Daniela Costa
Derivas da comunicação:
A cidade pelo olhar da artemídia
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Comunicação e Semiótica, sob a orientação da Profa. Doutora Giselle Beiguelman.
Mestrado em Comunicação e Semiótica
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estrela e mar. Por que havemos de ser unicamente humanos, limitados a chorar?
Não encontro caminhos fáceis de andar Meu rosto desorienta as firmes pedras que não sabem de água e de ar.
E por isso levito. É bom deixar um pouco de ternura e encanto indiferente de herança, em cada lugar.
Rastro de flor e estrela, nuvem e mar. Meu destino é mais longe e meu passo é mais rápido: a sobra é que vais devagar.
“Deriva: modo de comportamento experimental ligado às condições da sociedade urbana: técnica da passagem rápida por ambiências variadas. Diz-se também, mais particularmente, para designar a duração de um exercício contínuo dessa experiência”. Esta definição encontra-se em um manifesto de 1958, da Internacional Situacionista. Registrando com fotografias, textos e filmes suas experiências, os situacionistas percorriam a cidade em busca de “espaços vazios”, locais que, ao menos em termos turísticos ou arquitetônicos não possuíam significação, mas que, para eles, tinham uma grande carga afetiva. Hoje a cidade é mais um hipertexto do que uma colagem, um emaranhado de caminhos que se bifurcam, por onde passam os fluxos – de informação e comunicação, de transporte, de capital – onde vivem seres que estão quase sempre, em movimento, seja por escolha ou por necessidade. Nesse contexto, floresce uma outra forma de deriva, que se vale do próprio aparato tecnológico da cidade, como painéis eletrônicos e redes de comunicação, além de utilizar GPS, laptops, celulares e simuladores virtuais para cartografar a cidade, produzindo narrativas urbanas multilineares, coletivas e incitando à mobilidade. São essas manifestações artísticas o objeto de estudo desta pesquisa, que se caracteriza como um recorte sobre a deriva enquanto prática artística.
from this experience”. This definition is found in a declaration made in 1958 by the Situationist International. By registering their experiences with photographs, texts and films, the situationists roamed about the city in search of “empty spaces”, places that had no meaning at least in touristic or architectonic terms, but the situationists liked them so much. Today the city is more a hypertext than a paste-up. It is an entanglement of ways that are bifurcated, and flows – concerning information and communication, transport, capital – pass through these ways where there are human beings are nearly always in motion, either by choice or need. In this context, it comes up an other form of dérive that makes use of the city technological apparatus – such as electronic panels and communication networks – GPS, laptops, cell phones and virtual simulators to map the city, creating collective, multilinear urban narratives and stimulating the mobility. These artistic manifestations are the study purpose of this research that is characterized as a depiction on dérive while being artistic practice.
INTRODUÇÃO
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Erro! Indicador não definido.
DERIVAS, DEAMBULAÇÕES E ARTE
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Erro! Indicador não definido.
1.1 A cidade banal...Erro! Indicador não definido. 1.2 A cidade inconsciente...Erro! Indicador não definido. 1.3 A cidade nômade...Erro! Indicador não definido. 1.4 O espaço entrópico...Erro! Indicador não definido. 1.5 A busca de um lugar na cidade...Erro! Indicador não definido.
ESPAÇO URBANO E MOBILIDADE
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Erro! Indicador não definido.
2.1 A vida no espaço informacional...Erro! Indicador não definido. 2.2 A apologia da mobilidade...Erro! Indicador não definido.
HIPERTEXTOS URBANOS
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Erro! Indicador não definido.
3.1 Relatos urbanos...Erro! Indicador não definido. 3.2 Derivas informacionais...Erro! Indicador não definido. 3.3 A imersção como deriva...Erro! Indicador não definido.
CONCLUSÃO
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Erro! Indicador não definido.
Џ
INTRODUÇÃO
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O mundo é vasto demais. Vasto e complexo demais para caber em minha pequena cabeça. Por isso, uso um truque que é o seguinte: um a um, pego pequenos pedaços de mundo e tento compreende-los o melhor possível. Coleciono esses pedacinhos do mundo em vitrines na minha cabeça. Cada vez que pego um novo pedaço do mundo, procuro em minha coleção até encontrar um pedaço parecido. Arquivo o novo pedaço na ordem certa em minha coleção, assim expandindo meu conhecimento, e uso o que aprendi com outros pedaços do mundo para me ajudar a compreender o novo pedaço. Acho que todo mundo faz isso. Mas, é claro, isso não quer dizer que eu compreenda o mundo. Pelo menos, compreendo minha coleção. Por isso, é importante sempre fazer novas ligações, criar novas conexões entre os pedaços do mundo.
Florian Talhofer – Alemanha – depoimento para a exposição FILE-São Paulo, 2005, referente à iStoryBox.
Havia um tempo que os homens partiam em longas viagens com o intuito de
investigar os lugares, colhendo dados diversos, impressões pessoais,
realizando anotações e produzindo representações dos locais visitados.
Quando voltavam, eram chamados a relatar tudo que vivenciaram, em
especial, as paisagens que tinham visto, a que distância elas se encontravam
do ponto inicial da viagem, qual o trajeto que se deveria realizar para chegar
até elas. Era uma forma de relato de viagem, que objetivava produzir um
mapeamento do espaço por meio da descrição. Por isso, muitos mapas
1
O símbolo Џ foi utilizado em uma referência ao Ka - desenho de um ser de braços erguidos em direção ao céu – que representava para os povos nômades do período neolítico a eterna
medievais são geralmente conjuntos de traços, constituem-se, na verdade,
representações de um percurso.
Caminhar era e é uma forma de descobrir espaços. Esta é uma afirmação que
se relaciona com as idéias de Michel de Certeau, para quem caminhar era,
comparado ao ato de ler, uma forma de apropriar-se do espaço, da produção
do outro, atribuindo sentido e construindo uma nova escritura sobreposta a de
tantos outros que já passaram por aquele local:
Sem dúvida o ato de caminhar e de viajar suprem saídas, idas e vindas, garantidos
outrora por um legendário que agora falta aos lugares. A circulação física tem a função
itinerante das ‘superstições’ de ontem ou de hoje. A viagem (como a caminhada)
substitui as legendas que abriam o espaço para o outro. Num corolário, pode-se medir
a importância dessas práticas significantes (contar lendas) como práticas inventoras
de espaços. (CERTEAU, 1994, v. 1, p. 187).
Caminhar é uma, entre muitas outras formas, de atribuir significado ao espaço.
Foi também o ato utilizado por muitos movimentos artísticos para manifestar
suas idéias com relação à sociedade e à própria arte. Em 14 de abril de 1921,
durante as apresentações que abriam a Grand Saison Dada, aconteceu a
primeira excursão dadaísta, de muitas que haviam sido planejadas. A excursão
consistia em uma visita ao pátio da igreja de Saint-Julien-le-Pauvre, no centro
de Paris, um lugar, aparentemente banal, comum, composto por um pequeno
jardim que poderia ter sido encontrado em qualquer outro ponto da cidade. O
objetivo era realmente esse, demonstrar que a arte podia se encontrar nos
A importância desse evento está justamente no fato de transformar a maneira
de representar o espaço e o movimento – sendo este um dos temas mais
presentes nas produções da época – passando de uma forma tradicional, como
uma pintura, por exemplo, para uma ação efetiva no espaço urbano, o próprio
ato de andar, de se movimentar pela cidade torna-se a obra. É também um
exemplo de como a arte pode ajudar a construir uma imagem diferenciada dos
lugares. Um jardim aparentemente sem significado, de repente, torna-se parte
da produção dadaísta, marcado por uma idéia.
Infelizmente esta foi a primeira e a única excursão realizada pelos dadaístas,
mas ela influenciaria outros movimentos artísticos posteriores. Três anos
depois, André Breton e os integrantes do Surrealismo – alguns deles, como o
próprio Breton, remanescentes do Dadaísmo e, assim, herdeiros daquela
primeira excursão – promoveriam uma nova caminhada. O itinerário, escolhido
ao acaso, consistia em sair de Paris e seguir de trem até Blois, uma pequena
cidade do interior, prosseguindo a pé até Romorantin, conversando e
caminhando durante vários dias seguidos.
