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Capítulo IV. Os DES: uma moeda incompleta

IV. 2 As dificuldades dos DES e de sua instituição emissora

IV. 2.1 Reforma do FMI

Além dos problemas concernentes aos desequilíbrios globais, como citamos, a falta de regulação também foi um dos problemas fundamentais associados à eclosão da crise de 2008. Nesse sentido, o papel do FMI se amplia na ordem monetária global, sendo responsável tanto pela emissão adequada da possível futura moeda-referência como pela regulação eficaz desse sistema.

Para muitos defensores da reforma do sistema monetário-financeiro, com a participação proeminente dos DES na economia internacional o FMI, poderá prevenir os desequilíbrios macroeconômicos mundiais e supervisionar os fatores comuns da instabilidade financeira. Para tal, o Fundo precisa assumir o papel de uma autoridade monetária supranacional, como pretendia Keynes com o seu International Clearing Union.

Autores como Ly (2014) e Aglietta (2010) enfatizam a centralidade das instituições para o fortalecimento de uma moeda por meio da criação de mercados líquidos. E também sua centralidade na intervenção em crises financeiras:

São [...] regras e [...] instituições coordenadoras as que constituem o ‘enredo’ de um sistema monetário. Em um sistema assim, os governos aceitam moderar suas rivalidades, estreitar os domínios de suas possibilidades, adotar condutas

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previsíveis para baixar os custos de sua interdependência. Assim, as externalidades reduzem a zero a ilusão de que a economia mundial pode se gerenciar exclusivamente com [por meio dos] mercados financeiros (AGLIETTA, 1987: 25).

Todavia, há o questionamento se o FMI poderá fortalecer o papel dos DES como moeda-referência na economia internacional, assim como fez o banco central americano com o dólar após sua fundação56. Para ser um emprestador de última instância, injetando liquidez

no sistema em momentos de grande instabilidade – função desempenhada pelo Fed na atual recessão – é preciso que o Fundo passe por importantes reformas.

A crise de 2008 expôs problemas fundamentais, não somente nos sistemas de regulação nacionais que afetam as finanças, a competitividade e a governança cooperativa, mas também nas instituições multilaterais e arranjos criados para assegurar a estabilidade econômica e financeira. Para ele, estas instituições provaram sua incapacidade de prever a crise e têm sido lentas em desenvolver e implementar respostas adequadas. Na verdade, algumas políticas recomendadas por estas instituições têm facilitado a expansão da crise ao redor do mundo (STIGLITZ, 2010).

A credibilidade do FMI foi fortemente abalada em função de seu longo suporte às políticas de desregulamentação e liberalização que foram centrais para a crise e sua rápida expansão. Além do mais, países com grandes reservas (asiáticos, principalmente) não estão dispostos a enviarem seu dinheiro ao FMI já que não possuem representação adequada no Fundo. Somados a isso, o FMI defende políticas que são contrárias ao que estes países acreditam. Em crises passadas, a sua assistência foi acompanhada por condicionalidades pró- cíclicas – redução nas despesas e apertos nas taxas de juros –, justamente o oposto das políticas keynesianas buscadas pelos países em desenvolvimento durante suas crises. O FMI não concede as mesmas garantias a nações ricas e pobres, o que demonstra a falta de mecanismos eficazes para transferir e mitigar riscos por esta instituição. Stiglitz (2010) discute como países desenvolvidos possuem flexibilidade fiscal para responder a crise,

56A criação do Fed em 1913, concomitantemente com as mudanças decorrentes da Primeira Guerra Mundial, atingindo duramente a estabilidade da libra-esterlina – além do abandono da Grã-Bretanha ao padrão-ouro e a depreciação da moeda inglesa nos anos 1930 – foram elementos fundamentais que contribuíram para o dólar desbancar a libra como principal moeda internacional. Ver Eichengreen (2011).

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estimular suas economias e escorar a falência de instituições financeiras, além de prover crédito e fortalecer proteções sociais. Por outro lado, a maioria dos países em desenvolvimento possuem restrições orçamentárias mais rígidas e os recursos direcionados para compensar o impacto de crises precisam ser desviados dos objetivos de desenvolvimento. O fato de o FMI não representar os países em desenvolvimento termina por contribuir para estes acumularem grandes reservas internacionais a fim de se protegerem de futuras crises e manterem suas taxas cambiais sobre controle.

