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2.3 A D ESCONSIDERAÇÃO DA P ERSONALIDADE J URÍDICA DA S OCIEDADE E MPRESÁRIA ( ENTRE A OMISSÃO LEGISLATIVA E UMA

2.3.2 A doutrina argentina

No direito comparado, especificamente no direito argentino, a lei que trata das sociedades comerciais demonstra-se mais abrangente que o CC. Coincidente, tanto lá, quanto aqui, o desvio de finalidade, tendo em vista que o par. 3º, do art. 54, da Lei das Sociedades Comerciais Argentina, sanciona com a imputação de responsabilidade ilimitada e solidária, por eventuais prejuízos causados, os que fizerem uso desvirtuado do ente coletivo, quando a “atuação da sociedade encubra a consecução de fins extra-societários e constitua um mero recurso para violar a lei, a ordem pública”. Tende, em sentido oposto, à ampliação da aplicação da técnica da desconsideração quando malferida a “boa fé” ou quando “frustre direitos de terceiros”.154

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Art. 158. O administrador não é pessoalmente responsável pelas obrigações que contrair em nome da sociedade e em virtude de ato regular de gestão; responde, porém, civilmente, pelos prejuízos que causar, quando proceder:

I - dentro de suas atribuições ou poderes, com culpa ou dolo; II - com violação da lei ou do estatuto.

§ 1º O administrador não é responsável por atos ilícitos de outros administradores, salvo se com eles for conivente, se negligenciar em descobri-los ou se, deles tendo conhecimento, deixar de agir para impedir a sua prática. Exime-se de responsabilidade o administrador dissidente que faça consignar sua divergência em ata de reunião do órgão de administração ou, não sendo possível, dela dê ciência imediata e por escrito ao órgão da administração, no conselho fiscal, se em funcionamento, ou à assembléia-geral.

§ 2º Os administradores são solidariamente responsáveis pelos prejuízos causados em virtude do não cumprimento dos deveres impostos por lei para assegurar o funcionamento normal da companhia, ainda que, pelo estatuto, tais deveres não caibam a todos eles.

§ 3º Nas companhias abertas, a responsabilidade de que trata o § 2º ficará restrita, ressalvado o disposto no § 4º, aos administradores que, por disposição do estatuto, tenham atribuição específica de dar cumprimento àqueles deveres.

§ 4º O administrador que, tendo conhecimento do não cumprimento desses deveres por seu predecessor, ou pelo administrador competente nos termos do § 3º, deixar de comunicar o fato a assembléia-geral, tornar-se-á por ele solidariamente responsável.

§ 5º Responderá solidariamente com o administrador quem, com o fim de obter vantagem para si ou para outrem, concorrer para a prática de ato com violação da lei ou do estatuto.

A doutrina argentina, ao classificar as hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica, mede tais hipóteses pelo grau de comprometimento do princípio da autonomia jurídica, isto é, tem em comum o fato de deixar de lado algumas ou várias consequências advindas da personificação das sociedades comerciais.155 Existirão situações em que a desestimação do ente coletivo será absoluta, ou seja, haverá a declaração do desconhecimento ou a ignorância da qualidade de sujeito de direito à sociedade empresária. Como exemplo, a simulação absoluta de uma determinada sociedade ou constituição de uma sociedade que explore objeto flagrantemente ilícito.

O mais comum, entretanto, serão as desconsiderações parciais, para favorecer a credores determinados. Tratar-se-ão, à evidência, de desestimações limitadas, pois a personificação dos entes coletivos se manterá hígida, não podendo ser obstáculo, ou não sendo oponível a credores específicos e isso em razão dos pressupostos ou requisitos estipulados pela lei.

Num terceiro grupo de casos, a técnica da desconsideração da personalidade se contextualizará com a extensão da quebra de uma sociedade empresária em relação a outra, nos termos da lei argentina de regência (art. 160 e 161, da Lei 24522/95). O grupo intermediário, ainda na perspectiva da doutrina argentina – que aqui merece análise mais detalhada, porque se aproxima do sistema jurídico brasileiro – perceber-se-á com a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica quando houver conflitos com terceiros. O pedido de desconsideração da personalidade jurídica, por isso, poderá envolver terceiros alheios à administração da sociedade, seus sócios, administradores eventualmente não sócios e a própria pessoa jurídica. Os pólos ativo e passivo de eventual ação judicial - tomando-se, respectivamente, terceiros contra os membros do empreendimento, seus administradores e o próprio ente coletivo – poderão ser invertidos.

Ao se esmiuçar a desestimação da personalidade da sociedade em virtude de um conflito com terceiros, quando estes terceiros requererem o levantamento do véu, a hipótese de desconsideração será classificada como ativa, podendo ainda ser qualificada como direta ou frontal (quando os terceiros são credores da sociedade) e a ação for dirigida contra o ente coletivo, determinados sócios e os administradores do empreendimento. Para exemplificar tal hipótese foram lembrados precedentes originários de reclamações trabalhistas em que os

155 RAFFO, Francisco M. López. In El Corrimiento del Vel Societario (Alcances del art. 54, último párrafo, de la Ley de Sociedades Comerciales). Editorial Ad-Hoc, Buenos Aires, 2005, pág. 68).

empregados buscavam receber verbas trabalhistas contra sociedades que não haviam formalizado os respectivos contratos de trabalho.

