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A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA COMO ABUSO DE DIREITO E COMO EXCEÇÃO AOS DIREITOS ADVINDOS DA

Ao rememorar o pensamento de José Lamartine Correa de Oliveira, Rodrigo Xavier Leonardo53 reagrupou as teorias que discutiram a personificação da pessoa jurídica em três blocos: “as doutrinas individualistas e o antropocentrismo no direito privado moderno, as doutrinas que afirmam a existência de realidades coletivas e o normativismo e a pessoa como centro de imputação”. Tais subtítulos têm correspondência, respectivamente, com as teorias ficcionistas, realistas e da realidade técnica, denunciando uma imprecisão conceitual, bem como eventuais abusos cometidos por particulares ainda que em nome das pessoas jurídicas.

Nessa perspectiva, Rodrigo Xavier Leonardo reafirmou as limitações das teorias ficcionistas que fundamentam a desconsideração da personalidade jurídica com facilidade, tendo em vista que a personificação pode ser transposta e desprezada exatamente por se tratar de mera ficção. Assim, primeiro, salientou como tendência do judiciário norte-americano (do direito não estritamente codificado, do common law) a flexibilização do princípio da autonomia patrimonial, para ampliar as hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica. Por outro lado, criticou o estatismo do positivismo do civil law (do direito preponderantemente codificado) ao estabelecer pressupostos diferentes para o reconhecimento da personalidade dos entes coletivos. Destacou, quanto ao civil law, sistemas jurídicos que, segundo José Lamartine Correa de Oliveira, seriam minimalistas ou maximalistas a depender do grau de similitude entre entes coletivos e pessoas naturais, para o reconhecimento da personificação aos primeiros. Desta feita, nos ordenamentos jurídicos minimalistas, os requisitos para a equiparação seriam mínimos (como ocorre no direito francês). Já nos ordenamentos maximalistas, para a referida analogia haveria um rigor maior em relação aos requisitos (a exemplo do que se tem no direito suíço). 54

A partir da diferença acima, entre sistemas maximalistas e minimalistas, o referido autor identificou dualidade nos sistemas maximalistas entre os entes coletivos aptos à personificação e aqueles outros, mesmo não alcançados pela personificação, mas que, em grau menor, também seriam considerados sujeitos de direito, hábeis, a título de ilustração, a se

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LEONARDO, Rodrigo Xavier. Pessoa jurídica: por que reler a obra de J. Lamartine Corrêa de Oliveira hoje? Monografia vencedora do Concurso de Monografias Prêmio José Lamartine Corrêa de Oliveira. In: CASTRO, Rodrigo Pironte Aguirre de (org). Concurso de monografias prêmio José Lamartine Corrêa de Oliveira. Curitiba: Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Paraná, 2005, pág. 22.

fazerem representar em juízo. E, precisamente em relação aos entes personificados, destacou uma crise de representatividade ou de representação, a que Correia de Oliveira denominou crise de função, pois possível a inversão de papéis com a utilização da pessoa jurídica como mera aparência de ente coletivo, para, na verdade, satisfazerem-se interesses estritamente de algum sócio/associado, inclusive, em detrimento do ente coletivo, como maneira de burlar a lei ou lesar terceiros.

Para superação desta crise de função, José Lamartine Correia de Oliveira55 apontava a necessidade de se afastar a personalidade da pessoa jurídica, pois o ente coletivo não poderia ser utilizado como escudo, sobretudo porque a pessoa jurídica estaria a alcançar um resultado contrário à lei ou ao contrato, a subverter as razões da personificação, sendo necessário fazer com que a imputação de responsabilidade dos sócios prevaleça, de modo que se “faça como predomínio da realidade sobre a aparência”.

Ainda que excepcionalmente, portanto, a possibilidade de suspensão da personalidade, através da contextualização da técnica da desconsideração está expressamente prevista no ordenamento jurídico pátrio, como, por exemplo, no disposto no art. 50, do CC, e também pela Legislação Argentina (lá denominada Desestimacion de La Personalidad Juridica), textos que se aproximam no conteúdo.56 57

Pelo que se lê, a desconsideração da personalidade jurídica deveria ter lugar quando contextualizado o abuso de direito, quando fins particulares dos associados/sócios se sobreponham aos interesses do ente coletivo, o que será suficiente para justificar a comunicabilidade de obrigações e a quebra do princípio da autonomia patrimonial. Este quadro fático apresenta-se como um razoável jurídico, a contornar situações de crise e a

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OLIVEIRA, José Lamartine Correia de. In A dupla crise da pessoa jurídica, pág. 613, transcrito por LEONARDO, Rodrigo Xavier, op. cit., pág. 36 e 37.