Influenciados pelas teorias de Zigmund Freud, os surrealistas buscavam
descobrir nessa “deambulação” o inconsciente do espaço, agir de forma
automática e aleatória, deixando o pensamento fluir livremente, como uma
espécie de escritura no espaço real, uma construção narrativa regida apenas
pelos fluxos de idéias e pautada no percurso errático pelo espaço.
Mas foi o movimento Internacional Situacionista que mais profundamente se
de, ferramenta de expressão artística e política. A psicogeografia era a idéia
principal do movimento, cujo objetivo era mapear o comportamento afetivo dos
indivíduos em determinados espaços, sendo a deriva – o ato de andar sem
rumo, buscando os “espaços vazios” da cidade, ou seja, aqueles espaços que,
em termos arquitetônicos e urbanísticos, não possuíam utilidade, mas que,
para os situacionistas podiam conter muitos significados. A deriva era uma
prática que ia contra as regras da arte e do consumo, uma ação que não
deixava pistas, não se preocupava com a representação e nem com sua
conservação no tempo.
O fio que liga os três movimentos está na apreensão do espaço como forma
artística e, por outro lado, no uso da arte como ferramenta de ressignificação
do espaço, não apenas produzindo representações, mas fazendo do ato de
caminhar, do ambiente visitado um objeto, extraindo dele os sentidos que lhe
são inerentes.
No contexto contemporâneo, a mobilidade é um dos pilares da vida cotidiana,
aparelhos os mais variados são fabricados para permitir que cada vez mais os
seres possam realizar suas tarefas em trânsito. Estar em mais de um local ao
mesmo tempo tornou-se uma prática comum, além de percorrer longas
distâncias em minutos; de carregar para onde quiser diversas informações,
como dados pessoais, arquivos de trabalho, músicas, vídeos, fotos; em muitas
ocasiões, inclusive, visitar pessoas e locais sem sair do lugar. Entre os
aparelhos que permitem essa mobilidade estão os celulares, a internet, os
Essa profusão de equipamentos capacita os seres a fazerem leituras cada vez
mais fragmentárias, relacionando textos, imagens e sons, e os obriga a
desenvolver uma atitude mais seletiva frente à grande quantidade de
informações a que estão expostos. Por outro lado, incita os seres a terem um
comportamento mais descentrado; a manter relações mais efêmeras, sem se
fixar aos locais e às pessoas, a interpretar os espaços, mesmo o urbano, como
um grande hipertexto. Esse comportamento ganhou até um nome: zapping,
sendo seu praticante o zapeador.
Nesse espaço que prima pela mobilidade e a velocidade, pelo desenvolvimento
de ambientes que possibilitem essa circulação de fluxos, surgem obras que
irão hibridizar os espaços concretos das cidades com imagens virtuais, em
computadores, GPS, celulares etc. Estas obras utilizam-se desse espaço
informacional, das ferramentas tecnológicas nele disponíveis, para promover a
interação com a cidade e buscar atribuir novos sentidos ela.
E a cidade, pelo olhar dessas obras, se converte numa rede de textos, sons e
imagens. Cada ponto do espaço urbano, suas ruas, edifícios, terrenos baldios
ou semiconstruídos, transforma-se em uma fonte de informação. Caminhar
pela cidade, descobrindo esses pontos assemelha-se a navegar por um
hipertexto, ou seja, realizar uma leitura multilinear, pautada no percurso e não
no plano. A obra, assim como nas produções artísticas dadaístas, surrealistas
e situacionistas, é o próprio ato de percorrer o espaço ou relatar as
experiências nele vividas, constituindo uma manifestação que produz textos
literários disponibilizados na internet, relatórios, imagens, vídeos,
conjunto de elementos arquitetônicos de diversas épocas, símbolo do ideal de
urbanistas diversos.
Os três capítulos que compõem este estudo são dedicados a realizar um
recorte acerca relação entre a arte, os meios de comunicação e o espaço
urbano, sendo o objetivo demonstrar como a artemídia, ao utilizar-se das
ferramentas comunicacionais e informacionais atualiza as práticas de
apreensão do espaço realizadas pelos artistas dadaístas, surrealistas e
situacionistas, entre outros, ou cria novas formas de interagir com o urbano.
O primeiro capítulo dedica-se a realizar um resgate das principais produções
que precederam as obras atuais, como as vanguardas já citadas e outras,
assim como, as manifestações landartistas, as de grupos como o Fluxus e o
Archigram.
O segundo capítulo tem como objetivo constituir um panorama do espaço
urbano contemporâneo, das modificações nele operadas pelo desenvolvimento
dos meios de comunicação e informação e pela arquitetura dedicada à
mobilidade. Nesse capítulo encontra-se também uma descrição dos efeitos
dessas alterações sobre os seres, suas formas de interagirem com o ambiente
e entre si.
Por fim, o terceiro e último capítulo, dedica-se à descrição e análise de
obras mais recentes que tem o espaço como objeto, meio de produção ou
tema. As obras estão divididas em quatro itens que relacionam-se com suas
narrativas e histórias, reais ou imaginárias, que têm as cidades como tema.
São sites que incitam a participação do público na busca de constituir uma
historiografia não-oficial da cidade, coletiva, formada pelas memórias de seus
colaboradores. Fazem parte também deste tópico, produções que enfatizam a
representação da vida cotidiana dos habitantes de grandes cidades, no intuito
de formar pequenas narrativas, cujos personagens são seres que estão
geralmente em trânsito, como em metrôs, aeroportos e trens; Derivas
informacionais: neste tópico estão reunidas obras que fazem uso de aparelhos
móveis, como laptops, palms, GPS, celulares, para mapear a cidade,
tomando-a como um grtomando-ande texto e, por fim, o Ciberespaços urbanos: uma investigação
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DERIVAS, DEAMBULAÇÕES E ARTE
Ter uma vida significa criá-la e recriá-la sem parar. O homem não pode ter uma vida se não a criou por si mesmo. Quando a luta pela existência for apenas uma lembrança, ele poderá, pela primeira vez na história, dispor livremente de toda a duração de sua vida. Conseguirá, com plena liberdade, moldar na sua existência a forma de seus desejos. Em vez de ficar passivo diante de um mundo que não o satisfaz, ele vai criar um outro, onde poderá ser livre. Para poder criar a sua vida, precisará criar esse mundo. E essa criação, como a outra, é parte de uma mesma sucessão ininterrupta de recriações. Nova Babilônia só poderá ser obra dos seus habitantes, unicamente o produto de sua cultura. Para nós, ela só é um modelo de reflexão e jogo.
Constant Nieuwenhuys, Nova Babilônia
Los Angeles – Equipado de um aparelho GPS (Global Positioning System), um
laptop e fones de ouvido, um indivíduo caminha pela cidade. Enquanto anda e
observa os locais, guiado pelo aparelho de posicionamento, o interagente
constrói um mapa do seu percurso. Ao mesmo tempo, pelos fones e na tela do
laptop, ele recebe informações dos lugares por onde passa: histórias,
mitologias e lendas, poemas, referências a outras obras artísticas, imagens e
uma série de outros dados que contextualizam o trajeto percorrido, como se o
indivíduo interagisse com o espaço, transitando pelo tempo: o presente, que
ocorre no momento em que caminha e o passado, referente aos textos que
ouve, lê ou observa nos aparelhos que carrega. Esses conhecimentos, aliados
às percepções do indivíduo, formam uma espécie de patchwork, uma colcha de
Paris – Um artista caminha pela cidade aleatoriamente, carrega uma câmera
fotográfica e, enquanto anda, registra imagens de edifícios, pessoas, terrenos
baldios, becos etc.; também recolhe folhetos de publicidade, cartões postais,
cartazes e mais uma série de papéis, aparentemente sem sentido. Ao chegar
em casa, toma um mapa da cidade e o recorta, selecionando apenas os pontos
do espaço urbano considerados (pelas autoridades, construtores e até por
arquitetos) menos importantes, ou seja, deixa de fora os pontos turísticos ou
mais tradicionais. Cola, aleatoriamente, em uma folha de papel, esses pedaços
desconexos da cidade, reservando alguns espaços vazios entre as partes do
mapa, nos quais, cola logotipos, pedaços de fotos, trechos de informes
publicitários etc. Sua obra torna-se um mapa psicogeográfico da cidade,
composto apenas dos pontos com os quais o artista se identifica, que lhe
causam um sentimento.
