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Em 1981, o Brasil tornou-se signatário da Convenção sobre a Eliminação de Todas as formas de Discriminação Contra as Mulheres (CEDAW), um dos documentos internacionais mais relevantes, voltado à proteção dos Direitos Humanos e Fundamentais das mulheres. Para promover sua efetividade, a Convenção instituiu o Comitê CEDAW, que tem por fim o exame dos progressos alcançados na aplicação da Convenção por cada um dos países signatários. Para proceder a tais análises, o Comitê CEDAW baseia-se em relatórios, informes e pareceres, enviados por cada um dos Estados nacionais acerca de sua própria situação interna, composto por, pelo menos, um relatório oficial do Governo e um Contrainforme elaborado pelas

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Organizações da Sociedade Civil. A partir daí, o comitê manifesta- se, publicamente, por meio de Relatórios periódicos acerca de cada um dos países que ratificaram a Convenção, apontando os lapsos, os aspectos positivos e, comumente, indicando recomendações de conduta aos Estados com o propósito de melhor implementar o conteúdo da Convenção.

Para este trabalho, concentramo-nos no comitê gestor responsável pela redação do contrainforme da sociedade civil brasileira à CEDAW. O Comitê é integrado por 23 Redes e Articulações da Sociedade Civil, e o documento redigido tem por finalidade subsidiar o Comitê CEDAW em sua análise sobre o relatório oficial encaminhado pelo Estado brasileiro no mesmo período. O princípio da autorização é desafiado pelo fato de que os(as) participantes do Comitê Organizador do Contrainforme, que representam associações da sociedade civil, não são eleitos(as). A territorialidade, em certa medida, também é desafiada, dado o caráter internacional do Comitê Central da CEDAW, e o objetivo do Comitê Organizador do Contrainforme de dar subsídio às avaliações do Comitê Central. Entretanto, tendo em mente que essas informações são exclusivamente sobre o caso brasileiro e que as organizações que integram o Comitê do Contrainforme são brasileiras, a territorialidade não deixa de estar presente, ainda que de forma parcial. O princípio do monopólio permanece inalterado, uma vez que a experiência não possui poder político além do consultivo.

Quanto à análise do desenho institucional, a classificação é a seguinte: no eixo Participantes, identificamos um espaço mediador entre Representantes Sociais (membros de associações da sociedade civil) e Representantes de Discursos (acadêmicos(as) engajados(as), envolvidos(as) nas reivindicações do discurso feminista). No eixo Poder, o limite do cubo foi estabelecido entre a Influência Comunicativa e o Aconselhamento, já que se trata de uma instância consultiva do Comitê com influência na sociedade civil. Por fim, no eixo Modo de Decisão, o Cubo alcança a variável da Deliberação, já que o contrainforme é um texto único, e este deve ser o critério último da tomada de posicionamento, pois há a necessidade de atingir algo semelhante a um consenso.

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A ideia do Comitê Organizador do Contrainforme é, no contexto dos três princípios que elencamos, promover a eficiência, denunciando os espaços em que um tratado firmado pelo Estado brasileiro é desrespeitado. Entretanto, há que se levar em consideração que a ausência de poder político institucional e o caráter do Comitê (consultivo/informativo) parecem distanciá-lo desse objetivo.

O que ocorre é que, embora seja um espaço de representação política e de tomada de decisões, o Comitê Organizador do Contrainforme não é institucionalizado, e suas decisões não visam à conversão direta em políticas públicas. O propósito do comitê é denunciar o desrespeito aos Direitos Humanos das mulheres, mais especificamente, o desrespeito à Convenção sobre a Eliminação de Todas as formas de Discriminação Contra as Mulheres (CEDAW).

Embora o presente trabalho tenha, até aqui, destacado a importância do empoderamento político formal e da insti- tucionalização, esta última experiência foi escolhida justamente para ilustrar a importância da não institucionalização e dos movimentos sociais clássicos, que lutam externamente, aos apare- lhos políticos institucionalizados do Estado. O Comitê Organizador do Contrainforme articula organizações feministas e de promoção dos Direitos Humanos presentes na sociedade civil de uma forma que elas dificilmente se articulariam sem ele. Isso não significa

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que o conhecimento mobilizado pelo Comitê Organizador do Contrainforme não possa ser utilizado pelo Estado em um regime de cogovernança com resultados positivos.

O que se está destacando aqui é que, mesmo sem institucionalização junto ao Estado, espaços de representação alternativa articulados por movimentos sociais possuem um papel importante para o aprofundamento da democracia. No caso específico do Comitê em questão, sua importância reside em fazer com que informações sobre o desrespeito aos Direitos Humanos das Mulheres circulem entre diversas organizações da sociedade civil e o público de forma geral. Além disso, o Comitê se constitui em uma força de pressão externa sobre o governo e o Estado, um tipo de ação tradicional dos movimentos sociais, que continua a ser fundamental nos esforços para tornar a democracia, por assim dizer, mais democrática.

