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viment o d e mo rad ia v ai à s ur n as

e que coloca em questão a coordenação de sua ação. No caso da eleição de 2009, o que vimos foi um movimento que não foi capaz de pactuar suas diferenças em torno de objetivos comuns, o que resultou na expressiva vitória das organizações populares vinculadas ao governo de Gilberto Kassab.

Alertamos que esse é um texto exploratório, resultado de pesquisas ainda em andamento. Não conhecemos estudos que tenham se voltado a esse tema e esperamos com esta análise trazer contribuições para o avanço desse debate. Iniciamos a argumentação explicitando a definição de movimento social com a qual trabalhamos e apresentando o movimento de moradia da cidade de São Paulo. Em seguida traçamos um breve perfil dos conselheiros populares e dos representantes do poder público nas três primeiras gestões do CMH. Também descrevemos a forma como o movimento procura se organizar antes e durante a eleição para a quarta gestão, destacando os esforços e desafios implicados nessas etapas. Nesse processo descritivo, mostramos evidências da participação de partidos e governos nos rumos das eleições. Por fim, apresentamos os resultados finais da eleição para a quarta gestão do conselho, e as considerações finais do artigo.

O movimento de moradia da cidade de São Paulo

O conceito de movimento social utilizado na pesquisa tem como referência as análises de Porta e Diani (2006), cuja elaboração, por sua vez, busca uma forma de articulação entre as tradições americana e europeia de análise dos movimentos sociais e da ação coletiva. Na tentativa dessa síntese teórica, os autores definem movimento social como um tipo específico de ação coletiva, caracterizado pela combinação de três dimensões: a capacidade de anunciar e sustentar um conflito, com oponentes claramente definidos; a presença de redes de interação informal entre uma pluralidade de indivíduos, grupos e /ou organizações; e a existência de uma identidade compartilhada. Uma das consequências dessa definição, continuam os autores, é que ela nos permite diferenciar um movimento social de uma organização (PORTA; DIANI, 2006,

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p. 25-28). Como afirmam de forma categórica: “movimentos sociais não são organizações, nem mesmo de um tipo específico”. No trabalho introdutório ao tema, Porta e Diani enfatizam a diferença entre movimento social e processos organizacionais. Ou seja, embora tratemos das redes de interações e de organizações específicas como movimento social, os autores destacam a importância analítica de distinguirmos as organizações que compõem o movimento do movimento em si – por exemplo, o Greenpeace é uma organização de movimento social que faz parte do movimento ambiental, não é o movimento ambiental.

They [social movements] are networks which may either include formal organizations or not, depending on shifting circumstances. As a consequence, a single organization, whatever its dominant traits, is not a social movement. Of course it may be involved in a social movement process, but the two are not identical, as they reflect different organizational principles. (PORTA; DIANI, 2008, p. 25).

O interessante dessa distinção é que ela nos permite analisar empiricamente os processos pelos quais organizações específicas, com interesses, projetos e identidades específicas enfrentam o desafio de construir um campo comum de ação. Como lembra Melucci, um movimento social é uma abstração analítica (MELUCCI, 1996), no real o que existe é um conjunto de organizações e indivíduos frouxamente ligados entre si e que se reconhecem, e são reconhecidos, como parte de algo que é maior do que cada um isoladamente,

tende-se muitas vezes a representar os movimentos como personagens, com uma estrutura definida e homogênea, enquanto na grande parte dos casos, trata-se de fenômenos heterogêneos e fragmentados que devem destinar muitos dos seus recursos para gerir a complexidade e a diferenciação que os constitui. (MELUCCI, 2001, p. 29).

Ao erigirmos como objeto analítico o conceito de movimento social, apontamos para esse “algo maior” a partir do qual as lutas pontuais, fragmentadas, urgentes são inseridas numa textura

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relacional que conecta o tempo presente com a memória e com os projetos futuros (TATAGIBA, 2011).

Nesse sentido é que podemos falar do movimento de moradia – no singular – e de organizações do movimento de moradia, no plural. Assim, o uso analítico do conceito de movimento social incorpora a ideia de um ator social complexo, heterogêneo e plural que, justamente por essa pluralidade que o constitui, gasta parte considerável de sua energia buscando construir-se e fortalecer- se como ator coletivo (MELUCCI, 1996). Quando o movimento precisa se mobilizar diante de um evento – como a eleição dos seus representantes – essa rede intrincada de vínculos e conexões se manifesta em toda a sua complexidade e dinamismo. A ação de “agentes externos” como os partidos e os governos representa um fator de complexidade que dificulta ainda mais a tarefa da coordenação da ação.

Nesse ponto, já fica claro que, em termos de pesquisa empírica, uma questão interessante seria investigar a possível tensão entre as dinâmicas do movimento social e dinâmicas das organizações de movimento social e seus impactos na conformação e nos sentidos da ação coletiva. Essa distinção analítica entre movimentos sociais e organizações de movimentos sociais nos permite dotar de maior complexidade nossa análise também porque ela amplia o leque de atores sociais que podem, em determinada conjuntura, reconhecerem-se e serem reconhecidos como parte do movimento social (PORTA; DIANI, 2006), o que traz para o primeiro plano da análise o problema da conformação da fronteira e da natureza coletiva da ação.