Comparando os dois projetos, pode-se afirmar que eles são bastante
semelhantes. Ambos trabalham com o cenário urbano e o percebem de uma
forma parecida, isto é, como um grande texto a ser lido por meio do caminhar,
em cada local um campo informacional a se abrir para o leitor. Não um texto
com um significado já determinado, mas sim uma infinidade de frases –
representadas por cada ponto da cidade: as ruas, os prédios, as casas, as
praças, as galerias, as casas mais humildes e as mais abastadas etc. – que
são combinadas de acordo com a interpretação de cada pedestre.
Ao mesmo tempo, apesar das semelhanças, estes dois projetos possuem uma
diferença fundamental, qual seja o fato de estarem separados no tempo por
industrial de Los Angeles, por volta de 2003. Refere-se, na verdade, a um
projeto de experimentação narrativa com mídias híbridas (GPS, Internet,
gravações de áudio e vídeo etc.) chamado 34north118west2, concebido por
Jeff Knowlton, Naomi Spellman e Jeremy Hight (LEÃO, 2004). Já o segundo é
uma simulação da forma de produção do movimento Internacional
Situacionista, que atuou do início de 1950 até meados de 1970.
Como demonstra esta comparação, as ferramentas mudaram, e muito. Da
colagem no papel para as telas de computadores portáteis. Da caminhada
aleatória, perdendo-se pelos espaços, para o sistema de localização via
satélite. Mas os objetivos dos artistas, ao realizarem estas caminhadas pela
cidade, de certa forma, ainda se assemelham. Nos dois casos, o que se
pretende é ressignificar o espaço urbano, escapar dos lugares-comuns, como
os pontos turísticos, já tão saturados de significados. Eles pretendem descobrir
a cidade, mas uma cidade real, com suas diferenças, opressões, suas ruas,
seu trânsito.
Mas, antes de entrar na análise mais profunda de obras como 34north118west
– objetivo proposto nesta pesquisa – como demonstrou a descrição acima,
acerca da obra situacionista, é relevante realizar um panorama da relação da
arte com o espaço urbano, investigando esses antecedentes artísticos que,
pode-se afirmar, são como os antepassados das derivas ou errâncias atuais.
2
O primeiro movimento é o Dadaísmo, visto que a primeira (e única!) excursão
dadaísta foi, em alguns aspectos, a inspiração ou o ponto de oposição para as
derivas surrealistas e para as teorias de (re)construção do espaço operadas
pelos situacionistas e, de certa forma, antecedem as obras realizadas na Land
art. O fato de o Dadaísmo influenciar os movimentos posteriores, condiciona
uma descrição cronológica, o que não significa, é sempre importante frisar, que
um movimento tenha anulado o outro quando de seu surgimento, muito pelo
contrário, estas manifestações artísticas, muitas vezes, aconteceram
simultaneamente.
1.1 A cidade banal
Durante os primeiros anos do século XX, o tema do movimento foi um dos objetivos
principais das investigações das vanguardas. O movimento e a velocidade haviam se
consolidado como uma nova presença urbana que podia ser observada tanto nos
quadros dos pintores como nos versos dos poetas. No princípio, realizaram-se
tentativas de fixação do movimento através dos meios tradicionais de representação.
Contudo, depois da experiência dadaísta se passou da representação do movimento à
sua prática no espaço real. A partir das excursões dadaístas e das posteriores
deambulações dos surrealistas, o ato de percorrer o espaço seria utilizado como forma
estética capaz de substituir a representação e, por conseguinte, todo o sistema da
arte. (CARERI, 2002, p. 70)
“O que é Dada?”, essa foi a pergunta feita aos leitores da revista Der Dada,
publicada em Berlim em dezembro de 1919. No mesmo texto, uma série de
dados tentava sugerir uma resposta, que poderia variar desde um brinquedo
infantil até um seguro contra incêndio (ELGER, 2005, p.6), o que levaria à
contradição expressa nesse artigo era, na verdade, a marca registrada do
movimento.
A ingenuidade do termo e, ao mesmo tempo, a liberdade de interpretação que
proporcionava, combinava com a negação das convenções burguesas, das
tradições da arte e da literatura e das estruturas formais da sociedade.
Estabelecidos em cidades como a já citada Zurique e, também, em Berlim,
Hanôver, Colônia, Nova Iorque, Paris, entre outras, os dadaístas contaram com
um amplo apoio internacional. Em cada local, um tipo diferente de
manifestação: em Zurique apresentavam produções literárias no palco; em
Berlim, configurava-se em protesto político; em Colônia, dedicavam-se ao
aperfeiçoamento da criação de imagens e assim por diante.
Seus trabalhos eram a expressão de uma oposição às convulsões sociais e
políticas da época, exposta em obras artísticas visuais anárquicas, irracionais,
contraditórias e sem sentido. Suas ações primavam pelo aspecto prático, ativo,
com o objetivo de fazê-las surtir efeito em seu próprio tempo. Escândalo,
choque e surpresa eram as reações mais constantes nas apresentações
dadaístas, que geralmente acabavam em tumulto e distúrbios. O que levava as
autoridades a perseguir o movimento, proibindo o funcionamento de revistas,
prendendo ativistas, fechando exposições ou confiscando obras. Era a tática de
rejeição às regras e ruptura de todas as barreiras, assim como descreve Hugo
A nossa tentativa para entreter o público com coisas artísticas impele-nos, de maneira
instrutiva, assim como estimulante, para o ininterruptamente vivo, novo e ingênuo. É
uma corrida com as expectativas do público, que exige todos os nossos poderes de
invenção e argumento. (ELGER, 2005, p. 10).
Ao contrário dos futuristas e dos expressionistas, eles não viam na guerra
nenhum ato coletivo heróico para a juventude européia. Jovens idealistas como
eles, nomes que integravam movimentos críticos e artísticos, como Umberto
Boccioni, August Macke, August Stramm e Franz Marc, foram abatidos em
guerra. Todo esse clima de horror indignava os dadaístas, que reclamavam
uma atitude dos habitantes das nações em guerra contra essa condição
insustentável. Hans Arp diz que os dadaístas queriam “destruir as fraudes da
razão e descobrir uma ordem irracional” (ELGER, 2005, p.8).
Esse contexto de guerra e violência marcou muito a arte dadaísta. Em suas
produções podia-se encontrar poemas sonoros fonéticos sem sentido,
nomeados de poemas simultâneos porque eram lidos ao mesmo tempo por
diversos intérpretes posicionados no palco, uma referência ao som das
trincheiras e da dinâmica da vida urbana moderna. Nesses poemas sonoros, a
ordem tradicional, o som e o significado eram abolidos, sendo as palavras
esquadrinhadas, dissecadas em sílabas individuais, levando ao esvaziamento
de sentido da linguagem, como forma de devolver-lhe a “sua imaculada
inocência e pureza” perdidas com o jornalismo. (ELGER, 2005, p. 12).
Praticavam também a colagem, uma inspiração no Cubismo de Pablo Picasso
e Georges Braque, e a fotomontagem. Os objetivos propostos nos poemas
nos poemas aleatórios, construídos por meio do recorte de trechos de
diferentes textos, escolhidos e dispostos ao acaso.
As performances dadaístas eram um dos pontos altos de suas produções. Em
uma dessas apresentações, organizada por André Breton, na Salle Gaveau, os
integrantes aparecem vestidos com revólveres amarrados à cabeça, roupa de
bailarina clássica, avental ou apenas com as mangas da camisa. Assim um
crítico da época descreve essa apresentação:
Com o mau gosto que os caracteriza, desta vez os dadaístas se utilizaram de táticas
oriundas do terrorismo. A cena aconteceu num sótão, com todas as luzes apagadas.
