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CAPITULO I – Sobre Bárbaros, Tapuias e Kariri

2.1. Guerra para dentro: batendo Quilombos

Os negros cativos, ao romperem com sua condição social, desafiando a ordem pública e colocando em questão o sistema produtivo colonial e sua forma de organização, constituíram comunidades de fugitivos que lhes possibilitavam alternativas de sobrevivência um tanto diferentes da definida pela ordem escravocrata. Representavam a negação da ordem. Como afirma Eugene Genovese, onde há escravidão há quilombos.200

As preocupações das autoridades coloniais em relação às fugas desses negros, para além da perda de mão de obra, foi a forma de resistência e de organização social, que se configurava em ameaça às pretensões da sociedade escravagista. Some-se a isso, o fato de estarem ocupando uma área de terras férteis, de interesse dos proprietários e tropas chegantes; em especial, por serem ricas em salitre, matéria-prima para pólvora preta, um recurso do qual a Coroa não queria abdicar, pois importante naquele contexto de guerras. Essas preocupações estão em uma carta do governador da Capitania de Pernambuco, Fernão de Sousa Coutinho, ao príncipe D. Pedro em vinte de junho de 1671.

Há alguns annos, que dez negros de Angola fugidos ao rigor do cativeiro a fabricas dos engenhos desta capitania seformarão povoações numerozas pela terra adentro entre os palmares e matas cujas asperezas e falta de caminhos os tem mais intensificados pornatureza do quepudera ser por arte e crescendo a cada dia [...] tendo já tendas de ferreiro, e outras officinas comque poderam fazer armas pois uzão de agoa de fogo que de ca levão; e este sertão fértil demetais e salitre que tudo lhe oferece para sua defensa selhes nam falta a industria que tambem se pode temer dos muitos que foge la pratica em todas as mecânicas.201

199 Termo 41 do Livro dos Acento da Junta das Missões, cartas ordinárias, ordens e bandos que escreveram

em Pernambuco no tempo do governador Felix José Machado de Mendonça. In: GATTI, Agata Francesconi. O trâmite da Fé: A atuação da Junta das Missões de Pernambuco, 1681-1759. (Dissertação). São Paulo: USP, 2009, p.157-158. Grifos meus.

200 GENOVESE, Eugene. O mundo dos senhores de escravos: dois ensaios de interpretação. Rio de

Janeiro: Paz e Terra, 1979.

201 AHU. Documentos para Pernambuco. Carta do governador da Capitania de Pernambuco, Fernão de

Sousa Coutinho, ao príncipe regente (D. Pedro), sobre a organização dos negros fugidos nas terras dos Palmares, informando que está refazendo as forças militares, e analisando homens capazes para guerra com os ditos negros. Caixa 10. Doc. 917. 1671.

Francisco do Rego Barros que serviu por quatro anos (1663-1664) na Capitania de Pernambuco, apresentou, também, seu relato sobre Palmares;

em huma entrada que fez ao certão contra os negros dos Palmares com outenta homens q. juntou com seos criados e escravos q todo juntou de sua fazenda no decurso de hum mez [...] e encontrando nella huma tropa delles os avançar e apresionar todos ally homens, como mulheres deixandoos que nunca mais aparecerão por aquella parte aonde hoje estão situados muytos curraes de gado.202

Constituído em princípios do século XVII, desde 1602, as comunidades negras da Serra da Barriga, em Alagoas, foram sistematicamente combatidas, tanto por expedições lusitanas, quanto holandesa, em 1644; com um certo interregno durante os desarranjos políticos, sociais e administrativos ocorridos durante a ocupação holandesa e a insurreição pernambucana, de 1645 a 1654.

Para desalojá-los, a Coroa passou a organizar entradas e dando-lhe combates, embora de forma pouco intensa até 1654, tornando-se mais aguerridos após a expulsão dos flamengos, todavia sem grandes sucessos até 1668. A partir de 1671, as forças governamentais se voltam com força total para a missão de destruir Palmares, reforçada pelo terço dos Henriques. Os relatos dos Capitães mores elucidam esses conflitos.

Bento Correia de Figueiredo consta ter servido por espaço de vinte e hum anno 9 mezes e dous dias com alguma interpolação desde novembro de 651 athe agosto de 680 em praça de soldado, alfferes, Ajudante e Capitão de Infantaria Vivo e reformado ocupando também por provimento do governador de Pernambuco D. Pedro de Almeya, o posto de Capitão do Seará por falecimento de João Tavares de Almeida; e no decurso do ditto tempo se embarcou numa Armada da Companhia Geral que foi ao Brasil [...] e atualmente tendo se achado na guerra dos Palmares, e em hum assalto q. se deu em hum mocambo, em q. se matando e aprisionando muitos negros fazendo fugir outros para os matos.203

Essa fase de expansão e conquista territorial explica, em parte, o caráter violento de conquista e ocupação dos sertões e a forma com que os governos dessas capitanias foram organizando; assinalando para Coroa uma das mais árduas e complicadas tarefas. Para os sertões da Bahia, de Pernambuco e suas anexas a “resistência dos quilombos e dos gentios movimentou muitos contingentes de colonos e índios aliados

202 AHU. Documentos para Pernambuco. Consulta do Conselho Ultramarino ao rei d. Pedro II, sobre

nomeação de pessoas para o posto de Sargento mor das ordenanças da Praça da Capitania de Pernambuco, que vagou por falecimento de Clemente da Rocha Barbosa. Caixa 13. Doc. 1273. 1684. Memorial de Francisco do Rego Barros.

