• Nenhum resultado encontrado

Martim Soares Moreno – um estrategista na arte de dominar a arte da

CAPITULO I – Sobre Bárbaros, Tapuias e Kariri

2.4. Martim Soares Moreno – um estrategista na arte de dominar a arte da

da tradução

A conquista e colonização da capitania do Ceará se construiu não apenas através dos conflitos e das alianças, mas, também, pelas características dos grupos com quem os adventícios mantiveram relacionamentos. Sem esse critério, a conquista e subjugação do outro, bem como o conhecimento e dominação de muitos territórios se tornaria mais difícil e dispendioso à empresa colonial. Não tivesse essa cautela, correria, também, grande risco de sucumbir nos remotos sertões. Para a capitania do Ceará, o principal dessas relações consistia

na participação das tropas indígenas, que tanto resistiram ao avanço colonial quanto negociaram a pactuação de tratados de paz, a formação de alianças bélicas e a obtenção de benesses em troca dos seus decisivos serviços guerreiros na região, tantas vezes apontadas pelas autoridades locais como imprescindíveis para a manutenção da presença luso-brasileira nas diversas ribeiras e sertões da capitania, mas só muito escassamente considerados pela historiografia sobre a região.253

O exemplo de Martim Soares é suficiente para compreender os inúmeros mecanismos utilizados pelos portugueses durante o processo de conquista e povoamento da Colônia, especialmente as táticas de alianças. Para a capitania do Ceará, dotada de um espaço bastante vasto, com condições ambientais completamente distinta das demais, ausência da mata atlântica, semiárida, conquistar tantas léguas de terras, em posse de muitas nações Tapuias, e garantir os seus domínios, só seria viável mediante eficazes estratégias somadas a ações militares. Nesse sentido, deve-se destacar as práticas de

253 GOMES, Eudes José Arraes Barroso. As Milícias Del Rei: Tropas militares e poder no Ceará

Soares Moreno em selar “uniões”, construindo um diferencial em relação a Pero Coelho e as atrocidades cometidas contra algumas nações indígenas quando de sua incursão àqueles territórios. Assim, à semelhança de alguns conquistadores espanhóis, como Cortez, Pizarro, Galvez e Almagro, jogava com as disputas intertribais, fazia alianças e buscava consolidar lealdades.

As alianças estabelecidas por Martim Soares foram importantes, especialmente na conquista de alguns pontos estratégicos da zona litorânea. Dessa forma, para adentrar aos sertões, os nativos de matriz linguística tupi, sobretudo, os Potiguara, foram os mais assediados para esses empreendimentos. As alianças se deveram às atuações de líderes dessa e de outras nações; a saber, João Algodão, Francisco Aragiba, Maxuare, dentre outros que auxiliaram no conhecimento da geografia da região, lutando, negociando e por muitas vezes evitando entrar em confronto com os terríveis “bárbaros” dos sertões, os temidos Tapuias.

Foi com os Potiguara, que Soares Moreno conseguiu conter os ataques de muitos outros nativos que resistiam a ocupação de seus territórios, e, mesmo com a “lacuna” que ficou a capitania, quando este partiu para combater os holandeses em Pernambuco, muito tempo depois, os Potiguara, “prestaram aos portugueses assinalados serviços”.

Não só figuravam ao lado desses conquistadores em quase todas as campanhas internas que aqui levaram a efeito depois de 1666, contra os tapuias Cariri, como foram por eles utilizados em expedições guerreiras postas em execução fora da Capitania.254

Nação bastante belicosa, os Potiguara eram senhores das terras que compreendiam a costa do Rio Grande e porções da Paraíba. Por intermédio desses, Soares Moreno passou a costurar pazes com outras três nações, “obtendo informações de mais 22, de diferentes línguas”.255 Os acordos foram selados no calor do embate contra os franceses, onde, na ocasião, Martim Soares.

