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CAPITULO I – Sobre Bárbaros, Tapuias e Kariri

2.2. Bárbaras Guerras Contra os Bravos Tapuias

2.2.1. No Médio São Francisco

No Médio São Francisco ao mesmo tempo em que inúmeros grupos Kariri ali foram aldeados, em meados do século XVII, ali se organizaram importantes células populacionais não-índias. No entanto, havia muitos outros gentios, inclusive desta mesma nação que não aceitando a submissão, estabeleceram-se em áreas fronteiriças coloniais, onde atacaram e pilharam as populações dos aldeamentos e vilas; o que provocou preocupação aos administradores e a ira dos proprietários locais. Essas resistências indígenas foram duramente rechaçadas pelos capitães daqueles sertões. Na maioria dos casos, inúmeras etnias eram exterminadas, não só pelas hostilidades efetuadas aos habitantes dos povoados, índios aldeados e nas estradas, mas, também, por outras atitudes/comportamentos entendidos pelos brancos como selvagens, a exemplo da forma de viver em corso, ou seja, circulando pelos territórios.

Ao serem a contragosto envolvidos nessa dinâmica, os nativos passaram a sentir que uma nova configuração espaço-territorial começava a ameaçar suas tradicionais formas de se relacionar não apenas com o mundo dos adventícios, mas também com o seu. E isto ocasionou inquietações, e muitos grupos se utilizaram de vários mecanismos para contornar tal situação. Fugas, alianças, deslocamentos, resistência armada, enfim, atitudes cujos resultados eram bem significativos de acordo com os grupos e o contexto. Argumento contundente foi o do índio da nação Kariri, Manuel Vieira, da Aldeia de Ararobá, agreste de Pernambuco. Estando foragido do aldeamento, passou a provocar bastante preocupação, especialmente às autoridades religiosas, pois vivia a cometer assaltos, roubos, mortes, e para piorar a crise, assediava os índios aldeados a se rebelarem e fugirem. Preocupado, o padre Missionário daquela Aldeia escreveu à Junta das Missões afim de que as autoridades competentes tomassem as devidas providências.

Propozerãose as queixas que faz do Indio Manuel Vieira do Ararobá o seu Padre Missionario sobre andar fugido pelo mato e não obedecer ao missionário fazendo roubos, mortes, e assaltos, em perjuiso da dita Aldea, e inquietando os Indios dela, e assentou-se pelos seculares em que o dito Indio fosse preso pelos meyos possiveys, ainda que fosse com difusam de sangue, e pelos Relligiosos que fossepreso.213

Mais uma vez, a guerra aos índios rebeldes estava justificada. E naqueles sertões do São Francisco, não poderia ser diferente. Domingos Afonso juntamente com

213Livro dos Acentos da Junta das Missões, cartas ordinárias, ordens e bandos que escreveram em

Pernambuco no tempo do governador Felix José Machado de Mendonça. In: GATTI, Agata Francesconi.

seu irmão Julião Afonso Serra travaram sangrentas batalhas para expulsar os nativos que viviam naqueles territórios.

As hordas selvagens, que habitavam as margens do Rio São Francisco, nas terras de Pernambuco, confinantes com a Bahia, Amoypiras e Ubajaras, por muitas vezes tinham acometidos as fazendas dos povoadores de uma e outra margem [...]Domingos Afonso Mafrense Serrão e seu irmão Julião Afonso Serra, fazendeiros do Rio São Francisco, e rendeiros de Francisco Dias de Ávila, dispondo-se a não sofrer por muito mais tempo os bárbaros vizinhos, armaram uma grande Bandeira e ajudada por Francisco Dias e seu irmão Bernardo Pereira Gago, e com Ella entraram por terras de Pernambuco em perseguição, e conquista dos Índios que, batidos em vários encontros, se foram internar pelos altos sertões, deixando muitas presas feitas, e esperança para novas conquistas. Nessa ocazião ou logo depois transpuzeram os dous cabos a serra dos dous irmãos, e continuando a marchar para o Norte, descobriram férteis terras, que banham o rio Canindé e seus afluentes sempre em perseguição dos Índios, que vão sendo vencidos, e aprisionados em muitas e arriscadas pelejas, em uma das quaes afirmam que sahira ferido Domingos Afonso.214

