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O Cubo Democrático de Fung: uma abordagem experimentalista da participação

A respeito das formas de estudar as experiências concretas de participação, Fung aponta a existência de duas metodologias distintas, quais sejam: o método dedutivo e o indutivo. Apesar de bastante reconhecidos em qualquer área do conhecimento, cabe aqui desenvolver em linhas gerais o sentido específico que tais procedimentos adquirem no campo dos estudos sobre democracia.

O método dedutivo consistiria em, partindo de princípios democráticos abstratos como o da igualdade política, da autonomia individual ou da importância da razão nas decisões coletivas, analisar os mecanismos concretos de participação do ponto de vista de sua contribuição para o pleno desenvolvimento desses princípios. As sugestões de mecanismos participativos oriundas de teóricos(as) dessa corrente, ainda segundo Fung, tendem a ser impraticáveis ou irrelevantes do ponto de vista dos desafios concretos que se apresentam à democracia. Já o método indutivo consistiria em, partindo da análise de diversos mecanismos concretos de participação, tentar formular generalizações a respeito da natureza da participação. Faz-se necessário destacar, entretanto, que, segundo o autor, comparar diversas experiências de participação não leva a nenhuma grande conclusão, exceto a de que existe uma infinidade de formas que a participação pode vir a assumir.

Para superar as limitações dessas duas abordagens, Fung propõe uma terceira perspectiva analítica, que chama de experimentalista. Tal abordagem, como a indutiva, partiria de uma análise dos mecanismos concretos de participação. Ao contrário desta, entretanto, não visaria a chegar a conclusões acerca da natureza da participação, mas sim, determinar quais tipos de participação são mais eficientes para solucionar

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determinados problemas da representação clássica, o que permitiria uma reelaboração dos ideais normativos. Nesta perspectiva, as generalizações seriam possíveis, mas, por mais paradoxal que isso possa parecer, seriam “generalizações contextuais”, isto é, o objetivo não é chegar a conclusões sobre a natureza da participação ou definir quais as melhores formas de participação, mas estabelecer quais desenhos institucionais dos mecanismos funcionam melhor para sanar determinados problemas contextuais que a representação clássica possa vir a apresentar (formas específicas de injustiça, ilegitimidade, e ineficiência).

Assim sendo, para se aproximar das experiências concretas de participação e construir uma tipologia que permita analisá-las de forma a identificar quais são mais adequadas para a resolução dos problemas apontados, Fung necessita de um esquema teórico operacionalizável que possibilite uma comparação eficiente entre quaisquer experiências de participação popular. A resposta do autor é a construção de um modelo tridimensional composto pelos seguintes eixos: 1) Quem participa; 2) Como os participantes se comunicam e tomam decisões; 3) A extensão do poder dos participantes. A tal modelo, Fung dá o nome de “Cubo Democrático”. É interessante observar que nenhum desses critérios de análise é necessariamente exclusivo das experiências de participação popular, de onde decorre o potencial deste modelo para a análise dos espaços de representação alternativa.

Quanto a quem participa do processo decisório, Fung traça um eixo que vai desde as situações mais exclusivas (apenas técnicos, apenas representantes eleitos(as) [...]) até as mais inclusivas (autosseleção aberta ou a esfera pública de forma difusa). Critério semelhante utiliza em suas outras duas dimensões, organizando as formas de comunicação e decisão desde “ouvir como espectador(a)”, passando por “expressar preferências”, “desenvolver preferências” e

outros, até “deliberar”98 e “utilizar-se de conhecimentos técnicos”. No

que se refere aos níveis de poder, desenvolve uma escala que evolui de “benefícios pessoais” (caso em que a participação serviria mais

98 Neste trabalho, utilizamos o conceito de Fung de deliberação. Trata-se de um processo de

discussão no qual os(as) participantes compartilham perspectivas, experiências, opiniões e motivações uns com os outros em um processo de interação, troca e edificação que precede a tomada de decisões (p. 14-15, 2006). Não necessariamente envolve negociação e barganha.

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como terapia para o(a) participante do que como método capaz de influenciar a esfera política) até “cogovernança” e “autoridade direta”.