Considerações finais

Ao longo deste artigo, analisamos algumas das principais problemáticas clássicas da representação, discorrendo sobre certos limites da representação política eleitoral, em especial, os limites dos grupos historicamente marginalizados e excluídos. Também explicitamos o que entendemos por representações alternativas, e dedicamo-nos a explicar o Cubo Democrático de Fung e as modificações nele realizadas. Ademais, utilizamos este instrumento para analisar três experiências concretas de representação alternativa, quais sejam: o Conselho do OP de Porto Alegre, o Parlamento do Mercosul e o Grupo Organizador do Contrainforme da Sociedade Civil Brasileira ao Comitê CEDAW.

Acreditamos que, do ponto de vista das experiências concretas estudadas, a contribuição deste artigo vem no sentido de destacar a importância de instâncias representativas da sociedade civil, como o COP de Porto Alegre e o Contrainforme da Sociedade Civil à CEDAW. A relação entre experiências como estas e o aprofundamento da democracia é direta, uma vez que, no caso do COP, trata-se de um mecanismo que viabiliza a efetividade de uma

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dinâmica de participação popular (dinâmica essa que, nos termos de Fung, contribui para o aprofundamento da justiça). Já no caso do Contrainforme, trata-se, a um só tempo, de uma experiência de combate à injustiça e a inefetividade através da garantia do cumprimento de uma Convenção que protege os Direitos Humanos de uma minoria histórica.

A análise do COP foi importante para demonstrar que não só a participação popular pode servir para mitigar os problemas da representação, como o contrário também é verdadeiro. Em determinados contextos, onde é necessário que demandas precisas vindas de uma massa de participantes sejam convertidas em modificações orçamentárias ou quaisquer textos de caráter técnico complexo, a participação não pode funcionar sem algum tipo de representação que atenda, em alguma medida, à necessidade de qualificação técnica. Já a análise do Comitê Organizador do Contrainforme da Sociedade Civil Brasileira à CEDAW permitiu ilustrar a importância que movimentos sociais e organizações da sociedade civil, não institucionalizadas, continuam a ter para o aprofundamento da democracia contemporânea. Funções importantes como a do exercício de pressão externa e a da divulgação de informações independentes são características centrais destes atores sociais e movimentos.

No que diz respeito ao Parlamento do Mercosul, pode-se dizer que instâncias de representação que vão além das fronteiras estatais são de suma importância em um contexto de transnacionalização dos fenômenos políticos. Entretanto, a própria experiência em questão apresenta uma das falhas que Fung relaciona à representação de tipo clássico, qual seja: a inefetividade ou ineficiência, manifesta e verificável pelo fato de que as decisões do parlamento em questão não possuem poder coercitivo substancial sobre os Estados. O enfrentamento de questões de caráter internacional de forma eficiente pode ser possível através de um modelo calcado na ideia de Direito Comunitário, mais além do Direito Internacional clássico, desafiando não só o princípio da territorialidade, mas também o do monopólio. Isto pôde ser observado a partir de uma breve comparação do Parlamento do Mercosul com a complexa estrutura decisória da União Europeia.

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Do ponto de vista teórico, procuramos, neste artigo, assumir uma postura crítica acerca dos mecanismos de participação e representação alternativa, analisando-os não enquanto “curas milagrosas” para os problemas da democracia liberal clássica, mas enquanto detentores de um grande potencial para a amenização de problemas específicos, contribuindo, dessa forma, para o aprofundamento da democracia. Como argumentamos anteriormente, o Cubo Democrático de Fung funciona muito bem para a realização de uma análise deste tipo. O próprio Cubo, entretanto, possui limitações que podem ser trabalhadas e corrigidas no processo de pesquisa, aplicando-se um referencial teórico- metodológico no estudo de fenômenos empíricos que permita revisá-lo e aprimorá-lo a partir do confronto com a empiria, para em seguida retornar a ela.

A mudança de foco a qual pretendemos proceder neste trabalho, deslocando o debate acerca das instituições democráticas alternativas de um plano panorâmico e especulativo para um plano particularista e analítico (isto é, das críticas à participação popular e à representação alternativa em geral, para a análise mais detida de mecanismos específicos) tem um duplo propósito. Em primeiro lugar, são abandonadas as visões maniqueístas que contrapõem partici- pação à representação, ou instituições alternativas a instituições clássicas, procurando demonstrar os papéis que desenhos institucionais diversos podem ter em contextos diferentes e com propósitos diferentes. Em segundo lugar, essa própria busca da relação entre desenho institucional, contexto e propósito do mecanismo pode vir a servir, no futuro e em estágios mais avançados dessa pesquisa, de guia para a formulação de políticas públicas mais adequadas aos contextos diversos, pautadas por mecanismos democráticos – mais participativos e mais representativos – de decisão.

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