Um dos focos principais de resistência Kariri ao avanço da ocupação colonial se deu no sertão de Rodelas, em Pernambuco, lugar estratégico para diversificadas ações de conquista de outros espaços. Idalina Cruz215 destaca que indígenas dessa nação entraram em confronto armado durante três anos contra os portugueses; “até que, em gesto ousado, o chefe luso Manuel de Araújo vai em pessoa, sozinho com sua fé, procurar os chefes da confederação e propor-lhes paz, antes que se exterminassem todas os brancos do sertão, cujo número já era bastante avultado”.216Vejamos o documento abaixo:

No sertão de Rodelas se devem erigir dízimos q.pedem os paulistas econgruas, que sedevem assingnar aos Parochos di hestas, e outras terras pellafazenda de Vmgde. E pella q. toca a esta junta [ilegível] enquanto ao Sertão de Rodelas e suas povoaçoins, deve ser o remédio juntamente espiritual e temporal, Espiritual pello beneficio dos Parochos e o apparatos, e otemporal pella correção, e castigo dos delitos, Vmgde. Mandara o q. mais convier por esse Real Servidor. Lixª 29 de outubro de 1697.217

No entanto, a partir de 1680, os combates se tornaram mais ferrenhos. Dessa vez foi na Região do Médio São Francisco. Aqueles índios, quase todos da nação Kariri “combinaram e realizaram um levante contra criadores de gado a quem o rei havia

214 ALENCASTRE, José Martins Pereira. Memória chronológica, histórica e corographica da Província do

Piauhy. In: Revista do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro. Tomo XX. Vol. 20. 1857, p. 14.

215 PIRES, Maria Idalina da Cruz. “Guerra dos Bárbaros”: resistência indígena e conflitos no Nordeste

colonial. Recife: FUNDART, 1990, p. 57.

216 SIQUEIRA, Nelson Barbalho de. Cronologia Pernambucana, subsídios para a história do Agreste e do

Sertão. In: PIRES, Maria Idalina da Cruz. Op. Cit., p. 58.

217 AHU-Documentos Para Pernambuco. Consulta da Junta das Missões ao Rei D. II sobre as cartas do

Bispo de Pernambuco D. Frei Francisco de Lima e do Governador da dita capitania, Caetano de Melo Castro, acerca da falta de Igrejas e Parocos nos presidios dos Palmares e sertão de Rodelas, dos delitos cometidos na região, e da situação em que vive o mestre de campo do presidio de Alagoas. Caixa 17. Doc. 1732. 1697.

concedido amplo direito de estabelecer criatórios em suas terras”.218 O que ocorreu depois foi documentado pelo frade Capuchino Frei Martinho de Nantes, que presenciou o massacre daqueles indígenas. Segundo ele,

Marchamos ao encontro do inimigo, que estava a quarenta léguas rio acima. Haviam senhoreado todas as fazendas, que chamavam curralo, dos dois lados do rio, numa extensão de cerca de trinta léguas, depois de haver matado os donos e seus negros [...] não havia ainda marchado um quarto de léguas, quando encontramos o inimigo. Fez-se uma carga contra eles sem muito resultado, uma vez que os índios, batendo-se a flechadas, ficam em movimento contínuo e movem-se com tanta rapidez, que não é possível fazer pontaria com o fuzil [...] renderam-se todos, sob condição de que lhes poupassem a vida. Mas os portugueses, obrigando os a entregar as armas, os amarraram e dois dias depois mataram a sangue frio, todos os homens em armas em número de quase quinhentos, e fizeram escravos seus filhos e mulheres.219

Daquele espaço muitos índios foram expulsos e suas terras tomadas. Da grande cachoeira, de Paulo Afonso, rumando para os sertões do Norte, propagaram-se os embates. Perseguidos cada vez mais pelos curraleiros, os índios subiam por trilhas e pelos principais afluentes do São Francisco e se internavam cada vez mais nos longínquos sertões, chegando ao sul da capitania do Ceará.

