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Capítulo III. A crise de 2008 e o retorno das propostas de reforma do sistema monetário

III.1 A crise de 2008 e o papel do dólar no sistema monetário internacional

III.1.1 O desenrolar da crise financeira

As instituições financeiras do chamado global shadow banking system são companhias financeiras intermediárias não bancárias que não estão sujeitas à regulação do Acordo de Basileia37

(negociado pelo Comitê de Basileia sobre supervisão bancária), ao contrário dos bancos tradicionais. Esse sistema é formado principalmente por bancos de investimentos, seguradoras, fundos de investimentos, hedge funds, fundos de pensão e agências quase-públicas. Essas instituições, que não tinham acesso aos seguros de depósito ou às operações de redesconto das autoridades monetárias estatais, foram as que mais ficaram frágeis com o desenrolar da crise:

Esse sistema se desenvolveu ao longo das últimas décadas tendo como pano de fundo as complexas relações que se estabeleceram entre instituições financeiras nos opacos mercados de balcão38. Desde o final da década de 1980, esses mercados têm sido amplamente utilizados para a negociação de derivativos financeiros, por meio dos quais as instituições financeiras tanto podiam buscar cobertura de seus riscos de câmbio, de juros e de preços de mercado de outros ativos como especular sobre a tendência desses preços ou efetuar operações de arbitragem. Enquanto se restringiam as negociações desses ativos, as relações entre o sistema bancário propriamente dito e as instituições integrantes do global shadow banking system resumiam-se aos créditos que o primeiro concedia ao segundo e ao fato que era frequente a realização de operações entre ambos (FARHI, CINTRA, 2009:282-3).

37“Em julho de 2004, o Comitê de Supervisão Bancária da Basileia [...], afiliado ao Banco de Compensações Internacionais (BIS) e compreendo bancos centrais das principais economias, propôs uma estrutura para fazer convergir os padrões de capital dos bancos internacionalmente ativos no bloco. Essa iniciativa, denominada Basileia II, obriga os bancos a calcularem padrões mínimos de capitais mediante a avaliação regular dos riscos de crédito, de mercado e operacionais predominantes” (GUTTMANN, 2006: 177). O Acordo de Basileia I surgiu em 1988, após “a subcapitalização generalizada de bancos internacionalmente ativos e sua tendência à sobreofertar crédito no mercado não-regulamentado de euromoedas durante a séria Crise da Dívida de 1982- 1987 nos países menos desenvolvidos” (GUTTMANN, 2006:178). No entanto, Basileia um induziu uma piora na alocação de capital, além de dar sinais errados sobre a solidez dos bancos. Assim, o Comitê de Basileia propôs, depois de muitas propostas, estudos, consultas e revisões, o Basileia II.

38 Mercado de balcão corresponde ao mercado no qual as negociações ocorrem fora das bolsas de valores, ou seja, não existem câmaras de compensação (como nos mercados organizados em bolsas de valores) as quais organizam a transferência dos ganhos e perdas.

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Os bancos tradicionais concedem financiamento tanto com recursos próprios quanto com capital proveniente de seus depositantes. Além disso, criam moeda bancária ao concederem crédito, como discorrido no capítulo 1, e também emitem títulos de dívida. Assim, ao obterem mais recursos, mais empréstimos podem conceder para elevar seus lucros. Mas, nas últimas décadas, os bancos começaram a ter necessidade de retirar riscos de crédito de seus balanços para enfrentarem a concorrência com os demais. Eles precisavam tanto de mais recursos como também de proteção contra riscos de crédito. Para tal objetivo, começaram a adquirir “proteção contra os riscos de crédito nos mercados de derivativos, [securitizar] créditos com rendimento atrelado aos reembolsos devidos pelos tomadores de empréstimos e [criar] diversos veículos especiais de investimento (Special Investments Vehicles ou SIV), conduits ou SIV-lites” (FAHRI, CINTRA, 2009:283). Assim, podiam alavancar suas operações sem ter de acumular a quantidade mínima de capital requerida pelos Acordos de Basileia. Contudo, havia necessidade de outras agências financeiras assumirem a contrapartida, ou seja, os riscos destas operações – o que instigou o desenvolvimento das instituições que formam o global shadow banking system. Nessa conexão entre os bancos e estas instituições, ocorre um jogo de soma zero, isto é, o ganho de um lado representa a perda do outro.