Dessa forma, para superar em grande parte essas limitações e críticas, é necessária a reforma dos FMI a fim de se consolidar uma resposta multilateral aos problemas gerados pela crise. Como discorre Stiglitz (2010), somente com mudanças nas instituições multilaterais se poderá dar uma resposta mundial à crise global.

IV. 2.1.1 Reforma de quotas

Como já citamos acima, o poder de voto dos países-membros está diretamente vinculado à quota que cada um possui no FMI. E ela relaciona-se intrinsicamente ao peso da economia de cada nação no âmbito mundial. No entanto, o incremento do poder econômico dos países emergentes nos últimos anos não é traduzido em uma maior participação no Fundo. A desproporção é clara, por isso uma reforma no sistema de quotas é imperativa para que estes países tenham maior capacidade de decisão na instituição. Dessa forma, o FMI poderá refletir as mudanças dos pesos relativos de cada país-membro na economia mundial:

Transformações nos atores, dos atores e do contexto resultam em mudanças nas interações estratégicas. Daí a movimentação das instituições: elas passam a sentir os constrangimentos do ambiente. A emergência de países como Brasil, China, Índia, África do Sul, Coreia do Sul e Indonésia reforça a hipótese de que as reformas institucionais devem fazer parte efetiva da agenda internacional. Mesmo que tímidas em seu início, a tendência é que elas ganhem em escopo a medida que o status quo for internalizando as mudanças estruturais em curso (COELHO, 2012: 619).

Em 15 de dezembro de 2010, o Board of Governors do FMI completou a 14ª revisão geral das quotas do FMI a fim de aumentar o peso decisório dos países emergentes.

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O fortalecimento da representação de economias mais dinâmicas no Fundo será expandido para 54 países-membros. Esta revisão geral das quotas permitirá:

 Dobrar as quotas [a capacidade de empréstimo] de aproximadamente 238,5 bilhões de DES para 477 bilhões de DES (próximo a US$737 bilhões a taxas correntes).

 Mudar mais de 6% da distribuição de quotas de países-membros super- representados para os menos representados.

 Deslocarmais de 6 % das quotas para mercados emergentes dinâmicosepaíses em desenvolvimento.

 Realinhar significativamentea divisão de quotas. A China ficará em terceiro lugar e Brasil,China, Índia e Rússia57 estarão entre os 10 maiores acionistas do Fundo e

 preservar a quota e poder de voto dos países-membros mais pobres. Este grupo de países é definido como aqueles elegíveis para a Poverty Reduction and Growth Trust (PRGT) e cuja renda per capita caiu abaixo de US$ 1,135 em 2008 (...) (FMI, 2014a)

Os Estados Unidos ficarão com 17% de quota, o Japão com 6% e a Rússia com 2,7%, ficando no nono lugar. Brasil, China, Índia e Rússia terão sua quota alterada de 11% para 14,1%. Com a África do Sul inclusa, o bloco BRICS passará a ter 15% do poder de voto no FMI. O Brasil, isoladamente, aumentará de 1,72% para 2,21% (ver Tabela. 6). Além dos americanos e japoneses, alemães, franceses e ingleses também terão de ceder parte de seu poder de voto (A REFORMA DO FMI...2013).

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Tabela 6 - Distribuição de quotas após a 14ª Revisão Geral de Quotas*

País Quota atual Quota pós-14ª reforma

Estados Unidos 17,69% 17,40% Japão 6,56% 6,46% China 4,00% 6,39% Alemanha 6,12% 5,58% França 4,51% 4,23% Reino Unido 4,51% 4,225 Itália 3,31% 3,16% Índia 2,44% 2,75% Rússia 2,50% 2,71% Brasil 1,79% 2,32% Canadá 2,67% 2,31% Arábia Saudita 2,93% 2,10% Espanha 1,69% 2,00% México 1,52% 1,87% Holanda 2,17% 1,83% República da Coreia 1,41% 1,80% Austrália 1,36% 1,38% Bélgica 1,93% 1,34% Suíça 1,45% 1,21% Turquia 0,61% 0,98% Indonésia 0,87% 0,97% Suécia 0,01% 0,93% Polônia 0,71% 0,86% Áustria 0,89% 0,82% Singapura 0,59% 0,82% Noruega 0,79% 0,79% Venezuela 1,12% 0,78% Malásia 0,74% 0,76% Irã 0,63% 0,75% Irlanda 0,53% 0,72% Dinamarca 0,79% 0,72% Tailândia 0,60% 0,67% Argentina 0,89% 0,67% África do Sul 0,78% 0,64% Nigéria 0,74% 0,52%