Outra frente dessa guerra partiu do Médio São Francisco, rumando, dessa vez, para o interior do Piauí. Na observação de Sebastião da Rocha Pita, “um dos primeiros a ocupar aquele terreno foi o Capitão Domingos Afonso Manfrense Serrão, apelido que tomara em agradecimento das riquezas que lhe deram os sertões do Brasil [...]”.220

As incursões pelos sertões do Piauí, que chegaram ao sul do Ceará, contaram ainda com a participação de mais outros dois paulistas. Na observação de Hemming,

Dois intrépidos bandeirantes paulistas foram ao Piauí na mesma época em que o Manfrense, por volta de 1679. Um deles, velhaco brutal, chamava-se Domingos Jorge Velho; era o seu companheiro Cristóvão de Mendonça Arrais. Domingos Jorge Velho conquistou um território a oeste das terras do Manfrense e durante algum tempo eles combateram juntos os índios locais. Jorge Velho também tinha vindo por terra, a partir de Salvador, deslocou-se até Guguéia e estabeleceu-se no rio Poti. Derrotou os índios da região e reuniu em torno de si uma força de índios extremamente guerreiros, principalmente tobajaras, oruas e cupinharuéns.221

Nas expedições pelos sertões do Piauí, completam-se as principais frentes de expansão dos sertões das Capitanias do Norte, rumo àquelas do extremo norte. Nesses itinerários, os mais resistentes foram aniquilados e os sobreviventes reduzidos e aldeados.

218 HEMMING, John. Ouro Vermelho: A conquista dos índios Brasileiros. Tradução: Carlos Eugênio

Marcondes de Moura. São Paulo: Edusp. 2007, p. 506.

219 NANTES, Martinho de. Relação de uma Missão no Rio São Francisco. [1706].1976, p. 53.

220 PITA, Sebastião Rocha da. História da América Portuguesa. [1976]1730. Vol. 32. Belo Horizonte:

Itatiaia, p. 179.

Perseguindo e derrotando muitos índios, esses terços seguiam conquistando cada vez mais territórios pelos sertões adentro. Desde a Bahia, Mafrense foi auxiliado por índios aliados, como informa o padre Miguel de Carvalho, tutor de Francisco Dias Mataroá, da nação Kariri, e Capitão-mor dos índios Procaz do Sertão de Rodelas, da região do Médio São Francisco. Vejamos o documento:

Por decretode 26 do prezente mez e anno manda V. Magde. se veja e consulte neste Conselho o que parecer sobre huma petiçam do Padre Miguel de Carvaho como tutor de Francisco Dias Matarôa capitam mor de todos os Indios da nação porcaz moradores no certão de Rodellas, em que elle vinha sem sua companhia para este Reino pedir a V.Mgde. alguma recompensa dos muytos serviços q. lhe tem feito assim nas gueras dos Tapuyas Brabos como no descobrimento do caminho q. se fez da Bahia para o Maranhão e em outras muitas obras úteis ao serviço de Deos e de V.Magde. como constava dos papeis q. offerecia.222 Nos sertões do Médio São Francisco, os conflitos envolvendo nações Kariri não cessavam e o sertão semiárido tornou-se um cenário infernal, marcado pelas guerras de conquistas em diversas frentes. A luta contra os bravos bárbaros atingiria o seu ponto mais tenso, um verdadeiro genocídio/etnocídio estava em processo.