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Capítulo II. A história dos Direitos Especiais de Saque (DES)

II.4 Surgem os DES

Os DES foram aprovados no 23º Encontro Anual do FMI em 1968 e a alteração dos “Articles of Agreement” do Fundo, os quais incluíam os DES, entrou em vigor no dia 28 de julho de 1969. De acordo com seu Artigo XVIII, seção 1:

(a) Em todas as suas decisões no que diz respeito à alocação e cancelamento dos Direitos Especiais de Saques, o Fundo procurará atender à necessidade global a longo prazo (...) de complementar os ativos de reserva existentes de tal maneira

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que promoverá a realização de seus objetivos de evitar a estagnação econômica e deflação, bem como o excesso de demanda e inflação no mundo.

(b) A primeira decisão de alocar os direitos especiais de saque deve levar em conta, como consideração especial, um julgamento coletivo de que há uma necessidade global por suplemento de reservas e o alcance de um melhor equilíbrio nos balanços de pagamentos, bem como a probabilidade de um melhor processo de ajuste no futuro (FMI, 2011a:42).

No momento da criação dos DES, o objetivo era que os países conseguissem aumentar suas reservas sem depender do acúmulo de déficits dos grandes países fornecedores de reservas internacionais, em destaque os Estados Unidos. Sua finalidade inicial era complementar o dólar enquanto moeda-reserva global. Pensava-se que dessa forma se poderia manter a estabilidade do sistema monetário internacional, a confiança na ordem monetária e a capacidade de a autoridade monetária prever o crescimento das reservas internacionais.

Contudo, os franceses ficaram desgostosos com o acordo firmado sobre os DES, já que nada foi feito para limitar a habilidade de os Estados Unidos continuarem incorrendo em déficits no seu balanço de pagamentos. Os países europeus, por seu turno, permaneceram obrigados a aceitar dólares em suas reservas caso não quisessem valorizar suas moedas e perder competitividade internacional. Terminaram as negociações tão dependentes quanto antes do dólar:

[O acordo] não fez nada para limitar a capacidade de os Estados Unidos em continuar criando liquidez oficiais e não oficiais [...]. Eles [as autoridades norte- americanas] naquele momento viam o esquema dos DES como via para o fornecimento efetivo aos Estados Unidos de um meio de continuar a incorrer em persistentes déficits no balanço de pagamentos. Especificamente em razão dos – e as autoridades francesas concordavam – funcionários americanos terem sido autorizados a usar seus DES no lugar do ouro para comprar dólares em poder de estrangeiros, o novo mecanismo de liquidez, em termos práticos, colocou os DES em pé de igualdade com o ouro e, ao fazê-lo, ofereceu aos Estados Unidos uma outra maneira de continuar financiando os seus déficits no balanço de pagamentos (SOBOL, 1982: 390).

Por outro lado, os franceses e os outros representantes dos países da CEE não tiveram escolha a não ser aceitarem sua dependência aos Estados Unidos e ao dólar a fim de resguardarem seus objetivos comercias e de segurança, já que não havia alternativa viável.

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Novos caminhos precisariam ser buscados para diminuir essa dependência em relação aos americanos, já que os DES falharam nesse objetivo.

De qualquer maneira, os DES são únicos na sua origem já que nunca anteriormente a comunidade internacional havia se comprometido em estabelecer, por meio de uma decisão coletiva, um meio de troca para servir como um ativo de reserva internacionalmente.

No processo de alocação dos DES, os participantes receberiam aumento em seus ativos de reserva sem diminuir a reserva de outro país. Dessa forma, não haveria mais a necessidade de se esgotar a oferta de reservas de outros Estados quando um outro desejasse aumentar as suas: “Ao contrário de um crédito que é encerrado após o pagamento, [...], o fluxo de DES entre os participantes seria destinado a servir como uma adição permanente à oferta global de reservas, sujeito apenas à decisão deliberada para cancelar uma parte desse fluxo por causa de uma oferta excessiva de reservas” (SOBOL,1982: 65).

O FMI, enquanto instituição que emite os DES, não têm de utilizar seus recursos próprios para o estabelecimento desse novo ativo e nem para a utilização dos DES por parte dos países-membros do Fundo. Isso marca a sofisticação desse acordo financeiro internacional e sua importância para a comunidade monetária internacional: “desde que somente a aceitação dos DES tivesse de ser assegurada, e de fato era pelas obrigações assumidas pelos participantes, não havia qualquer obrigação ou responsabilidade a ser assumida pela agência que os [emite] ou que os [aloca]” (MACHLUP, 1968, p.34, apud SOBOL, 1982:65).