De uma tampa aberta, se escutavam gemidos. Algum engraçadinho, escondido atrás
de um armário, xingava o público. Os dadaístas, de avental branco, iam e vinham no
palco: Breton mastigando fósforos, Ribemont-Dessaignes gritando a todo instante –
‘chove sobre a caveira’, Aragon estava engaiolado, Soupault brincava de
‘esconde-esconde’ com Tzara, enquanto Benjamin Péret e Serge Charchoun brincavam de se
estapear as mãos (...).(GLUSBERG, 1987, p. 19).
Das performances dadaístas, uma das mais significativas aconteceu em 14 de
abril de 1921. A apresentação abria a Grand Saison Dada e tinha como
objetivo renovar os propósitos do grupo que, nessa época, estava em um
período de diferenças e polêmicas internas. Ela inauguraria, também, o que
seria uma série de excursões aos lugares mais banais da cidade, mas que,
infelizmente, se reduziu apenas a esta, uma visita de dez dadaístas à Igreja de
Saint-Julien-le-Pauvre, no centro de Paris:
(...) O grupo convida ‘seus amigos e seus adversários’ para este evento que prometia
reproduzir um típico passeio de turistas ou colegiais. É lógico que a verdadeira
pessoas se juntam para a visita, que transcorreu sob uma forte chuva. Breton e Tzara
ficam provocando o público com discursos, Ribemont-Dessaignes se faz de guia –
diante de cada coluna ou estátua ele lê um trecho, escolhido ao acaso, do Dicionário
Larousse. Depois de uma hora e meia os espectadores começam a se dispersar.
Recebem então pacotes contendo retratos, ingressos, pedaços de quadros, figuras
obscenas e até notas de cinco francos com símbolos eróticos. (GLUSBERG, 1987, p.
20).
Hans Richter descreve esta primeira excursão como um grande fracasso:
The first excursion was to be on 14th April, to Saint-Julien-le-Pauvre. This was a
deserted, almost unknown church in totally uninteresting, positively doleful
surroundings. More excursions were due to take place later. The guides were to be
Gabrielle Buffet (Picabia’s first wife), Aragon, Breton, Eluard, Fraenkel, Huszar (of De
Stijl), Péret, Picabia, Ribemont-Dessaignes, Rigaut, Soupault and Tzara. Picabia
backed out at last moment, as he usually did on public occasions. (...) This first
excursion, manned by the whole Dada group, was a complete failure. It rained, and no
one came. This idea of further similar enterprises was abandoned. (RICHTER, 2004,
183-184).
Mas, essa passagem, como diz Breton, “das salas de espetáculo para o ar
livre” (CARERI, 2002, p. 69) é tido como o primeiro passo de uma grande série
de excursões, deambulações e derivas que atravessarão todo o século.
A inovação da ação dadaísta está em passar de uma representação tradicional,
uma pintura, por exemplo, para uma ação efetiva no espaço urbano. O próprio
ato de andar, de se movimentar pela cidade torna-se a obra.
Os futuristas também tinham o espaço urbano como objeto, a cidade futurista
era uma cidade atravessada por fluxos de energia e por torvelinhos de massas
estática, e que se punha em marcha com os automóveis a toda a velocidade,
com as luzes, com os ruídos, com a multiplicação dos pontos de vista
prospectivos, e com a metamorfose constante do espaço. Mas essa
performance dadaísta pelo espaço urbano torna-se muito mais significativa por
incorporar o elemento de interferência efetiva no ambiente.
Os dadaístas se declaravam “contra o futuro” por considerar que ele já estava
sendo vivido no presente, onde eles poderiam encontrar todas as classes de
universos possíveis. A cidade dadaísta era marcada pela banalidade, onde as
utopias hipertecnológicas dos futuristas foram abandonadas, pois, seu objetivo
era a dessacralização da arte e uma das maneiras de alcançá-la era por meio
destas visitas aos lugares insignificantes da cidade, uma união da arte com a
vida, de estar no meio do público, misturar-se a ele, ao invés de esperá-lo nas
casas de espetáculo.
Trata-se do mesmo cenário – a Paris do século XX – por onde o flâneur,
eternizado na obra de Walter Benjamin, operava suas errâncias, seus passeios
vagarosos de contemplação da cidade e da vida cotidiana, opostos à
velocidade da modernidade. Os dadaístas elevam essa ação ao nível de
atitude estética. Apesar de se constituir em uma atitude apenas simbólica – o
ato de andar – ao realizarem esta apresentação, os dadaístas se aproximam
dos arquitetos e urbanistas, se inserem em uma tradição intervencionista que
estava reservada apenas a eles.
Para o arquiteto Francesco Careri, essa primeira ação dos dadaístas tem um
(...) o readymade urbano realizado em Saint-Julien-le-Pauvre representa a primeira
operação simbólica que atribui um valor estético a um espaço em vez de a um objeto.
O Dadaísmo passa da tradução de um objeto banal ao espaço da arte e a tradução da
arte – através da pessoa e dos corpos dos artistas – a um lugar banal da cidade.
(CARERI, 2002, p. 76).
Nesta operação, eles não deixaram marcas, não construíram nenhuma
escultura ou pintura, o que se produziu foram relatórios da visita, fotografias
que a documentaram e, posteriormente, os artistas desenvolveram poemas e
textos dedicados ao acontecido, mas a verdadeira produção estava realmente
no fato de terem concebido a ação e de estarem naquele pequeno jardim em
frente à igreja, um jardim como tantos outros, um jardim quase doméstico,
banal, sem o glamour dos locais turísticos, insignificante se comparado à
catedral de Notre Dame, por exemplo, mas que, durante a performance adquire
um significado novo, artístico.
Para Francesco Careri, talvez esse seja o motivo de não terem mais havido
outras excursões, o fato de a ter realizado naquele local equivalia a ter
realizado o mesmo evento por toda a cidade.
Apesar de ainda experimentarem, em Paris, um certo entusiasmo após a
reunião de muitos integrantes da primeira fase do movimento em Zurique, os
novos manifestos e publicações não foram suficientes para renovar o
movimento, uma vez que, com o fim da guerra, não tinham mais um objetivo
comum que os unia. Como observava André Breton: “São acima de tudo as
vez maiores, levando a um desentendimento entre Tzara e Breton em 1921,
uma cisão que abalaria definitivamente o movimento.
Após conhecer as teorias de Freud, André Breton intensificou em suas
produções o caráter automático e aleatório, deixando de lado as contribuições
dadaístas agressivas, provocadoras e satíricas, substituindo-as por uma
literatura sem controle racional, baseada no subconsciente. Suas descobertas
foram publicadas no Primeiro Manifesto Surrealista, em 1924, sendo bastante
aceito por diversos artistas e escritores que buscavam técnicas renovadas de
construção artística, principalmente no momento em que o Dadaísmo perdia
sua influência e razão de ser. Paul Eluard, Philippe Soupaullt, Francis Picabia,
Hans Arp, Man Ray e Max Ernst entusiasmaram-se com a idéia de Breton e a
ele se juntaram para formar o movimento Surrealista, ao qual, em 1929, Tristan
Tzara também iria se unir.
Ao fundar o Surrealismo, André Breton levou consigo a idéia de buscar um
inconsciente da cidade. É também a ela que voltaram os situacionistas e suas
percepções do ambiente urbano. E, como observado no início desse texto, com
a descrição do projeto 34north118west, tal ação tem estreita relação com
muitos projetos artísticos realizados atualmente.
1.2 A cidade inconsciente
A desconfiança frente à sociedade após o fim da Primeira Guerra, numa atitude
de negação da posição burguesa de onipotência e superficialidade, baseada
na confiança nos feitos tecnológicos e científicos, tinha como resposta uma
interesse do público, até porque suas atitudes quase sempre chocantes e
irônicas já não produziam o mesmo efeito. Foi nesse contexto que André
Breton formulou as bases do Surrealismo, movimento que, segundo ele, iria
causar uma mudança efetiva, tanto no aspecto social da existência humana,
quanto psicológica.
David Harvey, ao descrever este período, lembra da necessidade de se
construir novas bases sócio-culturais nas quais se pudesse basear, novos
mitos em quem ou no que se inspirar:
O trauma da guerra mundial e de suas respostas políticas e intelectuais abriu caminho
para uma consideração daquilo que poderia constituir as qualidades essenciais e
eternas da modernidade relacionadas na parte inferior da formulação de Baudelaire.
