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CAPITULO I – Sobre Bárbaros, Tapuias e Kariri

2.2. Bárbaras Guerras Contra os Bravos Tapuias

2.2.2 Sertões de Piranhas e Piancó

Alguns, dentre os Kariri que iam se dispersando, procuravam se realocarem nos territórios do semiárido paraibano, passando pelo vale do Jaguaribe até o Sul da capitania do Ceará Grande. Nos sertões de Piancó e Piranhas ainda havia resistências por parte de muitos Tapuias, em especial dos Ariu, ou Tarariu, e mesmo de outros povos Kariri; o que gerava, por vezes, fortes tensões entre eles. Contingências geralmente aproveitadas pelas tropas coloniais.

Entretanto, esta primeira tentativa de povoamento fôra frustrada. Depreende- se êste fato da conhecida carta de 1699, do Capitão-Mor da Paraíba, Manuel Soares de Albergaria ao Rei de Portugal, divulgada por Irineu Jófili. Refere este documento ao que o Capitão-Mor das Piranhas e Piancó, Teodósio de Oliveira Ledo, informara, em dezembro de 1697, do estado em que se achavam os sertões daquele distrito despovoado pelas invasões que tinha feito o gentio bárbaro Tapuia; e que se tornassem a povoar. Conseqüentemente, aqueles sertões, vizinhos do Ceará, tinham, já em 1697, tido um comêço de povoamento, mas os povoadores não poderam resistir à reação dos índios, justamente rebelados.223

222 AHU. Documentos para Pernambuco. Consulta do Conselho Ultramarino ao rei D. Pedro II, sobre o

requerimento do Padre Miguel de Carvalho, como tutor do Capitão mor dos índios da nação Procaz, do Sertão de Rodelas, Francisco Dias Mataroá, pedindo duas praças de soldados uma para ele e outra para seu filho, Manoel Dias de Carvalho. Caixa 18. Doc. 1764. 1698.

223POMPEU SOBRINHO, Thomaz. Povoamento do Cariri. Fortaleza: Revista da Academia Cearense de

Letras.1956. Disponível em:

http://www.academiacearensedeletras.org.br/revista/revistas/1956/ACL_1956_32_O_Povoamento_do _Cariri_Cearense_Th_Pompeu_Sobrinho.pdf. Acessado em 2016. Ggrifos meus.

Vejamos a referida carta que relata a entrada e resistência dos índios Kariri naqueles sertões.

No principio do ano de 97 veio a esta cidade o Capitão Mor das Piranhas e Piancó. Teodosio de Oliveira Ledo, e me informou o estado em que se achavam os sertões daquele distrito despovoado das invasões e destrago que os anos passados fizeram neles o gentio bárbaro Tapuias e que era mui conveniente, que estes se tornassem a povoar com gados e currais, assim pela utilidade que resultava a real fazenda de V. Magest. Pelo crescimento dos dízimos, como pela conveniência de toda esta Capitania, pela muita quantidade de gados, que naqueles sertões se apassentam e abundancia de pastos que nele há, para o que lhe era necessário que eu o ajudasse dando-lhe algum gente e monições para nas ditas Piranhas fazer arraial e dar calor para se irem povando; trouxe consigo Senhor uma nação de Tapuias chamados Ariús, que estão aldeados junto aos careris aonde chamam Campina Grande, e querem viver como vassalos de V. Magestade e reduzirem-se a nossa Santa Fé, dos quais é principal um tapuai de muita boa traça e muito fiel. Segundo o que até o presente tem mostrado chamado Cavalcanti, os quais foram com o dito Capitão Mor e quarenta Careris e dezesseis índios, que tirei das aldeias e dez soldados desta praça. Mandei lhe concertar as armas e dar-lhe quatro arrobas de pólvora e balas, a esse respeito, e quarenta alqueiras de farinha e algumas carnes para viagem do dito Capitão Mor um religioso de Santo Antonio, a quem encomendei, muito particularmente, a conversão daquele gentio e o muito que se devia empregar, em ganhar aquelas almas. Pela carta que o Capitão me escreveu, que esta vai, verá V. Magest. O bom sucesso, que Deus Nosso Senhor, foi servido dar-lhe. Estou esperando pelo Capitão Mor para fazer outra entrada e me consta se vão ajuntando muitos gados para ir povoar as Piranhas aonde se deve fazer arraial para segurança daqueles pvoadores e confusão do gentio. As quatro presas mandei entregar ao Provedor da Fazenda, que mandou rematar por quanrenta mil reis. A Católica e Real pessoa de V. Magestade, guarde Deus muitos anos. Paraiba, 14 de maio de 1699. Manoel Soares de Albergaria.224