Para o presente trabalho, o cubo original de Fung passou por quatro alterações. A primeira, de menor consequência, inverte os eixos “autoridade e poder” e “forma de comunicação e processo decisório”. No cubo original de Fung, a autoridade direta e o conhecimento técnico eram os pontos mais próximos do vértice, e a intensidade ia decrescendo a partir daí. Parece mais lógico que a disposição seja crescente, como é

o caso do eixo Participantes.99 A segunda diz respeito ao eixo “Forma

de Comunicação e Processo Decisório”, cujo título foi alterado para “Envolvimento no Processo Decisório”. Acreditamos que esta nomenclatura expresse mais claramente a intenção original de Fung, pois o cubo frequentemente é empregado na análise de mecanismos de participação popular ligados a um todo maior, de modo que o processo decisório não ocorre apenas no interior da experiência estudada, que pode tomar parte dele em variados graus e de diversas formas. Algumas categorias claramente indicam um envolvimento muito reduzido ou inexistente no processo. É o caso, por exemplo, de “Desenvolver Preferências”, que indica um contexto praticamente sem possibilidade de externalização das ideias construídas. Um espaço como este pode ser relevante para o(a) participante e para a construção de uma cultura política a longo prazo, mas na prática não muda em nada o curso do

processo decisório em questão.100

A terceira modificação, de caráter mais fundamentalmente teórico, elimina a categoria “conhecimento técnico”. Isso se deve

99 Essa modificação é fruto de uma observação realizada pela professora Rebecca Abers,

quando da apresentação no I Seminário Internacional e III Seminário Nacional Movimentos Sociais Participação e Democracia do Núcleo de Pesquisa em Movimentos Sociais da Universidade Federal de Santa Catarina (NPMS/UFSC).

100 Alguma confusão pode advir do fato de “Deliberar” e “Expressar Preferências” serem duas

categorias separadas, uma vez que a primeira atividade abarca a segunda, bem como outras citadas no mesmo eixo. É necessário destacar, entretanto, que em alguns mecanismos é possível, por exemplo, expressar preferências sem participar diretamente do processo deliberativo. É o que ocorre com os(as) cidadãos/cidadãs nas audiências públicas. Dessa forma, embora o contrário (deliberar sem expressar preferências) seja evidentemente impossível, faz-se necessário incluir “Expressar Preferências” como uma categoria separada, pois esta se refere exclusivamente à expressão de preferências sem um envolvimento maior no processo decisório. O mesmo vale para outras categorias do mesmo eixo que possam suscitar dúvidas semelhantes.

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ao fato de o conhecimento não ser uma forma de decisão, mas sim um subsídio para a tomada de decisões – o processo de tomada de decisões pode transcorrer segundo qualquer uma das formas elencadas no eixo, com ou sem utilização de conhecimento técnico. Além disso, existem muitos tipos de conhecimento que podem se mostrar necessários e positivos – o conhecimento técnico é um deles, mas o conhecimento de cidadãos e cidadãs sem qualificação técnica a respeito da realidade social de uma comunidade específica, por exemplo, também pode se mostrar fundamental. A presença de tais formas de conhecimento tem pouco a ver com a maneira através da qual as decisões são tomadas e muito a ver com quem são os(as) participantes, podendo se fazer presente de forma significativa desde a categoria “Aberto, mas com recrutamento direcionado”. Já o conhecimento técnico é, obviamente, mais comum quando os(as) participantes são administradores(as) técnicos(as).

A última modificação realizada diz respeito à ampliação do cubo, para possibilitar avaliações adequadas de mecanismos de representação alternativa. Embora a formulação original de Fung já apresente grande potencial de aplicação nesse sentido, o fato de ter sido formulada tendo em vista a análise de mecanismos de participação popular faz com que o eixo “Participantes” não inclua categorias que façam referência a formas de representação alternativa. Embora qualquer uma das categorias já elencadas no eixo possa ser empregada no estudo de mecanismos considerados

representativos101 a ausência de categorias específicas pode levar a

imprecisões na análise.102

Para corrigir essa inadequação no modelo metodológico, recorremos novamente a Avritzer (2007) e a sua tipologia das formas de representação. A partir das formulações do autor,

101 Por exemplo, a seleção aleatória auxiliada por critérios socioeconômicos e étnicos vem

sendo utilizada em alguns mecanismos que buscam uma representação descritiva, e a categoria “Interessados(as) Profissionais” diz respeito diretamente à ideia de que um grupo de pessoas possa representar um setor da economia ou um conjunto de empresas potencialmente afetadas pelas decisões em jogo.

102 Agradecemos à professora Lígia Helena Hahn Lüchmann, que realizou uma revisão geral

do trabalho e ofereceu diversas contribuições valiosas, e cujos comentários nos levaram a perceber essa carência no modelo teórico-metodológico adotado anteriormente.

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incluímos duas categorias no eixo “Participantes”, quais sejam: “Representantes Sociais”, (referente à representação da sociedade civil) e “Representantes de Discursos” (referente à representação por advocacia, que julgamos mais adequado tratar por representação discursiva).