Na ausência de certezas iluministas quanto à perfectibilidade do homem, a busca de
um mito apropriado à modernidade tornou-se crucial. O escritor surrealista Louis
Aragon, por exemplo, sugeriu que seu objetivo central em Paris passant (escrito nos
anos 20) era elaborar um romance ‘que se apresentasse como mitologia’,
acrescentando: ‘naturalmente, uma mitologia do moderno’. (HARVEY, 2006, p. 38).
Entusiasmado com as obras de Freud, Breton imaginava ter chegado
finalmente o momento em que a arte poderia se libertar da razão, lutar contra a
cultura repressora, deixando aflorar o subconsciente e a imaginação, como ele
mesmo narra:
(...) Totalmente ocupado como ainda estava com Freud naquela altura, e familiarizado
como estava com os seus métodos de investigação que eu tive a breve ocasião de
usar em alguns pacientes durante a guerra, resolvi obter de mim mesmo o que
estávamos a tentar obter deles, nomeadamente um monólogo falado tão rapidamente
quanto possível sem qualquer intervenção por parte das faculdades críticas, um
rigorosamente quanto possível, parecido com o pensamento falado.
(KLINGSOHR-LEROY, 2004, p. 8).
A investigação a que Breton se refere no texto, na verdade, refere-se à técnica
da “associação livre”, que ele e Phillipe Soupault trabalharam durante muito
tempo e cujos resultados foram reunidos na publicação Les champs
magnétiques (Campos magnéticos), considerada a primeira manifestação da
“escritura automática”, que seria uma das marcas do movimento. Ela
representa, para o escritor, “a necessidade de permitir que a criatividade se
alimente dos níveis mais profundos do inconsciente, dos sonhos e alucinações
e que, ao mesmo tempo, exclua o mais possível o pensamento racional.”
(KLINGSOHR-LEROY, 2004, p. 8).
A visão de uma máquina de costura e um guarda-chuva sobre uma mesa de
operações desencadeava as mais diversas divagações poéticas. Quanto mais
non-sense, mais arbitrária a combinação de elementos, melhores eram os
resultados.
O conceito da abertura do subconsciente tornou possível pensar de forma
diferente e permitiu analisar e arruinar a “civilização avançada” em relação à
qual os surrealistas eram tão críticos. Neste sentido, o que o Surrealismo, e em
particular a pintura surrealista, alcançou tinha menos a ver com a inovação
técnica do que com um novo entendimento da arte. O que era importante para
os surrealistas não era a obra de arte perfeita e autônoma, mas sim o processo
através do qual era criada e as idéias que transmitia. (ERNEST apud
Há um artigo de Walter Benjamin dedicado ao movimento surrealista, em que
ele esboça alguns de seus pontos marcantes e se entusiasma com as técnicas
de produção artística baseadas no inconsciente, que, para o autor, significava
uma espécie de nova vida:
(...) Naquela oportunidade, quando irrompeu na forma de uma onda onírica engolfando
seus próprios criadores, parecia o que havia de mais integral, mais definitivo e mais
absoluto. Integrou em seu bojo tudo aquilo que tocava. A vida parecia digna de ser
vivida, apenas na medida em que a soleira a separar dormir e acordar era destruída
como por passos de inúmeras imagens a flutuarem desordenadamente, em que a
linguagem parecia autônoma, na qual som e imagem, imagem e som, se ligavam com
exatidão automática de maneira tão perfeita que não restava lugar algum para o
‘sentido’. (BENJAMIN, 1985b, p. 84).
Ao analisar a obra Nadja, de André Breton, Benjamin também destaca uma
aptidão especial nas percepções surrealistas com relação ao ambiente, em
especial, à miséria, aos aspectos que até então pareciam velados à arte e que
são expostos pelos artistas; o que, segundo ele seria um diferencial desse
movimento:
Antes desses videntes e augures ninguém percebeu até que ponto a miséria, e não
apenas a miséria social, mas da mesma forma a arquitetônica, a miséria dos
interiores, as coisas escravizadas e escravizantes são capazes de se transformar em
niilismo revolucionário. (...) Breton e Nadja é o casal de amantes que transforma em
experiência revolucionária, senão em ação, tudo aquilo que percebemos no curso de
tristes viagens na estrada de ferro (e os trens começam a envelhecer), em
acabrunhantes tardes domingueiras nos bairros proletários das grandes cidades, pela
olhadela através da janela coberta de chuva de uma residência nova. Eles conseguem
fazer explodir forças poderosas do ‘ambiente’, ocultas em todos esses objetos.
Para Benjamin, essa aptidão para perceber os espaços e transforma-los em
objetos artísticos tem seu ponto mais marcante na cidade:
(...) No centro desse universo coisificado situa-se o mais sonhado dos seus objetos, a
própria cidade de Paris. Mas só a revolta consegue fazer aparecer na sua totalidade o
seu rosto surrealista. (Ruas absolutamente vazias, nas quais apitos e tiros ditam a
decisão.) E não há rosto algum que apresente a fisionomia tão surrealista quanto o
verdadeiro rosto da cidade. (BENJAMIN, 1985b, p. 87).
Passados três anos do evento na igreja Saint-Julien-le-Pauvre, alguns
integrantes do dadaísmo, agora reunidos sob o nome de surrealistas investem
em uma nova ação de deriva, mas, desta vez, por uma área muito maior e com
objetivos diferentes dos do Dadaísmo; a tese que os guia não é a de que a
sociedade precisa ser acordada para os horrores da guerra, mas a de que
deve-se buscar o inconsciente, agir de forma automática, aleatória, deixando
aflorar a origem do pensamento.
O itinerário foi escolhido ao acaso em um mapa, sair de Paris e seguir de trem
até Blois, uma pequena cidade do interior, prosseguindo a pé até Romorantin –
uma’deambulação’ – “conversando e caminhando durante vários dias
seguidos, como uma ‘exploração até os limites entre a vida consciente e a vida
sonhada,’” (BRETON, apud CARERI, 2002, p. 80-81). Na volta da viagem,
André Breton escreveria a introdução de Poisson soluble, que mais tarde se
converteria no Primeiro Manifesto do Surrealismo, e no qual aparecerá a
primeira definição de Surrealismo, tal a importância desse evento para o
(...) ‘um automatismo psíquico puro mediante o qual se propõe expressar verbalmente,
por escrito ou de qualquer outro modo, o funcionamento real do pensamento’.
(BRETON, apud CARERI, 2002, p. 81-82).
De certa forma, a viagem que aparentemente se mostrava sem finalidade ou
objetivo se converteu em uma escritura não automática no espaço real, uma
forma de errância literária impressa na forma de uma cartografia do sistema
mental.
Francesco Careri chama a atenção para o caráter onírico dessa viagem
surrealista, como um desejo de encontrar-se nos espaços distantes, quase
desertos, bucólicos, que representariam os limites do espaço real, como se o
momento da ação se situasse fora do tempo:
O percurso surrealista se situa fora do tempo, atravessa a infância do mundo e toma
as formas arquétipas da errância nos territórios empáticos do universo primitivo. O
espaço aparece como um sujeito ativo e vibrante, um produtor autônomo de afetos e
de relações. É um organismo vivo com caráter próprio, um interlocutor que sofre
alterações de humor e que pode freqüentar-se com o fim de estabelecer um
intercâmbio recíproco. O percurso se desenvolve entre armadilhas e perigos que
provocam em quem caminha um forte estado de apreensão, no duplo sentido de
‘sentir medo’ e ‘apreender’. Este território empático penetra na mente até seus estratos
mais profundos, evoca imagens de outros mundos onde a realidade e o pesadelo
convivem juntos, transporta o ser a um estado de inconsciência no qual o Eu ainda
não está determinado. (CARERI, 2002, p. 82-83).
O próprio significado da palavra “deambulação”, nome empregado ao ato de
caminhar surrealista, carrega em si o sentido de desorientação e abandono ao
acaso, alcançar com o ato de caminhar um estado de hipnose, buscando o
suas deambulações, não mais pelos espaços campestres, mas pelos espaços
urbanos, as zonas marginais de Paris, mais uma vez palco de ações artísticas.