Porém, há autores, como Bordo e James (2012), que ressaltam como os DES acabariam funcionando mais como crédito do que ativo de reserva. Isso porque os DES seriam parcialmente reembolsados em um período fixo de tempo. Alocações de DES pelo FMI corresponderia a uma linha de crédito sem condicionantes e sem custos aos países recebedores, nos quais estes não ganham nem pagam taxas de juros. De modo contrário, quando um país vende suas reservas em ouro ou de qualquer outro ativo de reserva, por exemplo, não existe a obrigatoriedade de recomprá-las. Mas havia a obrigação de se “reconstituir” os compradores de DES. De acordo com os autores, o uso da palavra “reconstituição” em vez de “recompra”, no novo Artigo do FMI, foi escolhido para tornar o

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elemento reserva o mais claro possível e para ocultar o caráter parcial de crédito que estava implícito nos DES.

Divergências à parte, logo os DES ganharam um apelido, apesar de pretencioso e impreciso: “papel ouro”. As contas do próprio FMI eram mantidas em termo de DES e várias outras organizações internacionais também adotaram os DES como unidade de conta. Para Bordo e James (2012), o debate intensamente politizado que precedeu a criação dos DES garantiu que o novo instrumento fosse cercado por regulações. Os DES seriam administrados em uma conta separada no Fundo. As atividades já existentes no FMI seriam conduzidas pela General Account. Já as operações e transações envolvendo DES seriam conduzidas pela Special Drawing Account. Além disso, os DES só podiam (e assim é mantido até os dias atuais), ser utilizados em transações envolvendo o FMI e seus membros. Estes tinham o direito mas não eram requisitados a participarem do esquema. Poderiam participar países que fossem membros do FMI, os que inicialmente não quisessem fazer parte do esquema (como países não membros) e instituições que cumprissem funções de banco central para mais de um país membro (artigo XXIII, seção 3 (i)). Nesta última categoria, enquadram-se organizações regionais as quais seus membros e bancos centrais reúnam parte de suas reservas.

Todas as decisões concernentes à alocação e cancelamento de DES também necessitam de 85% dos votos dos países-membros, assim como qualquer mudança em relação a essa percentagem. A alocação dos DES para cada país seria proporcional à quota de cada um dentro do Fundo. De acordo com este, como a quota de cada nação correspondia relativamente ao tamanho de seu mercado financeiro, “usar quotas como base para alocações de DES pareceu ser ‘justo e razoável’” (SOBOL,1982: 59).

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Tabela 1- Quotas dos membros representados na Conferência Monetária e Financeira das Nações Unidas que aceitaram a adesão antes de 31 de dezembro de 1945

(US$ milhões) País Quota Austrália 200 Bélgica 225 Bolívia. 10 Brasil 150 Canadá 300 Chile 50 China 550 Colômbia 50 Costa Rica 5 Cuba 50 Tchecoslováquia 125 Dinamarca * * República Dominicana 5 Equador 5 Egito 45 El Salvador 2,5 Etiópia. 6 Filipinas 15 França 450 Grécia 40 Guatemala 5 Haiti 5 Honduras 2,5 Islândia 1 Índia 400 Iran 25 Iraque 8 Libéria 0,5 Luxemburgo 10 México 90 Holanda 275

74 (continuação) Nova Zelândia 50 Nicarágua 2 Noruega 50 Panamá 0,5 Paraguai 2 Peru 25 Polónia 125 União Sul-Africana 100 URSS 1200 Reino Unido 1300 Estados Unidos 2750 Uruguai 15 Venezuela 15 Iugoslávia 60

Fonte: FMI (2011a).

*A Dinamarca já havia manifestado interesse em assinar o acordo, mas ainda não o tinha feito. Por isso, sua quota seria determinada posteriormente.

Criou-se um mecanismo de “designação” no qual o FMI poderia determinar quais países estariam em melhores condições econômicas para trocarem suas moedas nacionais por DES agindo, portanto, como credores. Esses credores deveriam apresentar um balanço de pagamentos forte e uma posição de reservas favorável. Essa obrigatoriedade de países fornecerem moeda conversível por DES representava uma impopularidade latente do novo instrumento. Mas esse mecanismo ainda é utilizado como uma das formas de se adquirir DES:

Os detentores de DES podem trocar seus DES por moedas nacionais de duas maneiras: primeiro, por meio da organização de trocas voluntárias entre os membros; e, segundo, por intermédio do FMI no qual este designa membros com posições externas fortes para comprar DES de membros com posições externas fracas (FMI, 2013a).

