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Partindo do pano de fundo de retorno à ordem democrática, há uma convergência de fatores que vão ensejar mudanças para ações específicas durante os anos 1990, tanto no que se refere a uma “nova cidadania”, como propõe Dagnino (1994), no momento em que atores sociais se recusam a continuar nos lugares a eles designados anteriormente, quanto no que se refere às condições propícias para que a mobilização social aconteça, no nosso caso, a mobilização de várias organizações do movimento negro, que demandam na esfera pública não só políticas públicas específicas no que concerne à raça, mas também denunciam a existência de racismo, quebrando uma ideia forte do consenso anterior – de que a harmonia nas relações étnico- raciais do Brasil era fruto da forte miscigenação ocorrida na formação social brasileira. Como consequência, cobram mudanças concretas na formulação de políticas públicas que possam intervir estruturalmente no ciclo de desvantagens pelo qual passou a população negra, quer sejam os direitos dos quilombolas, a revisão da historiografia brasileira, a criminalização das práticas de racismo, ou ainda maior acesso à educação.

Tal mobilização vem denunciar a desigualdade das condições socioeconômicas da população negra, agora ancoradas em indicadores sociais produzidos pelo próprio governo, no IPEA, a partir do final da década de 1990, e que mostram as diferenças abissais entre a população branca e a de pretos e pardos da classificação do IBGE (HENRIQUES, 2001). No que se refere ao acesso ao ensino superior,

41 Essa pesquisa tem financiamento da Finep e está na sua segunda fase de execução. Consta

de uma pesquisa qualitativa junto a gestores e professores de dez universidades das cinco regiões do país, de pesquisa quantitativa, junto a alunos das mesmas universidades dos cursos mais e menos concorridos e da análise dos editais das 94 universidades federais e estaduais que adotaram algum tipo de ação afirmativa. A pesquisa de campo tem a coordenação de Elielma Machado, e os resultados da primeira fase da pesquisa, realizada ente 2006 e 2008, estão publicados no livro Entre dados e fatos: ação afirmativa nas universidades públicas brasileiras (2010).

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esses indicadores denunciam a sub-representação da população que se autodeclara negra nas universidades. Segundo Petruccelli (2010), a taxa de estudantes universitários brancos de 20 anos de idade alcança o valor de 24,3%, mais de três vezes a taxa de “pretos e pardos” (na classificação do IBGE) nessa mesma idade (8%).

Quanto à invisibilidade de sua identidade racial, os vários movimentos negros se organizam na denúncia de discriminação racial e existência de racismo. Começam a pautar a discussão em várias frentes, no legislativo, no executivo, nas associações da sociedade civil ou nas instituições de ensino superior. Para Antonio Sérgio Guimarães (2002), houve mesmo um consenso em torno da denúncia do racismo e discriminação no momento em que se organizou o Movimento Negro Unificado (MNU).

Há um ciclo virtuoso que começa a se realizar. São vários os fatores apontados para a confluência positiva que se verificou então, já amplamente analisados pela literatura que procura interpretar essa mudança social (TELLES, 2003; HERINGER, 2004; FERES, 2006; GUIMARÃES, 2002). Destacam-se, dentre esses fatores:

a) A reorganização de grupos do movimento negro com uma pauta específica de acesso à educação e ao mercado de trabalho, além de novas estratégias, tanto no plano simbólico, como a celebração do dia da consciência negra (inclusive com a mudança da data comemorativa do dia 13 de maio para o dia 20 de novembro), quanto no plano de estratégias específicas de demandas de políticas para a população negra.

b) O reconhecimento por parte do Estado, ainda no governo FHC, da existência de racismo (SOUZA, 1997), quando se começa a falar em ação afirmativa a partir da discussão promovida pela então recém-criada Secretaria Nacional dos Direitos Humanos, que resulta em uma primeira, e ainda incipiente, proposta de algumas políticas em alguns ministérios.

c) Tal reconhecimento vem ancorado por novas análises acadêmicas que registram as desigualdades raciais (BARBOSA, 2001; HASENBALG; VALLE, 2003), análises

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que são veiculadas na grande mídia com maior destaque, ainda que elas tenham sido feitas, desde a década de 1970, com os estudos pioneiros de Carlos Hasenbalg e Nelson do Valle e Silva, na esteira das primeiras denúncias feitas por Florestan Fernandes desde a década de 1950. Mas elas ficaram restritas ao meio acadêmico por longo tempo. d) Por último, e fator fundamental, como tem sido apontado

por vários militantes, a organização de uma pauta para a Conferência de Durban em 2001, tanto por parte dos atores sociais, quando a ação afirmativa nas universidades públicas passa a ser uma das principais demandas, quanto por parte do Estado brasileiro, o qual, como signatário da Conferência, compromete-se a pensar políticas específicas de ação afirmativa para a redução das desigualdades raciais no país.

É, portanto, o momento em que se começa a discutir na esfera pública uma nova pauta sobre desigualdade social e racial. As pesquisas divulgadas pelo IPEA na virada da década de 1990 vêm, de certa forma, culminar esses estudos e ancorar as demandas dos movimentos negros, uma vez que foram amplamente divulgados fora da academia. E a divulgação dos indicadores das desigualdades sociais desagregados pelo fator raça vai ser fator determinante na formação de opinião da sociedade em geral e, em particular, dos gestores daquelas universidades públicas que logo depois começaram a implantar políticas de ação afirmativa, conforme os relatos dos entrevistados em nossa pesquisa.

Resumindo uma longa história, a redemocratização do país foi um momento propício para a mobilização de novos recursos – políticos e identitários – existentes na esfera pública. Aliada a isso, houve uma gradual “consciência da negritude”, bem registrada por Alberti e Pereira (2007), quando a questão racial se torna visível no momento em que os primeiros militantes assumem a questão racial independentemente da classe, das organizações sindicais,

profissionais ou mesmo do modelo econômico.42 Assim, a identidade

42 O livro de Verena Alberti e Amílcar Pereira é um valioso registro das várias lideranças

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racial passa a ser ressignificada em várias organizações que começam a trazer suas demandas em diversas frentes. O pequeno percentual da população negra que se escolarizou em um momento em que a educação pública era ainda mais elitista organiza-se no final da década de 1970, e iniciam-se movimentos em vários espaços sociais

em torno de sua identidade negra.43

Inicia-se, assim, um processo, como defende Melucci, à maneira que se deve olhar um movimento social, e este que se iniciou na década de 1980 será um bom exemplo de um momento rico e complexo, quando organizações negras vão eleger demandas específicas no que concerne à discriminação racial, e escolhem o acesso à educação como uma das demandas consensuais. Melucci ainda nos ajuda nesse aspecto também: lembra que não há homogeneidade no movimento social, e o MNU ilustra bem esta cautela: são várias as tensões e conflitos, mas que se fecham em pontos essenciais, dentre os quais a demanda por políticas de ação afirmativa. É o que ressalta Alexander (1998) de outra perspectiva: os movimentos sociais pensam representar a comunidade (no nosso caso, a negra) como um todo. De qualquer modo, aponta ainda o autor, é importante a “construção do problema convincente”, que sairá de organizações particulares para a esfera pública mais ampla,

que o autor chama de sociedade civil.44