203 AHU. Documentos para Pernambuco. Aviso do Secretário de Estado Pedro Sanches Farinha ao

Secretário do Conselho Ultramarino, André Lopes de Lavor, ordenando que se envie uma relação dos serviços do Capitão de Infantaria de um dos terços da capitania de Pernambuco, Bento Coreia de Figueiredo. Caixa 13. Doc. 1272. 1684.

numa outra guerra que durou quase meio século”.204Pelos relatos dos Capitães mores que

estavam à frente das expedições se percebe isso.

Fernão Carilho consta ser provido pello Govº do Brasil Alexandre da Sousa Freyre noposto de Capitão de Infantataria da Ordenaça, e cabo das tropas da guerra dos mocambos da Capitania de Sergipe del Rey no anno de 670 [...]e indo conquistar os mocambos antigos, e desamparando no caminho a mayorparte da gente branca, que acompanhava, continuou a jornada com poucos índios, com os quais investio para os mocambos a honde havia mais de duzentos negros [...] e depois acompanhar ao Capitao Jorge Soares de Macedo as serrasde picarassa, a averiguar asminas, que se dizia haver nellas, levando em sua companhia seus cavallos, e doze escravos, sendo a jornada de mais de duzentas léguas, facilitando as difficuldades daquelles certões, que sem a sua companhia naopoderia conseguir, o respeitodo gentio brabo, que aly assistia por ser indômito. 205

A narração do capitão Fernão Carrilho é rica no sentido de que a utilização de índios aliados na luta contra os negros fugidos se configura numa das principais estratégias de guerras coloniais nesse período. Já que para Carrilho, em 1671, Pernambuco “não estava menos perigoso [...] com o atrevimento destes negros do que esteve com os holandeses” e esse “episódio oferecia uma boa oportunidade para demonstrar a eficiência das forças coloniais e metropolitanas sobre os seus inimigos internos”206. Noutro documento se lê:

Antonio Pinto Pereira consta haver servido na Capitania de Pernambuco vinte e dois annos 8 mezes e 17 dias imterpodaladamente desde 12 de outubro de 646 athe 20 de Julho de 1683 em que atuamente ficava continuando em praça de soldado Alfferes, Capitão vivo, e reformado por patente do govenador de Pernambuco[...]sentando Praça veyo para esse Reyno, e delle para aquella Capitania, sendo o primeiro que deu principio a redução dos negros dos palmares obrigando com suas rezões ao seu principal chamdo Ganazumbá, q. encontrou no certão a mandar três filhos e dous genrrosa a pedir pazes ao governador a buscolho foulhe fazer com mais de 400 soldados, obrando com muito trabalho e risco de vida e dispêndio de sua fazenda.207

Diante da pouca eficácia das tropas pernambucanas e particulares no combate aos palmarinos, em 1691, os bandeirantes paulistas – terços paulistas –, entre eles Domingos Jorge Velho, engrossaram as forças repressivas aos Quilombos da Serra da Barriga, batendo-os em 20 de novembro de 1695, quando foi morto seu líder maior –

204 SILVA, Kalina Vanderlei Paiva. Nas Solidões Vastas e Assustadoras – os pobres do açucar e a

conquista do sertão de Pernambuco no século XVII e XVIII. (Tese). Recife: UFPE, 2003. Ver também: PUNTONI, Pedro. Op. Cit.,

205 AHU. Documentos para o Ceará. Memorial de Fernão Carrilho: In: Consulta do Conselho Ultramarino

ao rei D. Pedro II, sobre a nomeação de pessoas para o cargo de Capitão mor no Ceará. Caixa 01. Doc. 25.1681.

206 LARA, Silvia Hunold. Do singular ao Plural – Palmares, capitães-do-mato e o governo dos escravos.

In: REIS, João José; GOMES, Flávio Santos dos. Liberdade por um fio – história dos Quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 83.

207AHU. Documentos para Pernambuco. Consulta do Conselho Ultramarino ao rei D. Pedro II, sobre

nomeação de pessoas para o posto de Sargento mor das Ordenanças da Praça da Capitania de Pernambuco, que vagou por falecimento de Clemente da Rocha Barbosa. Caixa 13. Doc. 1273. 1684.

Zumbi. Depois de aproximadamente um século de guerra, desbaratados os mocambos, vendidos e dispersados os sobreviventes, fez-se as solenidades de praxe, com todos – missas e o Te Deum.208 Destruído o quilombo, sim. Mortos os quilombolas? Não. Muitos daqueles que nessa luta saíram vivos fizeram nascer outras comunidades negras, onde experimentar ser livre era possível.

Uma vez concluída a missão na Serra da Barriga, os terços paulistas se voltam, novamente, para a guerra contra os bravos Tapuias, que “infestavam” os indômitos sertões semiáridos. Uma muralha que travava o avanço da fronteira expansionista.