O livro de Louis Aragon, Le paysan de Paris aparece como um retrato dessa
nova atuação surrealista. Ao invés de quatro habitantes da cidade (Louis
Aragon, André Breton, Max Morise e Roger Vitrac) visitarem o campo, é um
camponês, o personagem ao qual se refere o título da obra, que se perde pela
cidade, é o ponto de vista daquele que observa a vertiginosidade do moderno
provocada pelo nascimento da metrópole. Uma descrição de lugares que estão
longe de fazerem parte dos itinerários turísticos, que pertencem a uma outra
cidade, menos monumental, mas mais real, mais perto do cotidiano dos
habitantes dos subúrbios.
De certa forma, superando o caráter negativo do Dadaísmo e a sua busca pelo
banal e o ridículo, os surrealistas partiram na apreensão positiva dos espaços,
depois dos territórios da banalidade se encontram os do inconsciente. O mapa
dessa cidade surrealista era produzido a partir das percepções que se tinha
dos locais enquanto se caminhava por eles, tornando a cidade um ambiente
mais maleável, onde cada passo poderia levar a uma surpresa, a um novo
afeto. Breton propõe que os locais que despertam sentimentos de bem-estar
sejam desenhados em branco, aqueles que se deseja evitar em preto e o
restante em cinza, como zonas de atração e repulsão. A cidade comporta uma
realidade invisível que pode revelar-se por um dos atos mais comuns do
Ao largo de uma deambulacão noturna, o parque de Buttes-Chaumont se descreve
como um lugar onde ‘se instala o inconsciente da cidade’, um território de experiências
no qual é possível encontrar surpresas e revelações extraordinárias. (CARERI, 2002,
p. 85-86).
(...) A investigação surrealista é uma espécie de investigação psicológica de nossa
relação com a realidade urbana, uma operação já praticada com êxito, mediante a
escritura automática e os sonhos hipnóticos, e que pode ser novamente proposta,
inclusive atravessando a cidade. (CARERI, 2002, p. 88).
O desenvolvimento do Surrealismo foi interrompido pela Segunda Guerra
Mundial que levou ao exílio boa parte dos artistas e intelectuais; dispersos, eles
não conseguiram dar continuidade aos projetos coletivos do movimento.
Enquanto os surrealistas buscavam o inconsciente da cidade por meio de
deambulações ao acaso, surgia, em resposta, uma outra forma de interação
com o espaço urbano: o movimento Internacional Situacionista, que teria à
frente de seus integrantes Guy Debord. Os situacionistas viam na forma
surrealista de perceber o espaço uma maneira de situar-se fora da arte e os
acusavam de não compreender as potencialidades das excursões dadaístas;
retomando-as, os situacionistas formularam suas próprias teses em relação ao
espaço.
1.3 A cidade nômade
Tendo vivenciado o período de efervescência de movimentos como o
Dadaísmo e o Surrealismo, Guy-Ernest Debord, em 1951 – ainda um jovem (e
em prática suas idéias políticas. Nesse ano, durante o festival de cinema de
Cannes, encontrou um grupo que parecia possuir influências e interesses
semelhantes aos seus, os letristas de Isidore Isou.
Mas a amizade não durou muito, no primeiro filme que produziram juntos,
Hurlements en faveur de Sade, os artistas entraram em conflito, levando
Debord a fundar seu próprio grupo intelectual, a Internacional Letrista (IL). O
grupo publicou, durante 1952 e 1957, dois periódicos – Internacionale Lettriste
e Potlatch – com textos que seriam a base para as práticas de apreensão do
espaço difundidas durante as décadas de 50 e 60.
Já no primeiro número de Potlach, em junho de 1954, no texto Lê jeu
psychogéographique de la semaine, aparece uma proposta de psicogeografia,
prática que será a base de todo o movimento e que consiste em mapear o
comportamento afetivo dos indivíduos em determinados espaços. Na descrição
abaixo, de como preparar um local “satisfatório” pode-se observar, em alguns
aspectos, uma semelhança com a forma de construção de poemas dadaísta,
principalmente no tom instrutivo do discurso; mas, neste caso, a colagem, no
Dadaísmo, de trechos de textos, será substituída, aqui, por espaços e
sentimentos:
(...) Em função do que você procura, escolha uma região, uma cidade de razoável
densidade demográfica, uma rua com certa animação. Construa uma casa. Arrume a
mobília. Capriche na decoração e em tudo que a completa. Escolha a estação e a
hora. Reúna pessoas mais aptas, os discos e a bebida convenientes. A iluminação e a
conversa devem ser apropriadas, assim como o que está em torno ou suas
recordações. Se não houver falhas no que você preparou, o resultado será satisfatório.
O grupo Internacional Letrista compartilhava com os dadaístas o desejo de
assumir uma posição anti-arte, na qual a deriva era uma de suas principais
formas de expressão. A deriva era uma prática que ia contra as regras da arte
e do consumo, uma ação que não deixava pistas, não se preocupava com a
representação e nem com sua conservação no tempo.
As derivas iniciaram-se como uma errância juvenil pelas ruas de Paris, durante
a noite, mas, com o tempo foram assumindo um caráter de teoria. Em Résumé
1954, Debord e Fillon assinam um texto que explica o seu significado:
(...) As grandes cidades são favoráveis à distração que chamamos de deriva. A deriva
é uma técnica do andar sem rumo. Ela se mistura à influência do cenário. Todas as
casas são belas. A arquitetura deve se tornar apaixonante. Nós não saberíamos
considerar tipos de construção menores. O novo urbanismo é inseparável das
transformações econômicas e sociais felizmente inevitáveis. É possível pensar que as
reivindicações revolucionárias de uma época correspondem à idéia que essa época
tem da felicidade. A valorização dos lazeres não é uma brincadeira. Nós sentimos em
que é preciso inventar novos jogos. (JACQUES, 2003, p. 17).
Para estes artistas, o fracasso das deambulações surrealistas se deu por
causa da grande importância que colocaram no inconsciente e no acaso,
categorias que também poderiam ser encontradas nas derivas letristas, mas
que eram trabalhadas por estes de uma forma diferente, a ênfase estava na
realidade, o campo de ação era a vida, o cotidiano e a cidade real; o espaço
urbano era um terreno passional objetivo, não somente subjetivo e
Ou seja, para eles, era impossível separar a vida entre uma existência real
alienante e uma existência imaginária maravilhosa; assim como os dadaístas
enxergavam no presente o que os futuristas esperavam encontrar no futuro, os
situacionistas enxergavam na vida real os aspectos maravilhosos que os
surrealistas encontravam nos sonhos e no inconsciente. Suas práticas de
construção de situações baseavam-se no controle dos meios e dos
comportamentos que poderiam experimentar. Ao invés de sonhar, os
situacionistas buscavam atuar.
Assim, aquelas descrições do inconsciente da cidade, freqüentes nas
produções surrealistas, vão dar lugar a um novo gênero literário configurado
sob a forma de guias de viagem, “manuais” de como utilizar a cidade, com
ênfase em locais exóticos, onde se poderia encontrar variados grupos étnicos,
pelos quais se deveria andar a pé, a partir do local considerado o
quartel-general letrista, a Place Contrescarpe.
De certa forma, prevendo algo que viria a acontecer nas grandes metrópoles
mundiais, em 1953, contando apenas dezenove anos, Ivan Chtcheglov,
conhecido como Gilles Ivain, escreve Formulário para um novo urbanismo, no
qual, utilizando-se pela primeira vez da palavra “deriva”, ele expressa sua
preocupação em repensar a arquitetura frente à cidade que se erguia, “mutante
e modificada constantemente por seus habitantes, na qual sua principal
atividade será uma deriva contínua.” (CARERI, 2002, p. 100). Texto que será
seguido por Introdução a uma crítica da geografia urbana e de Teoria da
deriva, de Guy Debord, nos quais ele expõe alguns métodos de
Apesar de os métodos utilizados pelos letristas também comportarem o acaso,
não é nele que a deriva irá se basear, visto que tem objetivos e métodos
definidos, como fixar antecipadamente, com base nas cartografias
psicogeográficas, as direções de penetração na unidade ambiental a ser
analisada; calcular a extensão do espaço a observar, que pode variar de um
grupo de casas até um bairro, ou o conjunto de uma grande cidade, com suas
periferias; a deriva deve ser realizada em grupos de dois a três pessoas
reunidas por um mesmo estado de consciência, visto que as impressões dos
distintos grupos deve permitir que se chegue a conclusões objetivas; sua
duração deve fixar-se em um dia, mas pode estender-se por semanas ou até
meses, em função das variações climáticas e da possibilidade de haver
pausas.
