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O uso do desenho e de materiais concretos manipuláveis: refle xões quanto ao conhecimento curricular

mento em propor questões sem respostas

2.4.1 O uso do desenho e de materiais concretos manipuláveis: refle xões quanto ao conhecimento curricular

Logo no início da atividade surgiu a primeira conjectura sobre a figura formada pelos dois triângulos maiores do tangram. Para Cidinha, a justaposição destas duas peças for-

maria um losango enquanto para Gisele, por ela justapor as duas hipotenusas, resultaria em um quadrado.

231. C. Dá um losango no caso?

232. G. Achei que era quadrado que ia virar.

233. C. Pode até virar um quadrado também. O quadrado é também um losango.

No texto coletivo14, registramos que

234. TC. Num primeiro momento não tínhamos as peças em mãos. En- tão, quando pegamos o enunciado da atividade, o lemos e levanta- mos a primeira hipótese sobre que figura poderia ser formada com os dois triângulos maiores que estavam logo no início da tabela. 235. TC. A nossa primeira ideia foi que formaria um quadrado ou um

losango. A Cidinha lembrou da bandeira da Léia.

236. TC. Discutimos que o quadrado é um losango, então nossa hipó- tese inicial é verdadeira.

Do mesmo modo que os demais instrumentos de constituição de dados, apresento fragmentos do texto coletivo (entendido como uma narrativa escrita) nos diálogos, não sendo possível também sua apresentação na íntegra. Além disso, ressalto que a escrita da presente seção foi facilitada pelo texto coletivo que também alimentou o diário de campo. Por outro lado, pela dinâmica desenvolvida, as gravações em vídeo foram fundamentais para a representação da experiência, recorrendo à ordem cronológica.

Depois de discutirem outras possibilidades, além de unir os triângulos pela hipote- nusa, a discussão contemplou as dificuldades encontradas por Cidinha para fazer o regis- tro das formas desejadas. Durante uma atividade investigativa, a necessidade do registro para representar figuras geométricas permite a elaboração de representações e não apenas sua leitura. A representação, por meio de desenhos, de formas geométricas em posições não convencionais apresenta uma dificuldade ao mesmo tempo em que permite refletir sobre elementos das figuras (lados e ângulos), atividade essa que não me parece estar presente com frequência nas salas de aula da Educação Básica. Na Figura 2.31, temos os desenhos de Cidinha e de Gisele sobre as duas primeiras formas geométricas compostas com os dois triângulos maiores do tangram.

14As iniciais TC como indicação do emissor de uma fala significam que as declarações são provenientes

Figura 2.31 – Figuras formadas pelos dois maiores triângulos do tangram.

(a) Desenho de Cidinha. (b) Desenho de Gisele.

(Captura de videogravação. Autoria da pesquisadora.)

O exemplo anterior da formação de paralelogramo não-losango (apontados simul- taneamente por Cidinha e Gisele — Figura 2.31) discordou da primeira conjectura de que, ao juntar os dois triângulos maiores, formariam-se losangos. Com a experimentação (pelo desenho) foi possível realizar uma refutação heurística, como explicado por Villiers (2003), que pelo processo de prova pode ocorrer a melhoria, ajuste ou adequação de uma declaração. Esse aspecto não foi apenas compreendido na análise dos dados, mas foi por mim destacado na conversa com o grupo. Até então prevaleceu a conjectura de que a justaposição dos dois triângulos maiores resultaria em quadriláteros.

Na segunda etapa desta atividade, quando retomamos este ponto, a partir da narra- tiva oral, buscando a construção do texto coletivo, Gisele refletiu sobre a importância do material concreto para as crianças (fala 237) e relacionou o uso do desenho à sua não percepção de que haveria outras formas (fala 239).

A vivência em atividades com múltiplas respostas ou até com nenhuma resposta pa- rece não ter ocupado lugar de destaque nas experiências anteriores das professoras par- ticipantes. Gisele incomodou-se por ter imaginado que teria um resultado único, o que ela ratificou em encontros subsequentes. Isso foi relembrado durante a escrita do texto coletivo (fala 241).

237. G. Foi bom isso. Não ter as peças. Aí que você percebe como é importante o concreto.

238. G. Esse é o x da questão. O concreto dá conta e mentalmente não dava.

239. G. Aí, sabe o que eu acho interessante: a princípio eu não me pre- ocupei em fazer outra figura. Eu achei que para mim essa [qua- drado formado pela justaposição das hipotenusas dos triângulos

maiores] já era a solução, já era a resposta. Porque, olha só como é a questão da percepção, quando tá só no desenho.

240. G. Eu falei, ah, que boba, eu achando que só tem um jeito. Não é, né. Porque eu posso pegar a lateral e unir com a lateral menor. (Indicando um cateto de cada um dos triângulos maiores.)

241. TC. A Gi, mentalmente, pensou que não tivesse outras formas e já estava satisfeita com a junção dos dois TG e já partia para o segundo caso.l

O uso de desenhos ou material concreto e o modo como tais recursos podem ser ma- nipulados, tanto pelos professores quanto pelos alunos, refere-se ao conhecimento cur- ricular, conforme indicado por Wilson, Shulman e Richert (1987), pois para estes pes- quisadores, admitindo uma visão restrita de currículo, esta categoria de conhecimento inclui a compreensão dos programas e materiais que servem para o trabalho do professor. Nesta atividade, o desenho retratou apenas as imagens mentais já construídas, não sendo facilitador de explorações. Por outro lado, houve a ampliação dos exemplos a partir do momento em que as professoras fizeram uso de um material concreto (tangram em ma- deira). Essas discussões convergem com as orientações escritas por Nacarato, Mengali e Passos (2009, p. 36), quanto ao repertório de conhecimentos do professor. Concordo com estas pesquisadoras quanto à necessidade do professor ter vivências e conhecimentos que lhes permitam utilizar os materiais didáticos (materiais manipuláveis, livros didáti- cos, etc), de acordo com suas necessidades e com as possibilidades permitidas por cada um deles para a prática docente em sala de aula.