Nos sertões de Piranhas e Piancó, as batalhas contra os Kariri, Tarariu, Panati, Corema, entre outros, se arrastaram por três longos anos. Pompeu Sobrinho observa que:

O certo é que, nas últimas décadas do século XVII, os perseguidores de índios do São Francisco que invadiram os altos sertões da Paraíba e Pernambuco, em missão, mais de guerra que de colonização, e sem dúvida também os bandeirantes paraibanos (Oliveira Lêdo e Soares), não chegaram ao sul do Ceará. Eles ou os seus cabos, nas suas apressadas excursões ou batidas aos índios aproximaram-se muito das fronteiras do Ceará ao sul e a sudoeste.225 Quanto às nações Kariri dos sertões do Piancó, Piranhas e Pajeú, grande parte foi dizimada, outras forçadas a se submeterem às missões capuchinhas. Foram se instituindo ali os primeiros aldeamentos. Outras se dispersaram. Era os anos finais do século XVII. Assim,

224 AHU-Documentos para Paraíba. Consulta o Conselho Ultramarino, ao rei Pedro II, sobre a carta do

Capitão-Mor da Paraíba, Manuel Soares de Albergaria, acerca da gente e munições que deu ao Capitão- Mor dos Sertões das Piranhas e Piancó, Teodosio de Oliveira Ledo, para entrar no sertão contra o gentio tapuia. Caixa 03. Doc. 226. 1699. Grifos meus.

Com a defecção forçada dos índios dos sertões de Piranhas e das cabeceiras dos riachos pernambucanos afluentes do São Francisco, do Pajeú ao da Brígida, no último quartel do séçulo XVII, tornara-se possível o estabelecimento de algumas estâncias ou currais na região, provavelmente desde o comêço da última década ou mesmo um pouco antes. De 1690 a 1695, as tropas de Jorge Velho patrulharam a região de Piranhas, e, antes, que estas se tivessem retirada para combater os Quilombos, chegara ali a bandeira de Teodósio de Oliveira Ledo, que batera e devastara numerosas tribos indígenas. Começara, então, um precário povoamento no alto Piranhas, a leste e ao sul das fronteiras do Ceará, acima da passagem para Umari.226

Teodósio de Oliveira Ledo, foreiro da Casa da Torre, foi um dos principais capitães a conquistar o sertão da Paraíba.227 “Fez duas entradas além da Serra da Borborema, alcançando o alto Piranhas, já então devassado pela bandeira do paulista Domingos Jorge Velho. Em sua primeira entrada (1670), “fundou a primeira aldeia Kariri, na margem do rio homônimo, entregando-a ao capuchinho Theodore de Lucé”.228 Foi nesse território que índios Kariri e colonos travaram inúmeras batalhas pela posse de terras situadas nas fronteiras das Capitanias de Pernambuco e Ceará. Dali, muitas nações indígenas se deslocaram para os sertões limítrofes, especialmente para o Sul da Capitania do Ceará, como se pode observar no documento abaixo:

os portugueses cada dia fizessem entradas por aquellas terras, fazendo se senhores do mesmo certão, em que hião fundando sítios, e fazendas de criar gado vacuns, e cavallares. Como conservavão o ódio contra os portugeuezes que lhes havia tomado os lugares marítimos, os Xucurus, Panatis, Icos, Icosinhos, e Coremas levantarão se, e pondo em armas davão de repente em diversas partes matando e roubando[...] em várias partes lhe sairão partidos de indios rebeldes, que cortado sempre do nosso ferro, levarão no castigo a pena de sua ousadia [...] chegou finalmente no Pajaú, onde tiverão os maiores ataques, porque sendo aly mayor o poder, foy mais vigorosa a resistencia. Hum anno foi necessário para assegurar aquelle distrito das invasões dos inimigos, o que conseguido a custa de repetidas vitorias, passou Manoel de Araújo ao distrito de Piranhas, donde se achava o Capitão Mor Theodósio de Oliveira Ledo posto em campo contra os Panatis.Continuou Manuel de Araújo a conquista do Piancó, e Rio do Peixe, para o qual forão necessário três anos[...] conseguindo essa graça, tratou de levantar no Cariry hua Fortaleza e deu principio a hua igreja [...] desde seos principios foy a Igreja do Cariry, que erigio Manoel de Araújo parochia e a primeira dos certões do Cariry, Piranhas e Piancó.229

226 Idem. Ibidem.,

227 Sobre a ocupação dos sertões de Piranhas e Piancó, e a ação de família Ledo, ver CRUZ, Ana Paula da.

Op. Cit., e ARRUDA, Emmanuel Conserva de. A Ação colonizadora produzindo Espaço: de aldeia

indígena à Alagoa da Perdição (1766-1816). (Dissertação). João Pessoa: UFPB, 2010.

228POMPA, Cristina. Religião como Tradução: Missionários, Tupi e Tapuias no Brasil colonial. São

Paulo: EDUSC, 2003, p.215.

229 COUTO, Domingos Loreto do. Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco: Pernambuco

conquistado. Livro Primeiro, Cap. 5. p. 28-37. In: Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Vol. XXIV. Tomo I. 1904.

Assim,os indígenas do rio Piancó e alto Piranhas, empurrados pelas bandeiras de Domingos Jorge Velho e de Ledo, seguiram para os sertões do rio Salgado, no vale do Cariri, no Ceará. A Guerra, no entanto, continuava pelos sertões do Rio Grande do Norte e Ceará, nas ribeiras do Açu e Jaguaribe, um cenário único daqueles conflitos.

Tais conflitos encerravam, ali, mais um dos capítulos de conquista territorial pelos curraleiros. Uma carta resposta que o Mestre de Campo Matias Cardoso enviou ao governador da Capitania de Pernambuco, Dom João de Lencastro, sobre as possibilidades em recrutar índios nas aldeias daqueles sertões para auxiliá-lo nos conflitos contra os índios rebelados ilustra bem isso.

O que posso informar a vós é que sendo chamado da capitania de São Paulo, no ano de 698, para ir à conquista dos pinhancós, por ordem que para isso me remeteu o governador e capitão-general deste Estado, me ordenou que das aldeias do rio de São Francisco levasse em minha companhia... índios, para com eles aumentar a guerra da dita campanha, e com efeito se alistando os ditos índios, e comigo foram em confiança até o rio das Piranhas, donde termina a povoação dos currais, e donde principia a aspereza e esterelidades dos sertões,... á campanha do Açu, e do dito rio Piranha,... jornada de dois dias de marcha de despovoado, me achei só sem que comigo ficasse um só índio dos 700 que havia deixado (ou levado) das aldeias; Por cuja razão me parece avisar a Vossa Senhoria, que não é conveniente que ditas aldeias do rio São Francisco se tirem índios para este socorro, porque em lhes faltando a povoação dos currais em que tiram seguros o sustento, e entrando ao despovoado em que lhe fica duvidoso se voltarão infalivelmente.230

O Mestre de Campo, juntamente com os índios aliados, parece ter rumado para os sertões do Seridó, capitania do Rio Grande do Norte. A julgar pela aspereza do espaço e o despovoamento, só era possível ter seguido para aquelas terras. Se tivesse modificado a rota, rumando mais para o sudoeste, chegaria aos sertões Sul da Capitania do Ceará, atual região do Cariri, cujas descrições poderiam ser até sobre despovoamento de brancos, mas de sertões ásperos fatalmente não seriam. Outro elemento importante reside na preocupação do Mestre de Campo em adentrar nesses sertões, tenebrosos, inóspitos e distantes das povoações, o que facilitaria a insubordinação dos índios que o acompanhavam e a consequente fuga.

Como mencionado, se o Mestre de Campo Morais Navarro tivesse desviado um pouco para o norte não caberia em seus relatos o termo aspereza. Pois na mesma quantidade de dias (dois) que chegou ao Açu, chegaria ao “verdejante” espaço Sul da

230 “Resposta do Mestre de Campo Matias Cardoso de Almeida”. APB (Arquivo Público da Bahia). Seção

do Arquivo Colonial e Provincial, livro 149. In: SANTOS, Marcio Roberto Alves dos. Fronteiras do Sertão baiano: 1640-1750. (Tese). São Paulo: USP, 2010, p. 360. Grifos meus.

