das paisagens que observa. Nesse ponto, todas as manifestações artísticas aqui descritas se aproximam e remontam ao início da história do homem, quando a única forma de atravessar o espaço era caminhando e as distâncias eram medidas pelo número de passos que teria de dar para chegar a algum lugar.

Sobre esta volta às origens, de certa forma, operada pela Land Art, Francesco Careri comenta:

A Terra dos landartistas se esculpe, se desenha, se recorta, se escava, se revolve, se envolve, se vive e se recorre de novo por meio dos signos arquétipos do pensamento

humano. Com a land art assistimos a um deliberado retorno ao neolítico. Largas fileiras de pedras cravadas no solo, recintos de folhas ou de ramos, espirais de terra, linhas e cercos desenhados no território, grandes monumentos de terra, de cimento e de ferro, ou encaixes de materiais industriais, tudo isso se utiliza como meio para apropriar-se do espaço, como ação primária para alcançar uma natureza arcaica, como entropização de uma paisagem primitiva. (CARERI, 2002, p. 142).

Em outubro de 1967, mesmo ano que Richard Long produz A line made by walking, um artigo na revista Artforum, coloca em evidência um jovem

americano chamado Robert Smithson. Neste artigo, ele defende Tony Smith das acusações a ele feitas por Michael Fried em um número anterior da revista. Em junho, ele já havia publicado um outro artigo, no qual abordava lugares remotos como os Pine Barrens, em Nova Jersey, as planícies geladas do Pólo Norte e do Pólo Sul, discorrendo sobre as formas de utilizar o espaço real como meio, objeto e ferramenta. A rodovia de Tony Smith é para ele uma

estrutura composta por elementos de sentido, como uma frase, sendo o espaço um território de leitura e escrita assim como o texto. Enquanto Carl André e Richard Long colocam a ênfase no objeto ou na ausência do objeto,

respectivamente, Robert Smithson se dedicará ao lugar onde a experiência ocorre e nas qualidades que lhes são inerentes, numa tentativa de praticar a descoberta de novas paisagens. É com essa idéia que ele realiza a obra Negative map showing region of monuments along the Paissac River,

composta por 24 fotografias em branco e preto que retratam os monumentos de Paissac, locais assolados pelo crescimento urbano, pela industrialização e em estado de reabsorção pela natureza. As fotografias não eram puras

representações, mas sim como uma chamada para uma experiência, elas contavam a história dos lugares, como se o público viajasse junto com o artista.

Quem visitava a exposição de fotografias na galeria de Virginia Dwan, em Nova Iorque, não encontrava nenhuma obra – pelo menos não no sentido de

construção e demonstração de um objeto concreto, idéia que já vinha sendo há muito superada. Quem visitava os locais mostrados nas fotos também lá

encontrava apenas uma paisagem como ela é, sem ser transformada pelo artista. A obra consistia no feito de ter realizado a experiência; de ter convidado as pessoas a percorrer o Paissac River, ou seja, descobrir o local; o objeto estético podia tanto estar nas fotografias exibidas na exposição quanto na combinação de uma série de elementos como o espaço percorrido pelo artista, os mapas que ele recortava e descontextualizava, desenhos, as informações geológicas, geográficas, topográficas etc. e por aqueles que posteriormente o foram observar, o convite a uma visita, as fotografias, os mapas do local etc.

Nelson Brissac, ao comentar o trabalho de Robert Smithson, afirma que a reunião dessas amostras dos locais, colocados em uma exposição,

configuravam-se como o não-sítio do sítio, ou do local visitado:

O dispositivo dos não-sítios serve para estabelecer uma estratégia para abordar situações tão complexas e desfiguradas que não há como focar em algum aspecto, como retratar de modo articulado. O não-sítio opera como dispositivo de

enquadramento, como parâmetro, enquanto o sítio fica à margem, onde se perde o sentido das distâncias e dos limites. (...) A relação sítio/não-sítio serve para orientar o observador para uma situação altamente complexa, que não pode ser equacionada pelos registros. Ele acumula informações e níveis de significado até o ponto em que emerjam possíveis sentidos. (...) Os sítios visitados são tomados mais pelo que têm de disfunção e pulverização, pela sua descontinuidade em relação ao entorno, do que

como paisagem. O observador de fato nunca vê o sítio, a percepção é tornada esquemática e abstrata3.

O conjunto da pesquisa empreendida pelo artista formava uma espécie de narrativa, como um relato de viagem, durante o qual se registra as paisagens vistas; anota-se o nome dos lugares, das comidas, das pessoas; guarda-se um cartão postal, um pedaço de papel recolhido de uma mesa de restaurante, a folha de uma árvore. Assim também é o trabalho de Robert Smithson.

