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DESENVOLVIMENTO COMO LIBERDADE, CULTURA COMO FRICÇÃO E SINCRETISMO

Políticas criativas para um novo ecossistema cultural

DESENVOLVIMENTO COMO LIBERDADE, CULTURA COMO FRICÇÃO E SINCRETISMO

Há exatos 10 anos, em Salvador, cidade de onde escrevo, era realizado o Fórum Internacional Rumo ao Centro Internacional das Indústrias Cria- tivas (CIIC), promovido pelo governo brasileiro e pela Organização das Nações Unidas (ONU),1 visando à implantação de um “um órgão interna- cional voltado ao fortalecimento do valor econômico agregado às criações artísticas”. (PNUD, 2005) A discussão sobre as “indústrias criativas” já era recorrente, embora o tema recebesse, à época, pouca atenção de gestores governamentais e de organizações privadas em nosso país. Naquele mo- mento, pareceu-me emblemático o discurso de Gilberto Gil, então minis- tro da Cultura, cujo excerto a seguir merece atenção:

[…] desenvolver a capacidade criativa é muito mais que simplesmente atin- gir os objetivos econômicos de um novo e dinâmico setor. Essas indústrias também nos oferecem ferramentas simbólicas para que possamos dar sig- nificado às nossas próprias histórias, articular visões de um futuro melhor

1 Realizado em 2005, o fórum foi promovido em parceria com a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) e com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), com apoio do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e do BID (Banco interamericano de Desenvolvimento).

C OLE Ç Ã O DO OBSER V A TÓRIO D A E C ONOMIA CRIA TIV A

e associar a lógica mais abstrata dos conflitos presentes nas políticas à vida cotidiana dos nossos cidadãos. Espaço para políticas e indústrias criativas são, assim, elementos que se complementam na nossa busca por melhores opções e estratégias de desenvolvimento. (GIL, 2005)

Gilberto Gil registrava um duplo impulso que tem caracterizado os de- bates acerca da chamada “Economia Criativa”: a reivindicação do estatuto simbólico da cultura enquanto centro de gravidade na correlação de forças entre sociedade, estado e mercado; o desenvolvimento pensado para além de indicadores econômicos, onde cultura e criatividade podem servir de lastro para uma nova compreensão de desenvolvimento.

Ao final do evento, Salvador foi escolhida para sediar o centro, tendo recebido garantias financeiras e institucionais dos organizadores para sua instalação. Após 10 anos, percebemos que o principal objetivo do fórum jamais fora alcançado. O CIIC não foi implantado e as proposições daque- le fórum se perderam no fluxo das oscilações políticas que caracterizam a governança pública e as ações de organismos internacionais. No entanto, o debate ganhou outros contornos. A Economia Criativa, a Economia da Cultura e a relação entre cultura e desenvolvimento frequentam, hoje, as “narrativas”2 ordinárias de inúmeros atores da vida política, das empresas e do mundo acadêmico.

Em outro registro cronológico, celebramos, em 2015, 10 anos de apro- vação da Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Ex- pressões Culturais, documento resultante da 33a Conferência da Organi- zação das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).3 Ali estão contidas orientações para criação e implementação de políticas voltadas à proteção e promoção da diversidade cultural, reforçando a cen- tralidade da cultura na dinâmica social contemporânea. O momento se

2 O termo “narrativa” tem sido apropriado por diversos operadores do mundo político para designar estratégias, ações, concepções ou discursos em substituição à ideia de “política” em seu sentido estrito. Desta forma, o termo soa frágil e efêmero, em plena consonância com as continuidades e descontinuidades da vida política contemporânea.

DIMENSÕE S CRIA TIV A S D A E C ONOMIA D A CUL TURA

mostra como oportuno não somente para promovermos um balanço dos dois episódios acima, mas também para levarmos adiante a discussão so- bre cultura e desenvolvimento, as Economias Criativas e da Cultura.

Duas inflexões iniciais nos ajudarão a delimitar nossa intervenção nes- te debate. Estaríamos, nas situações citadas, construindo uma visão instru- mentalizada da cultura, subtraindo-lhe a essência integradora indivíduo- -sociedade? Ainda: ao recorrermos à visão consagradora da cultura como expressão do binômio “proteção-promoção” da diversidade, ou como correia de transmissão para o desenvolvimento socioeconômico, estaríamos deixan- do de considerar, em algum grau, que a cultura contemporânea é também o espaço de hibridismos e sincretismos (BURKE, 2009; CANCLINI, 1997), onde pontos de contato circunstanciais ganham relevância, tornando-se tão influentes quanto as tradições que constituem nossa certificação identitária? Não resta dúvida de que os trabalhos que associam cultura a desen- volvimento por meio de levantamento de indicadores, expressões econô- micas e relatórios financeiros são de extrema importância para os setores culturais e criativos. Considerando, no entanto, que outros estudiosos li- dam com tal abordagem com maior propriedade, não proponho nos ocu- parmos, neste contexto breve de análise, da exposição sumária de indica- dores econômicos que justifiquem a atenção à cultura ou todo o esforço de atores governamentais que formulam políticas públicas para a cultu- ra sob a justificativa do retorno econômico. Antes, devemos colocar em perspectiva a real dimensão do envolvimento de membros da sociedade na apropriação dos expedientes de produção, circulação e fruição da cultura e das artes como forma de empoderamento individual e desenvolvimento social. Aliás, como assinala Benhamou (2007, p. 182), “é lamentável que, justo no momento em que o economista aprende a levar em conta a di- mensão qualitativa daquilo que mede, ele se restrinja a calcular apenas as consequências comerciais do investimento cultural”.

Se nos parece absolutamente imprescindível que o desenvolvimen- to socioeconômico esteja subordinado à expansão das liberdades reais e

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substantivas,4 como sugere Amartya Sen (2010), torna-se essencial, por sua vez, darmos relevo a uma compreensão de cultura que reforce a emancipa- ção dos sujeitos e que amplifique a diversidade. Tal compreensão esboça um cenário onde a cultura deve ser um ambiente não apenas redentor da convi- vência, mas também da fricção e do entranhamento das “culturas”, locus da atualização e reinvenção permanente das tradições. Por isso mesmo, a noção de “preservação” das identidades, em seu sentido estritamente encapsula- dor, deve ser ampliada, conforme podemos verificar no Relatório Mundial da Unesco: Investir na diversidade cultural e no diálogo intercultural:

[…] contrariamente a procurar-se preservar a identidade em todas as suas for- mas, deveria instar-se pela concepção de novas estratégias que levem em con- ta essas mudanças e permitam ao mesmo tempo que as populações vulnerá- veis respondam mais eficazmente à mudança cultural. (UNESCO, 2009, p. 6)

Assim, temos em relevo duas outras tensões que circulam o debate: as- sociada aos processos de desenvolvimento, a cultura entendida para além dos seus vetores identitários e antropológicos, mas longe de ser reduzida a indicadores econômicos que servem a formuladores de políticas de go- vernos e empresas privadas; a cultura não como mero recurso instrumen- talizado e reapropriado pelas esferas política e econômica, mas enquanto elemento que “corporifica nossa humanidade comum”, conforme anotou Eagleton (2011, p. 17) ao analisar a relação entre estado e cultura.

ECONOMIA, INDÚSTRIA E ECOSSISTEMA DA CULTURA