É possível classificar a desconsideração ativa da personalidade jurídica também em indireta ou lateral, isto é, quando o arrefecimento da personificação se busca não para satisfazer credores da sociedade, mas sim credores dos próprios sócios ou de seus administradores. Uma terceira classificação seria resultado de um pedido de desconsideração ou iniciativa dos próprios sócios, de seus administradores, em benefício da sociedade, e contra terceiros. Em tais casos – desconsideração passiva -, há que se distinguir também a desconsideração direta e a desconsideração indireta. Na primeira situação, a desconsideração há de se operacionalizar para contestar o direito de credores da sociedade.

A título de ilustração, se o fisco pode redirecionar a execução frustrada contra os sócios e os administradores e, ainda, superar o dogma da autonomia diante de sociedades que constituam um grupo econômico, para se evitar lesão ao erário público, por outro lado, para se evitar uma tributação exagerada, ainda que entre as sociedades formalmente se possam escriturar operações mercantis, certo é que a tributação de tais operações poderá demonstrar-se contrária à realidade, ao demonstrar-se considerar que, na verdade, o grupo de sociedades, em virtude de determinadas circunstâncias (nítido controle acionário), ultime por revelar-se como uma unidade econômica.

Tal entendimento foi esposado pela Corte Suprema de Justiça da Nação (órgão de cúpula do Poder Judiciário argentino) no caso “Mellor Goodwin Combustion S.A. contra Gobierno Nacional”, em que se postulou a repetição do pagamento de impostos, sob a alegação de tributação indevida, tendo em vista a realização de operações mercantis entre sociedades do grupo Mellor, escrituradas formalmente, mas sem a efetiva transferência de mercadorias. A sociedade controladora buscou, neste caso, a desconsideração pontual de sua personalidade jurídica, extensível também à controlada, na perspectiva de um regime tributário mais favorável, tratando o grupo econômico como um único contribuinte.156

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Por esclarecedor, confira-se, numa tradução livre, trecho das razões expostas por aquela suprema corte, excerto citado por COBLES, José Hurtado, op. cit. pág. 75-104: “Os tribunais podem descerrar o véu societário no interesse dos mesmos que o tenham criado, fazendo aplicação positiva da teoria da penetração e assim mesmo admitir a invocação – como no presente caso – da teoria do grupo econômico (...) destacando-se a prevalência das razões de direito sobre o ritualismo jurídico formal, substitutivo da substância que define a justiça, apreendendo a verdade jurídica objetiva, seja esta favorável ao fisco ou ao contribuinte”.

Ainda que rara a hipótese acima, bem se vê que a técnica da desconsideração da personalidade jurídica também pode ser invocada para favorecer o empreendimento. Na mesma perspectiva e tendo em conta, mais uma vez, o princípio da preservação da empresa, a doutrina argentina classifica como passiva indireta ou lateral a invocação da teoria da desconsideração, para que dívidas pessoais dos sócios não sejam tratadas como obrigações do empreendimento.157

Além dos casos de conflitos externos entre o ente coletivo e terceiros, também teoricamente possível imaginar que conflitos internos entre os sócios, bem como entre eles e os administradores e a sociedade culminem em pedidos que relevem o dogma da separação dos patrimônios, quando os sócios controladores, por exemplo, defraudarem o patrimônio da pessoa jurídica, utilizando-a para fins extra-societários e em detrimento dos demais sócios.

A exemplo do Brasil, a Argentina optou pela regulação dos casos de desconsideração, mas pontuando cláusulas gerais como normas-princípio do direito societário. Se por um lado, tal opção se demonstrou um avanço, a bem de uma interpretação lógico-sistemática e para se evitar os efeitos negativos de uma inflação legislativa (própria do ordenamento pátrio capaz de causar a ineficiência do nosso sistema como se verá adiante), por outro tem merecido críticas, no sentido de que a positivação dos casos de desconsideração poderia cristalizar um instituto que estaria em plena evolução e que se tem baseado em cláusulas gerais já existentes na legislação civil, como o abuso de direito, a fraude à lei, a simulação, dentre outros.

Em prol da necessária segurança jurídica, a regulação das hipóteses ou dos pressupostos da técnica da desconsideração foi medida acertada. Entretanto, há o risco de uma banalização do instituto, ao se buscar uma aplicação da referida técnica que se baseie apenas em indícios de insolvabilidade, a privilegiar alguns credores, em detrimento de outros, os quais deveriam ter um tratamento isonômico no procedimento próprio: o da ação de responsabilização (art. 82, da LFRE) ou, subsidiariamente, o da execução coletiva, ou seja, através do rito falimentar (também disciplinado no microssistema da LFRE).

A desconsideração da personalidade jurídica na ação de responsabilização ou na falência irradiará seus efeitos para todos os demais credores da pessoa jurídica, inclusive credores da mesma categoria daquele que seria beneficiado pela técnica da desconsideração da personalidade jurídica individualmente. Não apenas um credor trabalhista ou um

consumidor seria beneficiado, mas a universalidade deles, em igualdade de condições, segundo a premissa da par conditio creditorum.

2.3.3 A regulação da desconsideração da personalidade como posição minoritária no