Os países usariam DES somente para atender às necessidades no balanço de pagamentos, complementando os ativos de reservas existentes, e não para mudar a composição de suas reservas internacionais, por exemplo, trocando dólares por DES (BORDO, JAMES, 2012). No entanto, apesar de serem somente na época um suplemento à

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liquidez internacional – não podendo usar DES para mudar a composição de suas reservas para ouro e moedas estrangeiras – havia o receio de que países pudessem agir nessa direção. Dessa maneira, foi acordado que o uso de DES para esse fim fosse proibido. Com isso, se poderia evitar o uso de DES para obtenção de dólares para conversão em ouro.

Destaca Boughton (2001) como a alocação de DES tinha pouco valor econômico para países que já possuíam acesso ao mercado de capitais internacional em termos favoráveis. Já para os países que não detinham acesso ao mercado ou caso fosse muito caro e incerto, a alocação dos DES poderia representar um valor substancial.

O Fundo, para alocar ou cancelar os DES (lembrando que o estoque de DES poderia simplesmente ser reduzido por meio do cancelamento por parte do FMI), precisava considerar alguns objetivos, tais como: a cooperação monetária internacional, a expansão do comércio internacional e dos pagamentos multilaterais, a eliminação de restrições no comércio e nas trocas e promoção da estabilidade cambial. Ademais, era preciso pedir um julgamento coletivo quanto à necessidade global por suplemento de reservas, à obtenção de um equilíbrio maior no balanço de pagamentos entre os países-membros, além da necessidade de se pensar na probabilidade de melhor coordenar o processo de ajustamento futuro.

Os DES também funcionariam enquanto medida de valor, já que moedas de outros países poderiam estar atreladas aos DES e também estes poderiam funcionar como moeda de denominação de contratos e outras obrigações. Quase todos os ativos e passivos do FMI ainda estão denominados em DES e também são usados por algumas organizações internacionais, principalmente bancos de desenvolvimento regionais27

.

Até maio de 1972, o valor dos DES estava vinculado ao ouro, com um valor idêntico ao dólar e tinha uma taxa de juros de 1,5%, abaixo das taxas de juros existentes na época, o que desestimulava seu uso enquanto reserva. O valor do DES correspondia a 0,888671 gramas de ouro, exatamente como o dólar (FMI, 2011a). Com a posterior desvalorização da moeda americana, um DES (que manteve seu valor nominal ao ouro, e portanto, sua reputação como um “paper gold”) passou a valer 1,08571 dólar. A partir de

27 Atrelar moedas nacionais aos DES tornou-se popular no final dos anos 1970 em reação às incertezas que rondavam quanto ao valor do dólar. No entanto, esse movimento logo perdeu força.

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março de 1973, com a flutuação generalizada das moedas, o velho sistema de avaliação atrelado ao ouro tornou-se obsoleto e, assim, em 1974, os DES passaram a ser calculados com base de uma cesta de 16 moedas28

, selecionadas de acordo com a porcentagem (pelo menos 1%) que detinham no comércio mundial de mercadorias e serviços entre 1968 e 1972. Boughton (2001) destaca que havia problemas com esse critério pois mesmo com mudanças irrelevantes nas condições econômicas, a cesta de moedas também deveria mudar. Por exemplo, em 1978, o FMI tirou a moeda dinamarquesa e da África do Sul da cesta de DES e adicionou a moeda da Arábia Saudita e do Irã, além de mudar o peso de outras moedas na cesta.

Essas mudanças, que eram somente estética e fizeram pouca diferença na forma como os DES se comportavam, tinham a intenção de manter a cesta de moedas atualizada para refletir cuidadosamente os princípios considerados relativos à seleção de moedas. Na prática, elas simplesmente reforçavam a percepção de que a composição da cesta dos DES era fugaz e efêmera (BOUGHTON, 2001:951).

Outro problema destacado dizia respeito ao fato de poucas das 16 moedas que compunham a cesta dos DES terem algum papel mais significativo na economia internacional na época. Enquanto as 16 moedas eram referências para determinar o valor dos DES, somente cinco moedas eram usadas para definir suas taxas de juros. E essa dicotomia entre a determinação da taxa de juros e do valor dos DES começou a se tornar um obstáculo para o estabelecimento de seu preço racional à medida que o FMI buscava aumentar a aceitação dos DES nos mercados financeiros.