A primeira categoria se refere a representantes engajados(as) em um processo contínuo de especialização temática e militância político-social junto a seus/suas representados(as). Tratam-se de representantes com experiência nos temas relevantes para o processo político em questão, geralmente ligados(as) a organizações da sociedade civil que mantêm contato direto com os(as) representados(as). A segunda categoria se refere a representantes sem contato direto com seus/suas representados(as) e muitas vezes sem autorização dos(as) mesmos(as). Integrantes de ONGs que representam discursos difusos (Anistia Internacional, Greenpeace, etc.) são exemplos clássicos.

Após a tradução e as referidas modificações, o resultado é o seguinte:

Se o arcabouço teórico-metodológico aqui apresentado possui imperfeições, elas se tornarão mais evidentes conforme venha sendo empregado para a análise de experiências concretas, e isso pode permitir uma reelaboração gradual do modelo, em um processo

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dialético inerente à pesquisa. De qualquer forma, as virtudes do Cubo Democrático enquanto instrumento de análise nada têm a ver com uma pretensa (e inverossímil) infalibilidade, residindo, em vez disso, nos seguintes pontos:

1) Trata-se de um instrumento que permite, a um só tempo, a análise de mecanismos de representação e participação. Isso possui grande relevância, posto que se revela cada vez mais necessária, para determinados estudos, uma relativização desses dois conceitos e um esfumaçamento das fronteiras entre eles. Não estamos nos referindo apenas à acepção já amplamente reconhecida de que não se trata de formas conflitantes de organização política, mas de um sentido teórico mais profundo: o de que determinadas experiências podem ser classificadas tanto como participação quanto como representação. Conselhos gestores, por exemplo, são comumente tratados como mecanismos de participação, mas podem ser igualmente considerados instâncias de representação da sociedade civil, no sentido proposto por Avritzer (2007). Estudos acerca da interação dos conselhos com o Estado podem entender mais conveniente considerá-los uma experiência de participação: mas, se o foco for, por outro lado, a relação dos(as) “representantes” da sociedade civil que integram o conselho com seus/suas “representados(as)”, a postura analítica mais adequada é outra. Não raro, pesquisadores(as) analisam o perfil dos(as) participantes de experiências, como o orçamento participativo (OP), no sentido de averiguar se ocorre uma “representação” descritiva da população de forma mais ampla, o que indica que, mesmo experiências de participação popular no sentido mais direto, em que as pessoas têm liberdade de expressar sua opinião e deliberar em assembleias, podem ser entendidas enquanto instâncias

de representação de um todo mais amplo.103 Esse exercício

103 Ver, por exemplo, Gugliano et al., (2007) e Pereira et al., (2005) em que a porcentagem de

mulheres e negros(as) participantes do OP de Porto Alegre é comparada à porcentagem de mulheres e negros(as) na população da cidade.

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de relativizar as fronteiras conceituais pode servir para lançar uma nova luz sobre velhos fenômenos.

2. Ao propor que se estudem as instâncias de participação popular por um viés “experimentalista”, Fung as está tratando como experiências concretas com algum potencial para o aprofundamento da democracia, mas preocupando- se em avaliar a qualidade e o grau desse potencial em cada experiência, em vez de tomá-las imediatamente como uma espécie de panaceia. Poder-se-ia dizer que, assim como Dagnino e Tatagiba (2007) (e os(as) colaboradores(as) da obra em questão), Fung não assume um tom celebratório, mas sim uma perspectiva crítica e realista acerca das potencialidades dos mecanismos de participação popular, objetivando analisá-las a partir de considerações concretas acerca de seu desenho institucional. Mesmo nos casos em que o autor identifica alguma relevância nos mecanismos em questão, não os qualifica como solução mágica para os males da democracia liberal, mas sim como contribuições para a amenização de falhas específicas da democracia formal. Além disso, como veremos ao tratar do Conselho do Orçamento Participativo de Porto Alegre, o Cubo pode funcionar na direção contrária: ajudando a entender como experiências de representação alternativa contribuem para amenizar (ou, nesse caso específico, para impedir que ocorram) falhas importantes em mecanismos de participação popular.

Coerente em sua convicção de que os processos participativos servem para resolver problemas objetivos, Fung dedica-se a localizar no Cubo as experiências que têm por propósito resolver determinados problemas da administração pública. Assim, diferentes estratégias de participação, com distintas localizações no Cubo Democrático, servem à solução de diferentes problemas. Para a questão da legitimidade, por exemplo, o autor acredita não ser necessário um grau muito alto de autoridade (influência comunicativa seria o suficiente), mas o critério de participação necessariamente precisaria ser inclusivo e a forma de comunicação e decisão, a mais intensa

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possível. De forma similar, a aplicação do cubo enquanto instrumento de análise dos mecanismos de representação alternativa selecionados para este trabalho nos permitirá chegar a algumas conclusões acerca das experiências e da relação de seu desenho institucional com sua eficácia na solução de problemas distintos em contextos específicos.

Três mecanismos concretos de representação não