É importante ter claro quais recursos podem ser utilizados, quais ma- teriais podem ser disponíveis e onde encontrá-los; ter conhecimentos e compreensão dos documentos curriculares; e, principalmente, ser uma consumidora crítica desses materiais, em especial do livro didático.

Ainda, enquanto faziam desenhos, sem recorrerem aos tangrans de madeira, para me- lhorar seus desenhos, Cidinha solicitou uma régua. Mas, com esse instrumento, também não foi possível realizar a representação que desejava. Para Gisele, a régua é útil para que os alunos possam validar uma conjectura, deslocando-se da autoridade do professor em classificar um resultado como certo ou errado e de um hábito que também pode ser criado pelos próprios professores (fala 245).

243. TC. O registro não estava sendo fácil porque não tínhamos régua inicialmente. Fazíamos um esboço e discutimos a limitação do uso de desenhos. Mesmo depois com a régua, também não dava para fazer em escala direitinho.

244. G. Se você não quer ficar só na palavra do professor, uma maneira de comprovar é usar a régua.

245. G. É, eles [alunos] esperam isso da gente. A gente acostuma eles assim.

Como alternativa para superar as dificuldades de registrar através dos desenhos, dis- cutimos a possibilidade de usarmos colagens ou contorno das figuras a partir das peças dos tangrans em papel ou madeira, por exemplo.

Se os desenhos dificultaram as explorações, logo de imediato no contato com os tan- grans de madeira, Gisele exclamou (fala 247) ter encontrado outra figura geométrica (Fi- gura 2.32(a)). Além disso, as professoras utilizaram o material concreto para representar as formas já registradas (Figura 2.32(b) e Figura 2.32(c)) tanto para compará-las com o desenho quanto para contorná-las, facilitando o registro.

246. G. Vamos testar (no concreto)?

247. G. Tem mais um! De primeira, já foi! Achei! (Figura 2.32a).

Figura 2.32 – Figuras geométricas obtidas pela justaposição dos dois triângulos maiores do tangram.

(a) (b) (c)

(Captura de videogravação. Autoria da pesquisadora.)

Tendo em vista os quadriláteros obtidos, Gisele se surpreendeu ao ver que Cidinha formou um triângulo e com isso reviu sua primeira conjectura.

248. G. Deu triângulo! (Observando o que Cidinha fazia, conforme representado na Figura 2.33.)

249. G. Então, não é só quadrilátero. Isso é falso!

250. TC. Daí pegamos os 2 triângulos maiores do material concreto para experimentar as outras formas e encontramos: triângulo re- tângulo isósceles.

Figura 2.33 – Triângulo formado com os dois triângulos maiores de um tangram.

(Imagem elaborada pela pesquisadora a partir da videogravação.)

As professoras reafirmaram a importância do uso do material concreto para a am- pliação da exploração, para facilitar os registros e para a readequação e refutação de conjecturas. Com o uso do material concreto, as professoras puderam representar di- versas figuras geométricas e o interesse voltou-se para a classificação de cada uma delas de acordo com o número de lados. O desenho, como único recurso, incidiu em uma limitação da elaboração de imagens mentais, pautando-se nas lembranças das imagens protótipas, ou configurações geométricas que as professoras tinham em mente. Nacarato e Passos (2003) advertem que a figura estereotipada (ou protótipa) ou o objeto protótipo são um dos grandes obstáculos para o ensino e aprendizagem de geometria.

251. C. Já ví que o negócio é testar, já vi tudo.

252. G. Ainda formei outra coisa. Formei uma coisa estranha que eu não ia imaginar nunca. (Figura 2.34)

253. G. Que mentalmente eu não ia conseguir chegar nisso. Eu mal e mal só vi o quadrado. Eu, heim!

254. G. Pentágono não-convexo.

Figura 2.34 – Pentágono não-convexo obtido com os dois triângulos maiores do tangram.

(Imagem elaborada pela pesquisadora a partir da videogravação.)

Após a exploração inicial, Cidinha e Gisele começaram a movimentar sistematica- mente o quadrado ao redor de um dos triângulos maiores para obter todas as possibilida- des conforme exemplificado nas Figuras 2.35.

256. TC. Depois fomos para um triângulo maior com o quadrado. 257. G. Você posiciona aqui. (Figura 2.35a)

258. G. Ou aqui. (Figura 2.35b) 259. G. E aqui. (Figura 2.35c)

Figura 2.35 – Possíveis posições de um quadrado ao lado de um dos triângulos maiores do tangram.

(a) Primeira posição (b) Segunda posição (c) Terceira posição

(Captura de videogravação. Autoria da pesquisadora.)

Nesta etapa da atividade, a exploração-investigação foi permeada pelas reflexões quanto ao uso dos materiais didáticos e pelas formas de representação das figuras geomé- tricas. Esses dois aspectos, no que diz repeito à formação docente, tomaram lugar central na medida em que pelas dificuldades ou facilidades encontradas, pudemos perceber a im- portância da seleção de um recurso em nossas aulas e das respostas (ou ausência destas)

dos nossos alunos. No que diz respeito à exploração-investigação, apenas pelo desenho, de certo modo, podemos inferir que a atividade poderia ter sido encerrada aproximando-se de um exercício ou problema aberto enquanto que, de outro lado, com o uso dos mate- riais concretos, foi possível prossegui-la para as etapas subsequentes, não abandonando, entretanto, os desenhos.

2.4.2

Dos interesses na exploração-investigação à busca de certezas: