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CAPITULO I – Sobre Bárbaros, Tapuias e Kariri

1.5. Deslocamentos Kariri Rumo aos Cariris Novos

Antes que os caminhos do gado chegassem nos longínquos sertões da capitania do Ceará, sobretudo em sua porção Sul, os Kariri e outras nações que habitavam as cabeceiras dos principais rios, bem como suas ribeiras, permaneciam incólumes ao contato. No entanto, quando nos finais do século XVII, chegaram ali as primeiras expedições, provocaram novas dispersões. Sobre esse movimento, Pompeu Sobrinho é quem melhor nos informa. Segundo Sobrinho,

No Ceará, a área de dispersão compreende trechos dos vales dos rios Cariús e dos Porcos. Esta expansão no Ceará foi relativamente reduzida, uma vez que, por um lado encontrava a resistência dos láguidos, cujas hordas fora preciso deslocar para o norte e para leste, e por outro lado, não se deparavam com regiões ampla adequadas ao seu estilo de vida isto é, rios perenes ou mesmo navegável, florestas, terrenos de solo agricultável, abundancia de frutas e de peixe. Estabeleceram se onde encontraram as melhores condições que a geografia cearense lhes podia oferecer, pouca cousa mais do que o Vale fresco e bem irrigado que tomou o seu nome e algumas regiões circunvizinhas.106 Dentro desse processo, muitos Kariri que perderam seus territórios e não ansiaram pedir aldeamentos aos religiosos ou outras autoridades metropolitanas se retiravam em busca de outras terras, seguindo pelos caminhos ou seguindo os afluentes

105 Livro dos Acentos da Junta das Missões, cartas ordinárias, ordens e bandos que escreveram em

Pernambuco no tempo do governador Felix Joséd Machado de Mendonça. In: GATTI, Agata Franceconi. O tramite da Fé: A atuação da Junta das Missões de Pernambuco, 1681-1759. (Dissertação). São Paulo: USP, 2009, p.144.

do São Francisco, onde disseminação ao norte deste, “estabeleceram-se na Borborema nas cabeceiras do rio das Piranhas e em poucos outros rincões nordestinos”107.

Nos processos de deslocamentos, ao mesmo tempo em que ocorriam conflitos, gerava também interação culturais, sobretudo linguísticas entre diferentes grupos étnicos. Assim, em decorrência deste processo se torna difícil definir, de forma consistente, a filiação dos Kariri, pois quando a expansão colonial chegou aos sertões do médio São Francisco e posteriormente no sul da capitania do Ceará, encontrou:

A família Cariri ocupando uma área não muito extensa se tinham localizados nos melhores sítios, nas regiões mais férteis e menos áridas, nos vales frescos, ou úmidos como o que tem o seu nome, no Ceará, nas serras frescas, no vale do São Francisco, nas cabeceiras de alguns rios baianos da drenagem Atlântica ao norte do rio das Contas. Viviam naquele âmbito, interpostos com os Cariri tribos gês, tupi, fulniô, caraíba, e outras de origem ainda não determinadas.108 Depois do vale do Médio São Francisco, os sertões dos Cariris Velhos, na capitania da Paraíba, foi outro território em que provavelmente se tenha concentrado o maior número da família Kariri. Tal suposição, se coloca nos atuais estudos sobre a ocupação da referida nação naquela região, elucidando que, ao contrário do que se pensava, esta não era habitada por essa nação, isto só ocorreu porque, ao perderem suas terras nas ribeiras do São Francisco, seguiram em direção aos Cariris Velhos. Quando Domingos Jorge Velho penetrou na Capitania da Paraíba vindo pelo rio Açu, que na Paraíba é chamado de Piranhas;

por lá ele encontrou os índios de nação Kariri, chamados “pegas” e “ariús”, onde travou com esses índios batalhas que duraram dias. Esses nativos não resistiram por muito tempo, sendo criado nesta região em 1687 um forte de mantimentos. Seguindo o curso dos rios Domingos Jorge Velho alcançou os

“icós” e “panatins” sertão adentro, além dos “coremas’ na região próxima a

Piancó. Muitos destes índios guerrearam com seus inimigos em conflitos mortais.109

Do Açu ao Jaguaribe, do Pajeú ao rio Piranhas, chegando às ribeiras do rio Salgado (importante afluente do Jaguaribe) centenas, senão milhares de nativos, procuravam áreas ainda não ocupadas pelos colonos. Uma dessas áreas foi a Capitania do Ceará, em especial, a Chapada do Araripe, as ribeiras do Jaguaribe e a Serra da Ibiapaba, que se tornou, mais tarde o espaço das ações inacianas.

A Capitania do Ceará foi, por excelência, o espaço acolhedor e concentrador de povos aflitos e fugitivos, fustigados, expulsos de seus antigos territórios. Enquanto as capitanias vizinhas eram tomadas para dar lugar à criação de gado,

107 Idem. Ibidem., 108 Id. Ibid.,

109 ALVAES, Angelita Carla Pereira; SOUSA, Dominick Farias. A Guerra dos Bárbaros na Capitania Real

da Paraíba. In: Trarairiú – Revista Eletrônica do Laboratório de Arqueologia e Paleontologia da UEPB. Campina Grande, Ano III – Vol.1. n.º 04, Abr/Mai de 2012, p.25-32.

o Seará continuou, no século XVII, o espaço dos nativos. Era domínio da majestade de Portugal sim, mas era também, e, sobretudo, um Seara Indígena.110

Embora os conflitos endógenos pré-existentes entre os nativos provocassem, também, seus deslocamentos, a proporção foi bem mais diminuta em relação aos que foram se processando no contato com os não-índios em diante. Nesse ritmo conflituoso, antes de findar o século XVIII,

O território habitado pelos Cariris, tapuias por excelência do Nordeste, estava devassado e em grande parte colonizado pelos brancos e mamelucos. Pervagavam poucos e pobres tribos pelos sertões mais distantes, conservando as purezas da raça; [...] um certo número, porém, fugia dos seus velhos domínios para os campos e a matas distantes onde, não encontrado o invasor, ia entretanto, sofrer a repulsa e a guerra de outros ameríncolas com que se não poderiam fundir.111

Além dos Kariri, ali habitavam também os “Cariuanês, Carcuaçu, e nas ribeiras do Salgado até seu curso médio, bem como nas terras marginais de sua esquerda, os Calabaça, e Cariú, que viviam ao longo da ribeira que lhes herdou o nome e em “guerra constante com os Cariri, seus irmãos de sangue”.112

Outra etnia que pleiteava as terras com os Kariri eram os Curiá. Sobre esta quem informa é Pedro Theberge. Segundo ele, os domínios desse grupo “estendiam-se pelo valle do riacho, deste nome, o do rio Bastiões. Eram inimigos dos Cariri, a quem disputavam o respectivo território”113. A localização dos Curiá abrange hoje o rio Carás, afluente do baixo Salgado, que dali até o Rio do Peixe, na época colonial era “domínio dos Icó e Icozinho de filiação Kariri. Studart Filho observa que os mais antigos documentos em que há menção dos Icó do Ceará, datam de 1694, em ocasião das depredações feitas por esses gentios na zona jaguaribana”114. Sobre os Icozinho, Francisco de Assis Couto observa que “identificavam-se com os Xixicó, que aliados aos Icó andavam pilhando e saqueando nas várzeas do Jaguaribe”115. A razão para esses conflitos intertribais, em fins do século XVII e primeiras décadas do XVIII, dava-se em função dos avanços das frentes de expansão vindas do Jaguaribe, sertões de Piranhas e

110 ALBUQUERQUE, Manoel Coelho. Seara Indígena: deslocamentos e Dimensões identitárias.

(Dissertação). Fortaleza: UFC, 2033, p. 68.

111 POMPEU SOBRINHO, Thomaz. Os Tapuias do Nordeste e a Monografia de Elias Herckman. Op.

Cit., p.7-28.

112 STUDART FILHO Carlos. Aborígenes do Ceará. Op. Cit., p.150.

113 THÉBERGE, Pedro. Esboço Histórico sobre a Província do Ceará. Tomo I. (Fac-símile a edição de

1895). Fortaleza: Fundação Waldemar Alcântara, 2001, p. 7.

114 STUDART FILHO, Carlos. Notas Históricas Sobre os Indígenas Cearenses. In: Revista do Instituto

do Ceará. Fortaleza: Tomo XLV. 1931, p.53-103.

Piancó e sertões da Capitania do Piauí. Alí, os Curiá, passaram também a disputar territórios com Icó e Icozinho.

A oeste, nascente do rio Carius, era possessão dos Kariu. A partir do riacho dos Bastiões, seu principal afluente, saída para o semiárido, era o território dos Jucá e Inhamuns, que entraram em conflitos com os Kixelô. Na vertente oriental da chapada do Araripe, habitavam os Xocó, Human e Inxu (Echu). Em relação aos Xocó, pela documentação, só aparecem nos sertões dos Cariris no início do século XIX, sob a orientação espiritual do religioso apostólico capuchinho frei Vital de Frescarolo, que “em 1803 aldeou em Pernambuco além dos Kariri, os gentios vouê e umão”116.

Perante essa configuração e ocupações nativas se pode atestar que as fronteiras geo-etnográficas estavam razoavelmente “definidas”, uma vez que “por fronteira indígena, entendemos os limites da ocupação de vários povos ou tribos em um determinado espaço geográfico”117. Em nosso caso, os sertões dos Cariris. Estando assim distribuídos, a de se tentar aventar quem havia se estabelecido ali há bastante tempo.

Pelas evidências documentais, há possibilidades de vislumbrar quatro etnias, a saber, os Kariri, os Cariu, os Calabaça, os Curiá. Os Kariri eram reputados bravos, tanto que sua “braveza idomita lhes propiciara a posse das mais ricas e opulentas terras da capitania”.118 Os Cariu, habitando uma área razoavelmente fértil nas nascentes do rio Cariu, tinham na pequena agricultura, para além da caça e da coleta, sua principal atividade.

Nesse processo, ao findar o século XVII, os pontos principais da orla litorânea estavam ocupados por não-índios e os principais caminhos que entrecruzavam os sertões iam oferecendo maior “tranquilidade” aos transeuntes. Apesar da grande mortandade e da transferência de muitos nativos para o Maranhão ainda assim haviam milhares deles reduzidos, realizando trabalho compulsório, errantes por muitos caminhos, assaltando vilas e cidades. A maior aglomeração estava no Médio São Francisco. Numa consulta sobre o estado em que se encontravam as missões dos sertões da Bahia se constata isto:

Entre estes brancos há tantas nações de Indios que passão de 500 de diferentes lingoas, que se achão comunicando com elles e amigável trato; cada huma destas nações, tem tantas aldeãs e almas que podem formar hum grande Reyno e com effeito o fazem com sua rústica política, por que tem suas terras divididas em que cação e busca suas comedas (sic )sem poderem sahir dos

116 PINHEIRO, Irineu. O Cariri: seu descobrimento, povoamento, costumes. (Fac-símile da edição de

1950). Coleção Secult. Edições-URCA. Fortaleza: Edições-UFC: 2010, p. 10.

117 BARBOSA, Bartira Ferraz. Paranmbuco: poder e herança indígena no Nordeste séculos XVI-XVII.

Recife: UFPE, 2007, p.20.

118 STUDART FILHO, Carlos. Notas Históricas Sobre os Indígenas Cearenses. Op. Cit., p.53-103. Ver

arrayais do seu limite e se acazo o fazem acodem os do Reyno a que passão e tem entre sy aquellas difeenças e guerras com que actualmente se distroem para nossa conservação, porque se todos fossem unidos, em nosso danno, obrarião os estragos que sua ferocidade e multidão nos faz temer.119

Interessante observar, ainda, que no mesmo documento há todo um diagnóstico dos espaços ocupados pela população não-índia. Os autores constataram que quase todas as importantes áreas da Colônia estavam ocupadas, salvo o Sul do Ceará e outras áreas. Observemos atentamente o relato abaixo:

Jacaré, Jeremoabo, Vaza Barris, Jacobina, Morro do Chapeo, Rumo e Peroasu, e por entre estes se achão outros muitos que todos guião ao mesmo Rio aquem de qualquer parte o busca; com moradores por elles e por todas as mais terra adjacentes em quê se descobrio capacidade para suas vivendas e na mesma forma se achão povados todos os sertões do Brasil (...) dos quais paraque se tome algum conceito será forçoso dizer que do cabo de Santo Augusto buscando o interior do sertão, do nascente para o poente athe chegar as últimas povações do Rio Grande do Sul estão descobertas e povoadas perto de 600 legoas. Deste logar buscando o norte se acha o mar entre o Maranhão e Gram- Para; e para o sul se vahi cahir sobre São Paulo e de todos os sertões que ficão dentro destes braços estão povoados de moradores brancos,os quais si tituarão suas fazendas e cazas em toda as partes dquelles dezertos, em que achão agoas, campos e terras capazes de criarem seus gados e cultivarem suas plantas, exceto alguns logares que defendem o grande numero de Barbaros, que os habitão como forão athe agora os negros nos Palmares e são ainda hoje os gentios da grande Serra do Araripe que defedem as ribeiras circuvizinhas do Asu, Piranhas, Jagoripe e outras muitas que estão às sombras daquelle dilatadissimo e afamado cerro, tudo o mais se acha povoado com homens brancos e catholicos que vivem de 2 em 2 e de 3 em 3 legoas, pelo modo acima dito.120

Contra os quais se fizeram as mais bárbaras guerras.