Fonte: FMI (2013); FMI (2014c). Elaboração nossa. *Dados atualizados até 3 de junho de 2014.

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No entanto, essa reforma está parada pois não consegue os votos necessários para ser implementada. Como a mudança na proporção das quotas está vinculada com apropostade reforma da Diretoria Executiva do FMI, é preciso ter ao menos 85% do total de poder de voto para haver qualquer mudança. Até 23 de abril de 2014, 145 membros (com o total de 76,97% de poder de voto) tinham aceitado as alterações previstas na reforma da Diretoria Executiva e 159 membros (78,88% do total) tinham acatado à reforma de quotas – para ver todos os países que aceitaram o aumento de quota, ver Tabela 12 no Anexo.

Tabela 7 - Países selecionados que aceitaram o aumento de quota, nos termos da 14ª Revisão Geral de Quotas*

País Quotas Argentina 0,97 Alemanha 5,98 Austrália 1,49 Áustria 0,86 Bélgica 2,12 Brasil 1,40 Canadá 2,93 Chile 0,39 China 3,72 Colômbia 0,36 Dinamarca 0,76 Egito 0,43 El Salvador 0,08 Finlândia 0,58 França 4,94 República Dominicana 0,10

Fonte: FMI (2014b). Elaboração própria. * Dados atualizados até dia 25 de abril de 2014.

O grande responsável pela não implementação da reforma de quotas são os Estados Unidos. Este país possui 16,75% do poder de voto no Fundo, ou seja, poder de veto. Assim, nenhuma reforma será ratificada enquanto os americanos não aceitarem as alterações no plano nacional. Alguns dos pontos da reforma exigem a aprovação dos legislativos nacionais dos países-membros por alterarem o estatuto do FMI. O G20 tinha a intenção de resolver a questão até janeiro de 2013, mas o Congresso americano barrou qualquer

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possibilidade de resolução. E o cenário na política interna americana mantem-se pouco promissor nesse sentido. Há a probabilidade de que os republicanos, que estão bloqueando a ratificação da reforma do Fundo, ampliem a liderança na Câmara e no Senado (BARBOSA, 2014).

O presidente do G20, o ministro australiano do Tesouro Joe Hockey, afirmou que que o Congresso americano está “desapontando todo mundo” e que “o fracasso em finalizar este tema prejudica a posição global dos Estados Unidos, ao invés de fortalecê-la” [...] “A comunidade internacional precisa trabalhar para garantir que o FMI tenha recursos adequados para suprir todas as nossas necessidades futuras. Também precisamos ter uma representação equilibrada no Fundo” (UCHOA, 2014). O G20 em comunicado afirmou que caso o Congresso americano não ratifique as reformas até o final de 2014, será necessário que se solicite um plano B para que se possa seguir adiante com elas, como por exemplo, se desvincular o tema das quotas do restante das reformas, como defende o Brasil – dessa maneira se necessitaria de 70% do poder de voto e não 85%, podendo-se descartar a posição americana nesta questão. O vice-presidente do banco central chinês, Yi Gang, afirmou que ao se postergar as reformas, mina-se a liderança do G20 e a legitimidade do FMI (idem).

Com a maior representatividade aos países em desenvolvimento por meio da reforma de quotas, pensa-se ser possível que o FMI tenha mais transparência e responsabilidade para combater esta e futuras crises. Como resultado, não se repetirá casos como das políticas de austeridade fiscal defendida pelo Fundo no combate à recente crise na zona do euro, por exemplo.