Capitania do Ceará. Este outro sertão, como afirmou Santos, realmente era muito distinto das “franjas pecuárias ribeirinhas”.

Porém, tal qual o São Francisco foi a fronteira natural que “paralisou” por um momento o fluxo da expansão curraleira dos baianos, o rio Piranhas, como aponta o documento, sinalizou mais um limite. Dessa vez, não apenas baianos, mas pernambucos e outros agentes da expansão colonial estavam na iminência de ultrapassar mais uma demarcação. No entanto, há de se questionar que elementos naturais e humanos assinalariam esse sertão em movimento, essa nova fronteira. O que estaria para além dela? Santos a esse respeito escreve que:

Estamos assim, diante de um outro sertão, distinto das franjas pecuárias ribeirinhas que, como vimos, recebiam quase sempre a denominação de sertão, mas que nesse documento são identificadas povoação dos currais. Nesse outro sertão não havia sinal algum de ocupação luso-brasileira, mas tão somente o despovoado, adjetivo de um espaço onde até mesmo grupos indígenas do São Francisco temiam entrar.231

A divisão fronteiriça colocada pelo mestre de Campo pode assinalar as primeiras concepções entre os sertões dos Cariris da Capitania da Paraíba e desse novo desconhecido sertão, mais tarde denominado de Sertões dos Cariris Novos, cuja ocupação colonial teve início a partir dos fins do século XVII.

A estratégia em aniquilar os índios mais bravos, Tapuias, e reduzir os que sobreviviam servia de exemplo àqueles que se atrevessem a confrontar e impedir o avanço da fronteira colonial, onde as terras indígenas eram tornadas “vazias” e “devolutas, legitimadas as doações aos homens de patentes, vitoriosos.

Snr. Dizem o Sargento mor Pedro Borges Pacheco, o Capitão Francisco de Albuquerque de Lima, e mais pessoas declaradas no Alvará de Sesmarias de terras de que offeresessem o treslado authentico, q. elles supplicanes comgrandes riscos, dispêndios de suas fazendas, por cauza dos gentios, descobrião na capitania do Rio de Grande nas cabiceiras de hua datta de terras, q. tem João Fernandes Vieira no Ceará mirim, para o Sertão huas terra devolutas, que nuca forão povoadas de brancos, nem dadas de Sesmarias a pessoa algúa, por cujo respeito lhe fez mercê, em nome de V.A. Alexandre de Souza Freire, sendo governador do Brasil, concederlhes cinqüenta légoas de terras, sem prejuízo de terceiros, em quadra de sesmarias nas cabiceiras das do ditos João Fernandes Vieira ou de outras quaisquer pessoas[...].232

À medida que o tempo corria, intensificavam-se as resistências, os combates e os massacres. Tropas por uma vertente margeando a zona litorânea e outras vindas pelo

231 SANTOS, Marcio Roberto dos. Op. Cit., p. 360-361.

232 AHU. Documentos para o Rio Grande do Norte. Requerimento do Sargento mor Pedro Borges Pacheco

e do Capitão Francisco de Abreu de Lima, ao príncipe D. Pedro pedindo confirmação de carta de sesmaria de terras na Ribeira do Ceará Mirim, passada pelo governador geral do Brasil Alexandre de Sousa Freire. Caixa 01. Doc. 10. 1667.

sertão, chegaram às ribeiras do Açu, que na Paraíba é denominado de Piranhas. Cenário dos mais cruéis episódios da guerra contra os Tapuias. A Guerra dos Bárbaros chegava às fimbrias do sertão, as ribeiras do Jaguaribe, no Ceará.

Dessa forma, iam se configurando as conquistas daqueles sertões, numa dinâmica conflituosa em que havia avanços e recuos. Os índios, afugentados pelos colonos, se refugiavam nas fronteiras coloniais, esperando o momento oportuno para revidar e defender ou retomar seus territórios. Acossados, a alternativa era a resistência que se tornava cada vez mais aguda e muitas vezes desesperadora. Buscando quebrar essa resistência e dar o golpe final em áreas mais arredias à conquista, como os sertões dos Cariris e Icós, os colonos lançaram mão de estratégias para, cada vez mais, tornar eficaz a guerra de conquista, que ganha novas configurações.