Neste contexto de alta competitividade no mundo financeiro, Eichengreen (2011: 107-8) observa:

E, mais uma vez, as instituições, sentindo os ventos frios da competição, assumiram mais riscos, no esforço de manter as margens de lucro usuais. A empresa inglesa Northern Rock alavancou suas apostas, suplementando os depósitos dos clientes de varejo com dinheiro tomado emprestado de outras instituições financeiras. Os bancos islandeses ofereciam contas de poupança online, a taxas de juros inusitadamente elevadas – a ponto de despertar suspeitas – , a famílias inglesas, holandesas e alemãs, para financiar apostas arriscadas. Modorrentas instituições de poupança alemãs acolheram algumas das CDOs [Obrigações de Dívidas Colaterizadas] de pior desempenho, emitidas e distribuídas nos Estados Unidos. A alavancagem era ainda mais alta entre instituições financeiras europeias que nos Estados Unidos. Ou a confiança indevida se ampliara ou a pressão competitiva se agravara, ou uma mistura das duas. Também na Europa, os reguladores olharam para o outro lado.

Com a expansão da capacidade de empréstimo imobiliário, a compra de casas e o preço dos imóveis explodiram. De 1996 a 2006, o preço real de imóveis efetivamente

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dobrou. No entanto, os preços dos imóveis começaram a despencar. Com essa grande queda do preço dos imóveis, que eram dados em garantias dos empréstimos (lastro das Obrigações de Dívidas Colaterizadas – CDOs), somada ao aumento no grau de inadimplência, as empresas ficaram ou diante da possibilidade de insolvência ou pelo menos impossibilitados de operar dada a falta de capital.

Começou-se a sentir os efeitos mais agudos da crise a partir de julho de 2007, com repercussões nos mercados interbancários mundiais. Nesse período, havia rumores de que dois hedges funds geridos pelo banco de investimento americano Bear Sterns (com ativos garantidos por hipotecas subprimes), tinham sofridos perdas. Além disso, ele tinha vendido US$ 3,8 bilhões em bônus para fazer frente às reposições de garantias. Concomitantemente, as agências de classificação de risco começaram a rebaixar a nota de títulos garantidos por hipotecas residenciais (Residential-Mortgage-Backed Securities – RMBS) e também das CDOs (FARHI, CINTRA, 2009).

O Fed e o Banco Central Europeu (BCE) começaram a realizar vastas operações de ampliação da liquidez dos mercados. Havia expectativas de grandes prejuízos. Em janeiro de 2008, houve a divulgação de novas perdas e o rebaixamento das notas de seguradoras responsáveis por fornecer garantias às emissões de bônus de Estados e municípios americanos.

O abandono de casas estava disparando e a cadeia de securitização implodiu. Emprestadores não podiam mais vender seus empréstimos para os bancos de investimento. O mercado para CDOs praticamente desapareceu, deixando os bancos de investimentos com centenas de bilhões de dólares em empréstimos, CDOs e imóveis que eles não podiam vender.

Em março de 2008, o Bear Steans (quinto maior banco de investimentos dos Estados Unidos) ficou sem capital. O Fed ofereceu US$ 29 bilhões em garantias para sua compra pelo JP Morgan Chase (dois dólares a ação) e para evitar sua falência. Em julho do mesmo ano, houve a quebra de parte do conjunto das instituições financeiras do Federal Savings Banks (FSB), o IndyMac Bank, especializada em crédito hipotecário. Como consequência, ampliaram-se os temores dos investidores para as demais instituições do FSB, provocando outras falências. A Fannie Mae e a Freddie Mac, duas grandes agências quase-

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públicas (que tinham por objetivo prover liquidez no mercado imobiliário americano), começaram a sofrer perda de confiança. Essas companhias privadas com ações negociadas em bolsa de valores, mas consideradas como “patrocinadas pelo governo” conseguiram se financiar a um custo próximo ao do Tesouro americano e, ao mesmo tempo, operar de forma mais alavancada que as demais instituições financeiras – sustentando suas atividades com um patrimônio de apenas US$ 71 bilhões. Essa quantia podia ser consumida por um prejuízo relativamente baixo como proporção da carteira, mas enquanto o preço dos imóveis se elevava, esse risco parecia limitado (FARHI, CINTRA, 2009).