Esse conceito de movimento social é bastante útil para a nossa pesquisa por dois motivos principais. O primeiro, porque, assim definido, o conceito de movimento social oferece uma oportunidade de nos aproximarmos do real, mantendo uma “postura cética” (MELUCCI, 1996) que nos permite identificar, descrever e analisar os mecanismos pelos quais indivíduos e grupos se constituem como coletividade em torno de uma demanda ou carência. Ao partirmos do pressuposto da heterogeneidade de atores sociais, trajetórias, interesses e projetos, podemos erigir como questão central justamente

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o problema da coordenação da ação dessa coletividade em torno de objetivos comuns. E, em segundo lugar, porque o conceito de movimento social nos permite articular dois planos de análise. Por um lado, permite-nos investigar as ações estratégicas, instrumentais e pragmáticas voltadas à obtenção de bens materiais e/ou imateriais e os resultados concretos dessas ações tendo em vista os fins pretendidos pelos atores sociais (a dimensão da urgência). Por outro lado, pela dimensão normativa que comporta, abre a possibilidade de inquirirmos acerca dos sentidos e consequências dessas ações para além do plano dos atores sociais e grupos individualmente considerados e seus objetivos racionalmente definidos (a dimensão emancipatória). Trabalhar com o conceito de movimento social – tal como aqui definido – permite-nos compreender as manifestações concretas dos nossos objetos empíricos e, ao mesmo tempo, faculta- nos inquirir sobre o sentido da ação, transcendendo o plano dos atores sociais (organizações, grupos ou indivíduos) individualmente

considerados.75

Nossas análises sobre o movimento de moradia (MOM) em São Paulo estão orientadas por esse referencial teórico. O movimento de moradia é hoje o principal movimento popular da cidade de São Paulo. É consenso na bibliografia que suas origens podem ser encontradas nas lutas de moradores de cortiços contra as altas taxas de água, luz e IPTU; os abusos dos intermediários; os despejos sem aviso prévio; e pela regulamentação de loteamentos no final dos anos 1970 e início dos anos 1980, conforme Gohn (1991 apud BLOCH, 2007, p. 85). Quando nos referimos ao movimento de moradia neste texto, estamos nos remetendo a essa história e a um conjunto de organizações e indivíduos que, mesmo que dela não tenham participado diretamente, mobilizam-na hoje para justificar sua luta e avaliar suas conquistas e suas derrotas. Partindo do reconhecimento de uma carência, organizações, grupos e indivíduos realizam o esforço de erigir-se como atores sociais coletivos, em torno dessa história que evoca como princípio estruturante a ideia do direito à

75 Para outras formulações em torno do conceito, Tatagiba (2009 e 2010); Tatagiba; Paterniani

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moradia digna. A simples afirmação desse direito ao mesmo tempo denuncia e aciona um campo de conflitos, atualmente muito evidente nas disputas envolvendo o direito dos pobres de morar no centro da cidade. Trata-se, como se vê, de um conflito que ao mesmo tempo incorpora e vai além da questão da moradia – como acesso à unidade residencial – por meio de referências como direito, democracia, cidadania, dignidade.

Contudo, esse compartilhamento de crenças e solidariedade – que nos permite afirmar a existência do movimento como ator social coletivo – é continuamente desafiado pelas disputas internas ao campo e pelas múltiplas e complexas relações que são estabelecidas com aliados e antagonistas, a partir das quais a identidade do movimento vai sendo continuamente negociada, redefinida e desafiada.

Embora forte e com considerável visibilidade na cidade, o movimento de moradia é muito fragmentado internamente. Há uma intensa competição entre o conjunto das organizações que o compõe e são frequentes as divergências e rachas, que geram novas organizações, muitas vezes com um perfil similar. É uma rede heterogênea, complexa, com dezenas de organizações. Uma das fontes de tensão entre as organizações do movimento diz respeito à disputa pelo acesso aos programas de moradia e políticas públicas compensatórias para população de baixa renda. Essa tensão está relacionada, por sua vez, ao papel diferenciado que as organizações do movimento passaram a ocupar (ou buscam ocupar) na operacionalização da política habitacional. A forma como está construída a política habitacional, pulverizada numa dezena de espaços de poder, em níveis federal, estadual e municipal (CYMBALISTA; SANTORO, 2007) leva as organizações a ter que atuar em diferentes espaços e a partir de diferentes estratégias, acirrando as divergências e a competição entre elas. Outro aspecto comumente mobilizado, pelos atores sociais e pela bibliografia, para explicar as disputas entre as organizações que integram o MOM refere-se à divergência em relação às formas de atuação. Especificamente, a utilização (ou não) da estratégia de ocupar

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prédios e terrenos vazios como forma de luta e as vantagens e limites do diálogo com o Estado.

Nesse cenário tão fragmentado, a União dos Movimentos de

Moradia (UMM)76 e a Frente de Luta por Moradia (FLM)77 – duas

das principais organizações articuladoras do MOM atualmente – congregam as organizações do movimento em torno dessas ênfases distintas, de forma mais ou menos polarizada. Se hoje a UMM detém posição central no diálogo com o poder público, por outro lado, é vista por outros setores do movimento, articulados em torno da FLM, como pouco combativa.

O movimento de moradia e a participação no