Assim, diante desses problemas, a Diretoria Executiva, em dezembro de 1979, começou a questionar se a taxa de juros dos DES estava sendo calculada da melhor forma possível. Logo, considerou a possibilidade de unificar as duas cestas (que determinava a taxa de juros e a outra que determinava o valor dos DES) e diminuir a cesta de moedas entre cinco

28 Joseph Gold, o conselheiro geral do FMI de então descreveu a situação para a Diretoria Executiva: “. . . the legality of adopting the [basket] mode of valuation . . . was derived from the present circumstances of disorder in which the par value system was not operating as it was intended to operate. . . .” Unless the Fund were to suspend all operations, “the only choice left . . . was to attribute gold value in some way, and to select the appropriate mode of valuation. In present circumstances the gold value would become a notion rather than a datum . . .” Minutes of EBM/74/28 (April 1, 1974), p. 17, apud Boughton (2001:950).

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e nove moedas. A grande maioria da Diretoria Executiva preferiu a menor cesta. Assim sendo, o novo diretor do FMI, Jacques de Larosière, propôs fazer a avaliação da nova cesta idêntica à já usada para determinar a taxa de juros dos DES e levou a proposta para o Comitê Interino na reunião do Fundo em Hamburgo em 1980. O Comitê aprovou a unificação, mas deixou os detalhes para a Diretoria Executiva. Para mudar a cesta, era necessária pelo menos a aprovação de 70% deste, o que deu maior espaço de decisão para os países em desenvolvimento.

Contudo, vários Estados começaram a reclamar sobre o peso alto que o dólar teria na cesta reduzida. Em um seminário do Diretoria Executiva sobre o assunto em julho de 1980, muitos afirmaram que aceitariam a redução do número de moedas na cesta desde que o peso do dólar fosse diminuído. Lionel D.D. Price (Reino Unido) argumentou que haveria pouco sentido manter o dólar com um peso muito grande na cesta dos DES já que era predominante nos balancetes de reservas internacionais, enquanto que o maior objetivo dos DES era justamente abolir com essa predominância.

Até metade de agosto de 1980, parecia que não se chegaria a nenhum acordo com relação à redução da cesta de moedas, embora se defendesse que essa diminuição fosse necessária. Contudo, o Diretor e o staff do FMI propuseram reduzir o peso do dólar de 44% para 42%, o que, embora aparentemente pouco, foi suficiente para a Diretoria Executiva aprovar e implementar a decisão no dia 17 de setembro de 1980.

Destarte, desde 1981 a cesta de moedas passou a ser composta somente moedas do Grupo dos Cinco países industrializados (G5): dólar, iene, marco alemão, libra esterlina e o franco francês29. “Esta cesta foi concebida para ser simples o suficiente, ser facilmente

entendida nos mercados financeiros e ainda garantir que o valor dos DES seja estável diante das grandes oscilações nas taxas de câmbio” (BOUGHTON, 2011: 925). Contudo, o peso de cada moeda dependia do valor no período. Em janeiro de 1981, quando a nova cesta já estava em vigor, mudanças nas taxas de juros, juntamente com a valorização do dólar, fizeram com que o peso da moeda americana se elevasse de 31% (cesta de moedas antiga) para 43%. E como o dólar continuou se valorizando durante os anos 1980, passou de 43% para 56% em

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fevereiro de 1985. Posteriormente, o dólar entrou em queda. Com um novo sistema que entrou em vigor, que revê o peso de cada moeda na cesta a cada cinco anos, a participação do dólar decaiu (BORDO, JAMES, 2012). Após a primeira revisão, o dólar passou a compor 42% da cesta. No final dos anos 1980, chegou ao patamar de 34%. Assim, essa variação no peso do dólar não foi decorrência somente de mudanças nas taxas de juros, mas principalmente da reavaliação da cesta que ocorreu no começo de 1986.

A Diretoria Executiva do FMI fez a última revisão do peso das moedas que determinam o valor dos DES a partir de 2011 – proporção esta que se manterá pelos próximos cinco anos. O peso de cada moeda atualmente é: dólar americano (41,9%); euro (37,4%); iene (9,4%); libra esterlina (11,3%) (FMI, 2011b).

Tabela 2– peso das moedas que compõem a cesta dos DES. Anos selecionados (em %)

2005 2011

Dólar 44 41,9

Euro 34 37,4

Libra 11 11,3

Iene 11 9,4

Fonte: FMI (2010) e FMI (2011b). Elaboração própria.

Boughton (2001) argumenta que a falta de estabilidade do dólar durante os anos 1980 fortaleceu a qualidade dos DES enquanto uma alternativa mais estável a qualquer moeda de peso na economia internacional. Devido não somente à diminuição do número de moedas na cesta que compõe os DES mas também ao aumento da volatilidade destas, cada moeda importante internacionalmente flutuou abruptamente em relação aos DES nos anos 1980.

II.5 Formação da Conta de Substituição: transformar os DES em um verdadeiro