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Desafiando a territorialidade: o Parlamento do Mercosul

O Parlamento do Mercosul surgiu em dezembro de 2005, em resposta ao reconhecimento da existência de questões que dizem respeito à região como um todo. Autoafirmando-se enquanto o órgão representativo por excelência dos interesses dos(as) cidadãos e cidadãs que pertencem a cada um dos Estados Partes, dentre eles o Brasil, esta experiência assemelha-se em quase tudo a um parlamento clássico. Seus membros são escolhidos por meio de eleições em sufrágio universal (embora alguns países ainda não as tenham realizado), de modo que o princípio da autorização permanece incólume. Os(as) participantes são representantes profissionais. O processo decisório transcorre de forma bastante similar ao de um parlamento comum, de modo que pode ser localizado entre deliberação e negociação e barganha. A grande diferença entre o Parlamento do Mercosul e os parlamentos clássicos, em termos de localização no Cubo, está na autoridade, que é consultiva.

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Neste sentido, faz-se relevante compreendermos que, no que concerne à internalização de qualquer Tratado Internacional, estes devem ser enviados para a ratificação dos respectivos Estados, mediante a assinatura de suas/seus representantes (SILVA, 2007, p. 545). No Brasil, os Tratados são encaminhados ao presidente da República que, exercendo suas atribuições de chefe de Estado, e fazendo uso de sua competência privativa, celebra-os, conforme postulado no art. 84, inciso VIII, da Constituição Federal.

O procedimento é análogo quando se trata da incorporação de normativas do Mercosul, pois existe a necessidade de executar esta mesma mecânica clássica, o que significa dizer que cada um dos textos aprovados é considerado como tratado internacional que precisa ser examinado e aprovado também pelo Congresso. Uma vez concluído esse processo, o texto só entra em vigor com a ratificação do Presidente da República (PIMENTEL, 2001). Dessa forma, embora o Parlamento do Mercosul seja uma câmara deliberativa da qual emergem propostas de políticas públicas transnacionais, que podem, inclusive, servir como mecanismo de proteção dos cidadãos e cidadãs diante de abusos dos Estados Nacionais, é necessário relativizar o poder concreto de atuação da instituição, em termos, por exemplo, de seu grau de interferência nas legislações.

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Assim sendo, o Parlamento do Mercosul desafia o princípio da territorialidade, mas preserva os princípios da autorização e do monopólio. A preservação do monopólio, em particular, é responsável por uma grande ineficiência da experiência, uma vez que o Parlamento em questão produz decisões que devem ser ratificadas pelos Estados para adquirirem status de Tratados, e que estes tratados, uma vez ratificados, muitas vezes não contam com dispositivos coercitivos para garantir sua observância. Tem-se aí um exemplo claro da ineficiência particular que se manifesta nas instituições políticas internacionais.

Uma das possibilidades seria substituir o modelo consultivo por um modelo de cogovernança, desafiando o princípio do monopólio. Esta é uma ideia que pode parecer, a primeira vista, perigosa. Tem- se a impressão de que ocorreria uma espécie de contrato social entre os Estados, com o risco de criar um grande Leviatã internacional. Destaque-se desde já que não é o caso. A ideia seria, isto sim, que os Estados-Membros abrissem mão de parte de sua soberania tendo em vista constituir garantias internacionais fundamentais para os cidadãos e as cidadãs e para tratar de outras questões de importância regional que transcendem às fronteiras nacionais. Isso poderia ser atingido através de um arcabouço jurídico calcado na ideia de Direito Comunitário.

Segundo informações do site oficial da comissão europeia,106 o

chamado direito comunitário diferencia-se do direito internacional clássico em dois pontos, quais sejam: o primado do direito comunitário sobre o direito nacional e o efeito direto. Na experiência europeia, existem dois tipos de resoluções: os regulamentos (que se aplicam da mesma forma em toda a União Europeia) e as diretivas (que são adaptadas pelos Estados-Membros para se integrarem aos princípios do direito nacional). Os regulamentos aplicam-se diretamente em todos os Estados-Membros, com força de lei, de modo que qualquer cidadão ou cidadã pode recorrer a eles em um tribunal. As diretivas possuem um caráter mais subjetivo, servindo mais como princípios à luz dos quais as leis nacionais devem ser interpretadas (mesmo que sejam anteriores às diretivas).

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É claro que, na União Europeia, o parlamento não é o único, e talvez não seja nem mesmo o principal responsável pelos regulamentos e diretivas:

Os fundadores dos Tratados de Roma de 1957 pretendiam uma ruptura com o passado. O fracasso do Conselho da Europa como resposta institucional à ideia de uma Europa unida era apontado por alguns ex-dirigentes do Conselho, como Paul-Henri Spaak, como um exemplo daquilo que o novo projeto deveria evitar a todo o custo. O novo projeto institucional seria baseado em um equilíbrio sustentável, entre intergovernamentalismo e supranacionalismo, e em um modelo constitucional liberal tripartido: um Poder Executivo que tomasse e implementasse as decisões; uma assembleia onde os vários assuntos e problemas seriam debatidos e deliberados; e um corpo judicial independente, com capacidade de rever decisões e de resolver conflitos que suscitassem problemas de legalidade. A originalidade deste novo regime internacional reside no fato de adaptar a clássica divisão tripartida dos Poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário – aos novos arranjos institucionais que resultaram do equilíbrio entre o caráter intergovernamental e suprana- cional dos processos de decisão. Contudo, as competências dos três corpos políticos – Comissão, Conselho de Ministros e Parlamento Europeu – encontram-se entrelaçadas a ponto de tornar difícil estabelecer uma divisão clara dos Poderes Executivo e Legislativo. A função executiva é partilhada pela Comissão Europeia e o Conselho de Ministros. A Comissão é um corpo político supranacional nomeado de mútuo acordo entre os Estados-Membros, mas os seus membros exercem as suas prerrogativas independentemente das vontades e interesses dos seus respectivos governos. A Comissão representa os interesses da comunidade, atua como “guardiã dos Tratados” – no sentido de garantir a observância dos tratados e do Direito Comunitário, mesmo que isto implique em infligir sanções a um Estado-Membro ou levá-lo a responder diante do Tribunal Europeu – e continua sendo a interface central do sistema de decisão (MÉNY,1998, p. 24). O Conselho de Ministros é um modelo clássico de corpo político intergovernamental composto por representantes

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dos Estados-membros que defendem os interesses dos seus próprios governos. (MALAMUD; SOUSA, 2005, p. 376, 377). Além de todas essas instituições, destacam-se ainda o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (MALAMUD; SOUSA, 2005) e uma miríade de espaços políticos menores. Como se vê, a estrutura do processo decisório europeu é extremamente complexa, mas isso tem razões históricas: esforços para integração comunitária regional na Europa vêm sendo uma constante desde antes do Tratado de Roma, com variados graus de sucesso.

O contexto do Mercosul é, sem dúvida, bastante distinto, em termos históricos, políticos e culturais, ao ponto de as variáveis serem tão múltiplas e complexas que é impossível divisá-las com clareza sem um estudo amplo dedicado exclusivamente para este fim. Independentemente disso, entretanto, o exemplo da União Europeia demonstra que é possível desafiar o monopólio em nível internacional, através de um direito de caráter comunitário, sem abrir mão da totalidade da soberania. Caso os países membros do Mercosul dediquem-se a isto, organizando um conjunto de instituições regionais capaz de enfrentar este desafio, pode ser possível mitigar a ineficiência da conjuntura política atual. O Parlamento do Mercosul, a mais importante estrutura política transnacional da região no momento, poderia ter um papel central nesta articulação.