56“Art. 50. Em caso de abuso de personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares

dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.” (CC) Fonte:<

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>. Acesso em 20/04/2013, às 14:00. 57

“Inoponibilidad de la personalidad jurídica: La actuación de la sociedad que encubra la consecución de fines extra-societarios, constituya un mero recurso para violar la ley, el orden público o la buena fe o para frustrar derechos de terceros, se imputará directamente a los socios o a los controlantes que la hicieron posible, quienes responderán solidaria e ilimitadamente por los perjuicios causados.” (Lei 19.550, art. 54, Argentina)Analisado e transcrito por DUBOIS, Eduardo M. Favier, in La Desestimacion de La Personalidad Jurídica Societária como Limite al Globalismo em La Argentina del siglo XXI. Fonte:< http://www.legalmania.com.ar/derecho/desestimacion_personalidad_juridica.htm>. Acesso em 21/04/2013, às 12:00.

conformar soluções economicamente eficientes. Isto é, a desestimação da personalidade do ente coletivo somente se apresentará decisão legítima e eficiente, quando, no caso concreto, perceber-se o abuso de direito, pois, do contrário, a técnica da desconsideração da personalidade jurídica poderá, a despeito de proteger os interesses de alguns credores, precipitar o desmantelamento da atividade, em torno da qual gravitam interesses vários (de trabalhadores, de parceiros empresariais, de consumidores, do fisco, dentre outros).

Portanto, trata-se de exceção, frise-se mais uma vez, pois a normalidade e o que objetivamente se espera é que os entes coletivos cumpram sua função social. Por isso mesmo, demonstra-se sem causa jurídica ou econômica, o legislar e criar hipóteses de desconsideração da personalidade de forma objetiva, porque isso subverteria e tornaria inócuo o princípio da autonomia patrimonial, que tem em mira a limitação da responsabilidade, como subprincípio a incentivar a atividade produtiva, evitando a imposição de externalidades à atividade econômica. Externalidades que, apesar de contornáveis pela absorção do risco e aumento do preço, acabam impondo desestímulo ao empreendedorismo humano, ante a imprevisível elevação do risco da atividade.

Como já visto anteriormente, as teorias da realidade, que se concentram na constatação de que os entes coletivos são “organismos vivos”, perceptíveis no cotidiano, com necessidades próprias e que, por isso, merecem ser considerados sujeitos de direitos e não simples abstração, ante os efeitos sociológicos e jurídicos da sua existência, não atendem ao equilíbrio que se espera na vida em coletividade. Centrada na ideia de vida e vontade próprias, a pessoa jurídica vista como entidade real, mais uma vez não recebe a merecida guarida legal e estatal. Mais que vida em si mesma, a pessoa jurídica tem sua existência em face da exigência de necessidades inadiáveis dos grupos sociais em que estão inseridas.

Por serem entes de atendimento de imperiosa necessidade da vida em coletividade, as pessoas jurídicas reclamam uma abordagem doutrinária que faça jus à sua imprescindibilidade; uma jurisprudência que a interprete à luz de sua inafastável função social e socializadora; uma legislação que enxergue além do interesse de lucro dos sócios, para constatar na produtividade empresarial a maior parceira no enfrentamento dos mais diversos problemas da ordem econômica. Enxergar a pessoa jurídica apenas como ente real deixa de reconhecê-la como instituição necessária à vida em sociedade que merece proteção em face do cotidiano risco de seu objeto e de sorte a adequá-lo aos mais diversos cenários socioeconômicos.

Percebe-se, por isso, que as inovações legislativas (e sua posterior aplicação) devem buscar o diálogo com outras ciências, pois sem sentido isolar o jurídico de consequências sociais e econômicas, especialmente porque as normas são estabelecidas para regular a realidade sócio-econômica, caracterizada pela escassez.

Por tal linha de raciocínio, todo arcabouço teórico a tentar conciliar as ideias ficcionistas que enfatizaram os interesses individuais daqueles que compõem os entes coletivos e realistas, aquelas que se voltam para os efeitos sociológicos dos entes coletivos, ou mesmo relações patrimoniais, irá complementar-se com as teorias da realidade técnica e da empresa, tendo-se como resultado uma legislação que busque o equilíbrio entre os vários reclames da sociedade.