Com essas reformas, busca-se restaurar a confiança no FMI após a crise de 2008 para que esta instituição possa ter um papel central no combate à esta e futuras recessões. Além disso, é preciso aumentar seu peso político entre as nações, pontua Aglietta (2010). Dessa forma poderá prevenir os desequilíbrios macroeconômicos mundiais e supervisionar os fatores comuns da instabilidade financeira. O G20 defende a centralidade do FMI nesse sentido:

[O] Fundo deveria desempenhar um papel de liderança nesta tarefa consistente com seu mandato. Acreditamos que o FMI deve incrementar sua capacidade de alerta antecipado com a devida consideração às economias sistematicamente importantes,

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de forma a antecipar estresses e identificar em um estágio antecipado as vulnerabilidades, as fraquezas sistêmicas e os riscos resultantes nos mercados financeiros que podem colocar em risco tanto o sistema financeiro internacional como a economia global. Enfatizamos, ainda, a importância do fortalecimento da vigilância e da orientação política do FMI que conduzem a respostas políticas macroeconômicas apropriadas e em tempo hábil de todos os países (G20, 2008).

Com a concretização destas reformas, o FMI se confirmaria enquanto um elemento central de uma nova organização monetária. Ao emitir uma moeda como único ativo de reserva (aceita de modo unânime), poderia administrar a liquidez e o ajuste do balanço de pagamentos dos Estados, sendo uma organização intermediária entre os países credores e devedores. Ela daria aos desequilíbrios dos balanços de pagamentos uma expressão comunitária (AGLIETTA, 1987). Assim, a instituição se aprimoraria na coordenação das ações dos Estados ao fornecer informações úteis para uma ação estratégica, instituir mecanismos de monitoramento e controle no cumprimento dos acordos, além de criar uma certa previsibilidade quanto ao comportamento futuro dos outros atores. Igualmente, se aperfeiçoaria na preservação dos comportamentos descentralizados em uma economia mundial na qual as interdependências se intensificaram e se diversificaram. “Ela tem por função codificar a comunicação estratégica com fins cooperativos, a fim de evitar possíveis ameaças...” (AGLIETTA, 1987: 63).

O FMI precisaria agir como um verdadeiro market-marker, provendo um orçamento e devendo ter autonomia e autoridade para emitir DES em momentos de escassez. Mais uma vez enfatizamos, todavia, como o Fundo não consegue fazê-lo sem a aprovação de pelo menos 85% dos países-membros. Sua atual conformação é incompatível como a pretensa função de emissor de liquidez internacional, o que escancara a necessidade de uma reforma interna que o torne mais independente, autônomo, mas também mais justo em sua distribuição de poder de voto internamente. “De fato, o FMI deve se tornar mais parecido com um banco central global e um emprestador de última instância internacional” (AGLIETTA, 2010: 9). A mudança de parte das reservas em dólares das nações para os DES implicaria na maior governança por parte do FMI.

Contudo, cabe mencionarmos como a reforma nas quotas do FMI não tirará o poder de veto dos Estados Unidos. Eles continuarão com mais de 15% do poder de voto.

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Portanto, devemos questionar até que ponto o Fundo corresponderia a uma instituição neutra e mais equitativa, que realmente poderia representar uma resposta global a uma crise econômica mundial.

Desse modo, apesar das transformações institucionais – como a reforma do FMI que possa garantir um provimento mais equitativo, estável e suficiente de DES – elas não seriam eficazes para colocar os DES na posição de principal moeda internacional na ordem monetária-financeira global. Primeiro, porque com a atual reforma de quota, os Estados Unidos manterão seu poder de veto, minando qualquer tentativa de se aumentar a confiança dos demais países nesta instituição. Afinal, como ela poderá ser neutra e capaz de representar as nações no combate à recente crise nestes moldes institucionais? Segundo, não é estratégico aos Estados Unidos perderem os privilégios existentes por emitir a moeda-chave da economia internacional. Terceiro, e o mais importante para esta pesquisa, porque os DES representam a tentativa de se descaracterizar a moeda enquanto um instrumento de poder dos Estados, buscando consolidá-la como um elemento neutro, à parte das relações políticas.

IV. 3 Limites dos DES: a desconsideração da natureza social e política da moeda