Guy Debord relaciona ainda outras formas de praticar a deriva, como:
(...) a ‘deriva estática consiste em não sair durante todo um dia da Gare Saint-Lazare
(...), a “cita posible” (...) e inclui também certas brincadeiras consideradas equívocas,
que têm sido sempre censuradas em nosso entorno, como, por exemplo, introduzir-se
de noite nas casas em demolição, percorrer sem parar Paris de carona durante uma
greve de transportes para agravar a confusão, ou errar pelos subterrâneos das
catacumbas proibidas ao público’. (CARERI, 2002, p. 102).
No ano de 1954, a Galerie du Passage transforma-se em extensão dos
espaços letristas, com a exposição 66 metágraphies influentielles, na qual são
apresentados alguns trabalhos de colagens, como as realizadas por Gil J.
Wolman, produzidos a partir de recortes de jornais, logotipos e outros “retalhos”
de imagens que compunham a cidade para os letristas. A mesma técnica é
encontravam colados recortes de ilhas, arquipélagos e penínsulas retirados de
um mapa-múndi.
Pode-se afirmar que estas observações e práticas realizadas na cidade tinham
como objetivo redescobrir os lugares diferenciais do espaço urbano, o exótico
estava ao alcance da mão, bastava perder-se e explorar os locais.
Em 1957, após um encontro entre vários grupos que compartilhavam ideais
como os do grupo Internacional Letrista, de consolidação de uma nova
apreensão do espaço, da participação ativa no cotidiano da cidade e do
desenvolvimento de técnicas de construção de uma arquitetura, mais
libertadora, Guy Debord e seus companheiros fundaram a Internacional
Situacionista.
As principais questões de oposição dos situacionistas eram a cultura do
espetáculo, a alienação, a não-participação, a passividade da sociedade.
Contra todos esses aspectos, eles ofereciam como “vacina” a participação ativa
dos indivíduos em todos os setores sociais. Assim, o espaço urbano se
configurava como o terreno ideal para a ação, a produção de novas formas de
luta, de intervenção, de reação contra a monotonia da vida moderna.
Primeiramente concentraram-se em propostas de construção de cidades reais,
para, à medida que desenvolviam suas investigações, passarem a uma crítica
feroz contra o urbanismo e o planejamento, defendendo a edificação coletiva
do espaço urbano, inclusive (e principalmente) com a participação de seus
como acreditavam os modernos, os situacionistas propunham que a sociedade
deveria transformar a arquitetura e o urbanismo, por isso, deveria-se operar
uma revolução da vida cotidiana, despertando os seres para a ação. A fala de
Debord confirma esta idéia:
(...) Sabe-se que no princípio os situacionistas pretendiam, no mínimo, construir
cidades, o ambiente apropriado para o despertar ilimitado de novas paixões. Porém,
como isso evidentemente não era tão fácil, vimo-nos forçados a fazer muito mais.
(JACQUES, 2003, p. 18).
Apesar de suas idéias revolucionárias, Paola Berenstein frisa que nunca houve
efetivamente uma teoria urbanista situacionista, ou seja, os projetos não
visavam a aplicação efetiva nos espaços, como a construção de um edifício,
por exemplo, mas sim uma proposta de apropriação e apreensão do espaço
urbano:
(...) não existiu de fato um modelo de espaço urbano situacionista, apesar da tentativa
renegada de Constant com a Nova Babilônia: o que existiu foi um uso, ou apropriação,
situacionista do espaço urbano. Assim como não existiu uma forma situacionista
material da cidade mas sim uma forma situacionista de viver, ou de experimentar a
cidade. Quando os habitantes passassem de simples expectadores a construtores,
transformadores e ‘vivenciadores’ de seus próprios espaços, isso sim impediria
qualquer tipo de espetacularização urbana. (JACQUES, 2003, p. 20).
Dessas investigações pela cidade resultaram diversas produções, como
relatórios, fotografias e até filmes. Mas o tipo de obra mais marcante do
movimento situacionista foram os mapas elaborados por meio da técnica de
colagem, reunião de recortes, bilhetes de trem, logotipos, enfim, uma infinidade
Em 1957, Guy Debord lançou Guia psicogeográfico de Paris, um mapa
dobrável para ser distribuído entre os turistas, mas cujo principal objetivo ainda
era difundir a prática do perder-se pela cidade, da deriva. O mapa mostra uma
Paris rasgada em pedaços, sem unidade, na qual os únicos locais
reconhecíveis são alguns pontos do centro da cidade “flutuando em um espaço
vazio”. O que liga esses espaços são flechas que devem ser seguidas pelo
turista, baseando-se, assim, em relevos psicogeográficos, uma forma de
experimentar a cidade de uma maneira subjetiva. O turista deve observar seus
sentimentos, as sensações despertadas por determinados lugares.
No mesmo ano, Debord lança The naked city: ilustração da hipótese das placas
giratórias na psicogeografia, uma representação da deriva, da psicogeografia e
do urbanismo unitário, realizada por meio da reunião de recortes do mapa da
cidade de Paris em preto e branco, ligados por setas vermelhas; os recortes
simbolizam os locais mais carregados de sentidos, sentimentos, enquanto as
setas funcionam como as ligações entre esses locais, as derivas. O título da
obra, The naked city, remete a um filmnoir que teria sido inspirado em um
relatório policial,e também à questão de desvendar, desnudar a cidade,
explorá-la para além dos caminhos já percorridos e conhecidos. Já o subtítulo,
ilustração da hipótese das placas giratórias na psicogeografia, faz referência às
placas giratórias e às manivelas ferroviárias responsáveis pela mudança de
direção dos trens, uma representação das mudanças de direção efetuadas
durante as derivas. Na obra, a cidade se despe completamente e suas partes
agora flutuam desorientadas, com os locais dispostos de forma dispersa,
(...) Entre os bairros flutuantes se encontra o território vazio das amnésias urbanas. A
unidade da cidade só pode ser o resultado da conexão de evocações fragmentárias. A
cidade forma uma paisagem psíquica construída mediante vãos: há partes inteiras que
são esquecidas, ou deliberadamente eliminadas, com o fim de construir no vazio
infinitas cidades possíveis. É como se a deriva começasse a criar na cidade vórtices
afetivos, como se a geração constante de paixões permitisse que os continentes
assumissem uma autonomia magnética própria, e que empreendessem sua própria
deriva através de um espaço líquido. (CARERI, 2002, p. 106).
Aliás, a referência ao mar, com ilhas, arquipélagos, correntes, continentes,
percorrerá toda a obra desses artistas, como se a cidade flutuasse em um
imenso oceano, pelo qual seus habitantes estariam quase sempre “à deriva”, a
mercê do clima, das ondas. Deriva também faz referência a um outro elemento
náutico que compõem as embarcações, a parte alargada da quilha que permite
enfrentar as correntes, aproveitando sua energia e fixando uma direção. É
como se quisessem dizer que a errância pode ser uma forma de redescobrir os
espaços, criando novos territórios, novos locais para habitar, novos rotas para
percorrer.
O espaço para os situacionistas deveria ser experimentado como um jogo, no
qual se poderia inventar novas regras, libertando, assim, a atividade criativa
das imagens sócio-culturais, arquitetando formas estéticas e revolucionárias de
sobrepujar o controle social.
Na base dessas transformações estava a questão do uso do tempo e o
conceito de trabalho. Com a automatização e a modificação dos sistemas de
produção havia mais tempo livre que, dentro do sistema de poder, era
os trabalhadores eram levados a produzir, inclusive em seu tempo livre,
consumindo dentro do sistema seus próprios rendimentos.