Caminhar pelos locais, recolhendo amostras da vegetação, da terra, de pedras, era uma forma de conhecer o lugar, de cartografá-lo.

Entre 1966 e 1967, Robert Smithson começa a promover ao lado de outros artistas diversas expedições para reconhecer lugares, que ele denominava de “não-sítios”; consistiam geralmente de locais esquecidos pelos seres ou ainda desconhecidos, desde zonas industriais até regiões desérticas, com o intuito de selecioná-los para possíveis pesquisas – mais do que uma obra artística, as produções de Robert Smith eram investigações, pesquisas que se

comparavam ao trabalho de geógrafos.

(...) As viagens representam para Smithson uma necessidade instintiva de busca e de experimentação com a realidade do espaço que o rodeia; viagens mentais a

hipotéticos continentes desaparecidos; viagens por mapas que Smithson dobra, recorta e superpõe formando infinitas composições tridimensionais; viagens realizadas com Nancy Holt e outros artistas pelos grandes desertos americanos; pelos despojos urbanos; pelos canteiros abandonados; pelos territórios transformados pela indústria. (CARERI, 2002, p. 164).

3 BRISSAC, Nelson. Mapeamento de situações urbanas (2).

Apesar de suas obras revelarem realidades de destruição da natureza, da degradação dos ambientes urbanos, o objetivo de Smithson não era denunciar ou tomar uma posição de apoio a movimentos ambientalistas. Quando as retrata, na verdade, quer mostrar uma realidade tal como ela se apresenta, os monumentos são parte integrante dessa nova paisagem.

Tudo tende ao desgaste, o que está hoje pronto, acabado, amanhã pode estar deteriorado. Quanto mais energia um elemento utiliza, mais tende a produzir entropia. A paisagem se altera sem interferência, se auto-regenera, mas

também é constantemente modificada pelo homem, sofrendo, desta forma uma dupla transição de estado da matéria. Os lugares investigados por Robert Smithson carregavam estas características, espaços que haviam sofrido toda a sorte de modificações, tanto pelo homem como pela própria natureza, que demonstravam de forma evidente os efeitos da entropia. A predileção por estes locais era justamente porque pareciam escapar ao controle humano, sendo reabsorvidos pela natureza, como se recuperassem seu estado selvagem. “Os monumentos não são admoestações, senão elementos naturais que formam parte integrante desta nova paisagem, presenças que vivem imersas no território entrópico: eles o criam, eles o transformam e eles o desfazem.” (CARERI, 2002, p. 171). O tema da entropia foi tão marcante para o artista que ele chegou a dedicar-lhe um estudo, intitulado Entropy and the new monuments.

Roberth Smithson, Richard Long e tantos outros artistas desse período ajudaram a redefinir os parâmetros da arte, ou antes, contribuíram para o processo de redefinição da arte que vinha sendo operado há muito tempo. A

contribuição desses artistas, ao utilizar a própria paisagem como objeto artístico ou ao enfatizar a ausência de objeto, foi uma renovação em diversos campos da arte, uma escultura, por exemplo, só poderia ser entendida

levando-se em conta o ambiente no qual se inseria, o seu “entorno”, o seu lugar, assim como, locais tidos como apenas restos da intervenção do homem, como construções abandonadas, passaram a ser percebidas como ambientes onde atuava uma força estética, ambientes que se abriam ao olhar juntamente por sua condição de oposição à imagem de controle, de ordem.

Estes artistas abriram o caminho para muitas outras manifestações que são produzidas hoje, consideradas ainda inovadoras, objetos de diversos estudos. John Beardsley comenta a importância de Smithson, não apenas para sua geração, mas para toda a manifestação artística posterior.

Bearing marks of erosion and sedimentation along with signs of seemingly random human interventions, the landscape was perceived by Smithson as a place in constant metamorphosis, revealing entropy – the law of thermodynamics that measures the gradual, steady disintegration in a system. Smithson presented a particulary contemporary vision of the environment, one in which nature is altered and often debased by human action. Although he did not speak for all the artists of his

generation, he articulated ideas that would become increasingly important in the late twentieth century. He recognized that we are physically and culturally bound to the earth and that the classic metaphor of nature as a primordial garden was obsolete for a landscape that bore so many sacars of disruption. Implicit in Smthson’s writing and in his sculpture was a challenge to devolop a more realistic and empathic relationship with transmuted nature. (BEARDSLEY, 1998, p. 7).

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