Tudo isso porque a atividade empresarial é – repise-se - interesse difuso, e para que a legislação não se afaste da realidade, a denotar a crise do positivismo e a contextualizar as palavras quase proféticas de Georges Ripert58 (1880-1958): “Quando o Direito ignora a realidade, a realidade se vinga, ignorando o Direito”. É como se Georges Ripert estivesse a nos ensinar que se a pessoa jurídica, que pode ser usada indevidamente, representa um mal necessário, pois a realidade social necessita da atividade empresarial e, por vezes, exige a soma do capital de muitos empreendedores, pessoas naturais e jurídicas, realidade, pois, inevitável. Daí, a necessidade de reconhecê-la, regulá-la e incentivá-la, como realidade técnica imprescindível que é.

É dizer, demonstra-se atual e necessária uma análise econômica do direito em relação ao tema proposto: a desconsideração eficiente da personalidade jurídica. Análise que deve ser realizada não somente sob a ótica do direito e do interesse social, mas verificando, ainda, os aspectos econômicos inafastáveis, e o interesse individual de empresários e empreendedores, os quais, em um contexto de gênero/espécie são a partícula do social.

58 Partidário da teoria da realidade técnica e que defendia o reconhecimento das pessoas jurídicas como realidade social. Nesse sentido, citado e transcrito por RODRIGUES, Silvio, op. cit., pág. 90: “cette théorie parait aujourd´hui l´emporter en France, Elle affirme qu´il n´y a aucune impossibilité a concevoir des droits ce appartenant à d´autres êtres que des individus humains. Bien plus, la nature de choses commande souvent cette conception. On ne peut concevoir sans droits propres ni l´Etat, ni beaucoup de sociétes, d´associations ou établissements, Le fait, pour eux, d´etre sujets de droits, loin d´etre une fiction, est done une realité logic et parfois nécessaire.” Tradução livre: “essa teoria agora parece prevalecer na França, ela diz que não há impossibilidade de conceber os direitos que pertencem a outros seres humanos como indivíduos. Além disso, a natureza das coisas, muitas vezes impõe este desenvolvimento. Não se pode conceber sem direitos pessoais, nem as empresas públicas, nem muitas associações ou instituições, diante do fato, de que se apresentam como sujeitos de direitos, o que longe de ser uma ficção, demonstra-se, portanto, uma realidade lógica e, por vezes, necessária.

Restringir a análise do fenômeno da desconsideração da personalidade jurídica, priorizando interesses individuais de alguns credores, nas relações jurídico-econômicas, é fazer justiça no varejo (individual), mas, por outro lado, provocar eventual injustiça no atacado (social), já que o social é o somatório do individual.59

Se por um lado é fácil verificar que algumas pessoas jurídicas são formadas com a intenção de fraudar credores, com abuso do instituto da autonomia, também é fácil conferir que a maioria das empresas não está a serviço do engodo, muito pelo contrário, é formada por pessoas que, nos termos do artigo 2º da CLT, “assumem os riscos da atividade econômica”, produzindo e fazendo circular a riqueza, sendo do interesse estatal e social a preservação da empresa, na medida em que ela promove o recolhimento de tributos, o emprego, a iniciativa privada gerando bens de consumo, a infraestrutura, o melhoramento dos produtos e serviços, o incremento da concorrência e a distribuição de renda.

Tais constatações, inclusive, no caso brasileiro, são expressões de um sistema econômico que se propõe a alcançar a tão almejada justiça social, e que refletem as normas princípios contidas na CF (art. 170, caput, livre iniciativa, inc. III, função social da propriedade, e parágrafo único, livre exercício da atividade econômica). Em conclusão parcial, percebe-se o porquê da necessidade de se resguardar o princípio da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas, com destaque para as sociedades empresárias, e restringir as hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica, encontrando referidas práticas eco e apoio na concepção de pessoa jurídica defendida pelas teorias da realidade técnica e da empresa.

59 Nesse ponto, lembrança que se faz a Rui Barbosa, na sua oração aos moços. BARBOSA, Rui. Oração aos Moços. Disponível em:

http://www.casaruibarbosa.gov.br/dados/DOC/artigos/rui_barbosa/FCRB_RuiBarbosa_Oracao_aos_mocos.Pdf. Acesso em 22/04/2013, às 14:00.

1.5 A responsabilidade limitada a afastar a responsabilidade ordinária dos sócios pelo