George W. Bush solicitou a aprovação de um pacote de ajuda pelo Congresso para socorrer a Fannie Mae e a Freddie Mac. Paralelamente, o Fed anunciou que lhes concederia empréstimos a curto prazo em função dos imensos passivos das duas instituições. Além das dívidas altas, a Fannie Mae, US$ 800 bilhões e a Freddie Mac, US$740 bilhões, elas tinham dado garantias a títulos hipotecários no valor de US$ 4,6 trilhões, o que representava 38% dos créditos hipotecários americanos (FARHI, CINTRA, 2009)

Para tornar a situação ainda mais complexa, grande parte desses títulos tinha sido adquirida por bancos centrais estrangeiros. Isso se devia ao fato de os títulos dessas duas companhias terem uma alta nota (dada pelas agências de classificação de risco), ou seja, serem considerados confiáveis tanto quanto os títulos do Tesouro americano para a aplicação das reservas internacionais, além de oferecerem maior rentabilidade. A China e o Japão eram os maiores detentores das dívidas das agências americanas.

A crise alcançou seu ápice com a falência do banco de investimento Lehman Brothers em 15 de setembro de 200839

. O banco detinha US$ 650 bilhões em dívida e um capital de apenas US$ 20 bilhões (BARROS, 2008, apud FARHI, CINTRA, 2009). Crise começou a ter contornos sistêmicos, abalando a confiança no sistema financeiro americano, na própria economia americana (e sua moeda).

O governo americano não fez nada para impedir a falência do Lehman Brothers. Contudo, dado o agravamento da situação, ações precisaram ser tomadas. Assim, o Merril

39 A desconfiança se espraiou no sistema financeiro, com a paralisação das operações interbancárias. Houve, assim, pânico nos mercados de ações, de câmbio, de derivativos e de crédito em todo o mundo.

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Lynch, banco de investimento americano que também se encontrava em péssima situação, foi comprado pelo Bank of America. O Goldman Sachs e o Morgan Stanley se tornaram subordinadas às regras do Acordo de Basileia, à supervisão do Fed, portanto, com possibilidade de acesso às operações de redesconto. “Era o fim dos grandes bancos de investimento independentes de Wall Street” (FARHI, CINTRA, 2009:278).

Outras instituições não bancárias, como hedge funds, fundos de investimento e seguradoras sofreram com uma “corrida bancária contra os não bancos”. Como essas instituições se tornaram centrais no sistema monetário-financeiro internacional (formando o chamado global shadow banking system), o governo americano (Fed e Tesouro) teve de socorrê-las. A American International Group Inc. (AIG) recebeu US$ 182,5 bilhões do Fed. Este passou a ter ações com direito a voto. No entanto, essas medidas não foram suficientes para conter uma crise destas instituições, pois estas venderam os ativos que ainda possuíam mercado, provocando uma queda abrupta de seus preços.

Além das instituições não bancárias, os grandes bancos também passaram a apresentar prejuízos. Com cada vez mais perdas, os bancos universais começaram a sair em busca de mais custosos aportes de capitais para fortalecer seus caixas e se readequarem aos acordos de Basileia. A falência do Lehman Brothers tornou mais difícil para os bancos a obtenção de novos capitais.

Assim, para combater a crescente desconfiança no seu sistema bancário, os Estados Unidos haviam gastado até novembro de 2008 o total de US$ 7,4 trilhões em planos de resgates, além de anunciar um Plano de Estabilidade Financeira.

Demonstraremos na seção seguinte como toda a agitação financeira que observamos na crise de 2008 não é resultado de deficiências conjunturais. Essa instabilidade é fruto da ordem monetária-financeira estabelecida após o fim do sistema de Bretton Woods nos anos 1970.