Nessa condição, para os situacionistas, o tempo livre deveria ser dedicado ao
jogo, tinha de ser um tempo não útil, lúdico. Era necessário buscar no cotidiano
dos seres seus desejos latentes e despertá-los, provocá-los e substituí-los,
fazendo, desse modo, com que o tempo e o espaço escapassem às regras
impostas pela cultura dominante, culminando na construção de espaços de
liberdade, como incitava o slogan situacionista: “habitar é estar em casa em
todas as partes”.
A construção de situações era a melhor forma, a mais direta, de libertar os
espaços. Quanto à ela Guy Debord afirma:
(...) Nossa idéia é a construção de situações, isto é, a construção concreta de
ambiências momentâneas da vida, e sua transformação em uma qualidade passional
superior. Devemos elaborar uma intervenção ordenada sobre os fatores complexos
dos dois grandes componentes que interagem continuamente: o cenário material da
vida e os comportamentos que ele provoca e que o alteram. (JACQUES, 2003, p. 21).
Desta forma, a deriva psicogeográfica era como um jogo, uma forma de
desvendar a cidade, transformando o tempo útil em um tempo
lúdico-construtivo, reapropriando-se do território, experimentando novos
comportamentos e novas formas de viver a coletividade.
Por outro lado, com o fim da Segunda Guerra, as cidades necessitavam com
urgência de uma reestruturação, principalmente no aspecto habitacional. Os
dominavam a pauta dos congressos e estudos arquitetônicos, principalmente
como crítica a um modelo dito massificado e anti-humanizante.
Em busca de inserir o homem no contexto da arquitetura urbana e de dotar as
cidades de aspectos mais afetivos, surgiram grupos como os situacionistas e o
Team X. Havia um intercâmbio intenso de idéias entre os dois grupos. Aldo
Van Eyck, um dos integrantes do Team X, e Constant, situacionista, eram
grandes amigos, chegando a redigir um manifesto juntos. Ao lado de Van Eyck,
Jacob Bakema foi responsável pela edição da revista Fórum, que publicava
textos situacionistas e ajudou na difusão das maquetes e imagens da obra de
Constant, Nova Babilônia , é um dos projetos mais significativos desse período,
assim definido pelo próprio artista:
Nova Babilônia não é um projeto de urbanismo. Também não é uma obra de arte no
sentido tradicional do termo, nem um exemplo de estrutura arquitetônica. Pode-se
apreendê-la na forma atual, como uma proposta, uma tentativa de materializar a teoria
do urbanismo unitário, para se obter um jogo criativo com um ambiente imaginário,
que está aí para substituir o ambiente insuficiente, pouco satisfatório, da vida atual. A
cidade está morta, vítima da utilidade. Nova Babilônia é um projeto de cidade onde se
pode viver. E viver quer dizer criar. (JACQUES, 2003, p. 29).
Em 1956, em Alba, Asger Jorn e Pinot Gallizio instalaram o Laboratório
Experimental para uma Bauhaus Imaginista, onde o nomadismo era praticado
como um rompimento com as regras da sociedade. Depois de uma visita a um
desses acampamentos nômades em um terreno de Pinot Gallizio, Constant
descobre um aparato conceitual que pretendia colocar em crise os
fundamentos sedentários da arquitetura funcionalista. Seu primeiro trabalho
passa a imaginar toda a cidade projetada para permitir uma nova sociedade
nômade que se estenderia por todo o planeta; seus trabalhos até meados anos
setenta refletirá esse desejo.
Nesse projeto está o cerne do urbanismo unitário que, assim como a proposta
dadaísta de superação da arte, tinha como objetivo a superação da arquitetura,
confluindo um conjunto de artes na construção do espaço do homem, que
voltaria a assumir a atitude primordial da autodeterminação do próprio
ambiente e da recuperação do instinto da construção da própria morada e,
desta forma, da própria vida. A função do arquiteto deveria ser a de construtor
de ambientes totais, cenários de um sonho diurno, considerando o espaço
urbano como um terreno relacional de um jogo de participação.
Em um texto coletivo de dezembro de 1959, publicado na Internacional
Situacionista, há uma definição de Urbanismo unitário:
(...) [O urbanismo unitário] opõe-se ao espetáculo passivo, típico de nossa cultura. (...)
Enquanto hoje as próprias cidades se oferecem como um lamentável espetáculo, um
anexo de museu para turistas que passeiam em ônibus envidraçados, o urbanismo
unitário vê o meio urbano como terreno de um jogo do qual se participa. O urbanismo
unitário não está idealmente separado do atual terreno das cidades. É formado a partir
da experiência desse terreno e a partir das construções existentes. Deve tanto
explorar os cenários atuais, pela afirmação de um espaço urbano lúdico tal como a
deriva o reconhece, quanto construir outros, totalmente inéditos. Essa interpretação
(uso da cidade atual, construção da cidade futura) implica o manejo do desvio
arquitetônico. O urbanismo unitário não aceita a fixação das cidades no tempo.
Baseado nesses conceitos e com o objetivo de superar a anti-arte dos
dadaístas e o próprio conceito de nomadismo, Constant tenta conceber uma
arquitetura megaestrutural e labiríntica, materializada no ato de andar. É uma
nova cidade situacionista. Diferente dos mapas de Debord, nos mapas de
Constant, os pedaços da cidade voltam a se unir para formar uma nova cidade,
na qual os elementos – bairros, percursos, ruas, trajetos de derivas – formam
uma unidade.
(...) ‘Nova Babilônia não termina em parte alguma (uma vez que a Terra é redonda);
não conhece fronteiras (uma vez que não existem economias nacionais) nem
coletividades (uma vez que a humanidade é flutuante). Todos os lugares são
acessíveis, desde o primeiro até o último. Toda a Terra se converte em uma única
morada para seus habitantes. A vida é uma viagem através de um mundo que muda
tão rapidamente que cada momento parece distinto’. (CARERI, 2002, p. 118).
O projeto de Constant era utópico, dedicado à reflexão e à crítica do presente
por meio de uma visão do futuro, baseado na idéia da construção de uma nova
sociedade formada pelo homo ludens que substituiria o homo faber, mais uma
vez a alusão ao jogo, ao caráter lúdico da interação com o espaço: “Até agora
a principal atividade do homem foi a exploração do meio natural. O homo
ludens vai transformar, recriar esse meio, segundo novas necessidades.”
(CONSTANT apud JACQUES, 2003, p. 29). Afirmação que é reiterada no
artigo Ariane au chômage:
Enquanto na sociedade utilitária se persegue a otimização do espaço, garantia de
eficácia e economia de tempo, em Nova Babilônia se privilegia a desorientação que
promove a aventura, o jogo, a mudança criadora. O espaço de Nova Babilônia tem
sem impedimentos de ordem espacial ou temporal. (CONSTANT apud JACQUES,
2003, p. 29).
Mas justamente este projeto levaria Constant a se desligar do grupo
situacionista. Nova Babilônia foi projetada para ser uma cidade nômade
mundial, ou melhor, “uma cidade móvel para uma população nômade sem
fronteiras”, construída coletivamente por aqueles que a habitam, no decorrer de
suas derivas. Era a materialização do pensamento situacionista. Mas foi
interpretado por Debord como uma forma de congelar e restringir a mobilidade.
Essa contradição levou a uma discussão entre os dois e o desligamento de
Constant.
É indiscutível a influência das propostas dos situacionistas, assim como do
Team X nos grupos que atuaram nos anos 1960 debatendo novas estruturas
urbanas, como o GEAM, o grupo inglês Archigram e Cédric Price, o grupo
francês Utopie e entre outros – Metabolistas japoneses, Achozoora e
Superstudio italianos.
Suas idéias, logo de início, conquistaram novos adeptos em diversas cidades,
principalmente da França, da Itália, da Inglaterra, Alemanha, Bélgica, Holanda,
Dinamarca e Argélia. As questões discutidas por esses grupos tinham como
base a arte e o urbanismo, mas, com o tempo, deslocaram seus interesses
para os temas políticos, reacionários, o que levaria o movimento situacionista a
ter um papel de destaque nos eventos estudantis de Maio de 1968 em Paris,
sendo um dos pilares a célebre obra de Guy Debord A sociedade do