Para fazer esses assaltos me despia nu e me rapava a barba tingindo de negro com um arco e frechas ajudando-me dos índios falando-lhes do continuo da língua e perguntando-lhe o que já sabia bem fazer, no dito ano fiz pazes com 3 castas de tapuias ali vizinhos, e por meio deles tive novas do Maranhão e foram Índios dêle falar comigo donde me deram noticias das boas terras que havia naquelas partes e gastando sempre muito de minha fazenda para fazer estas pazes.256

254 STUDART FILHO, Carlos. Op. Cit., p.119. 255 MORENO, Martim Soares. Op. Cit., p.186. 256 Idem. Ibidem., p.182.

Quando mais tarde, Martim Soares Moreno e seus comandados principiaram a ocupação do Ceará, já lhe pesava a “boa” reputação entre alguns nativos pois: “é mais compassivo com os índios, cuja liberdade respeita; captou-lhe as shympatias; conhece- lhes a língua; poderá influir poderosamente no sentido da colonização Portugueza”.257 Habilidoso, logo conseguiu a simpatia e prestígio de Jacaúna, chefe Potiguar. Quando esteve na conquista do Maranhão, Martim se utilizou dessa “proteção” e “prestígio” para que fosse obedecido pelos demais. Ele destacou que

Isto feito me fui em demanda da Ilha que cheguei com a barca perto da terra donde desembarquei e podo-me em cima de um penedo pregando que era filho de Jacauna todos me ouviram e me levaram galinhas e muitos legumes, ali pus uma cruz com um letreiro que dizia aqui chegou o capitão Soares Moreno a tomar posse por El-Rei Católico [...].258

Embora Soares Moreno seja um bom estrategista, entendedor dos signos dos nativos aliados, e mesmo daqueles adversos259, grande parte de sua perspicácia pode ter sido “facilitada” pelas atuações de religiosos, em especial os padres Francisco Pinto e Pereira Figueira, que ao percorreram os sertões, do que mais tarde seria a capitania do Ceará, conseguiram minimizar as desconfianças que tinham em relação aos portugueses, especialmente os Tabajara, Potiguara e Tupinambá.

Outra nação que os portugueses não hesitaram em se aliar foram os Jaguaribara que transitavam da margem esquerda do Choró ao Rio Mundaú e Serra da Ibiapaba, muito “numerosa e valente, era temida e respeitada até pelos próprios luso- brasileiros que, como mostram as crônicas, sempre procuram captar-lhe as boas graças não ousando nunca enfrenta-las de armas nas mãos”260.

Essa postura cautelosa que os portugueses tinham diante dos Jaguaribara, elucida a forma de se relacionar com determinados grupos naquele contexto. Reconhecendo sua belicosidade e o temor que as demais tinham deles, os luso-brasileiros adotavam métodos de aproximação sem que fosse os do enfrentamento armado e sim o da negociação.

Naquele momento, o que pesava, sobretudo, para os portugueses, era a carência de homens nas fileiras militares. Para isso, era importante conquistar aqueles nativos tanto para utilizar como força militar contra os Tapuias, como no auxílio do

257 STUDART, Barão de. Martim Soares Moreno: fundador do Ceará. In: Revista do Instituto do Ceará.

Fortaleza: Tomo XVII, 1903, p.177- 228.

258 MORENO, Martim Soares. Op. Cit., p.183.

259 TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América: A questão do Outro. São Paulo: Martins Fontes,

1982.

conhecimento e conquista de novos espaços. Em contrapartida, os Jaguaribara, aliando- se aos não-índios, além de facilitar a vitória contra seus inimigos seculares, os Paiacu, ficavam momentaneamente menos temerosos dos assaltos dos brancos. Nesse jogo, ambos procuravam tirar vantagens das posições em que ocupavam naquele momento. Os Jaguaribara, com muitos homens aptos a lutar, conhecedores do espaço, dentre outras virtudes, sabiam do seu potencial e por muito tempo souberam utilizar a seu favor. Isso se tornou visível quando auxiliaram os portugueses numa campanha contra os tapuias Baiacu/Paiacu que perturbavam o sossego da população nativa das aldeias avassaladas.

Há de se ressaltar que, em 1611, quando Martim Soares tentou se estabelecer nas terras do Ceará, trouxe com ele o já mencionado chefe potiguar, Jacaúna.261 Dessa forma, quando assumiu a administração da capitania, em 1621, tinha ideia de onde e de quem poderia se aproximar e celebrar paz, pois num contexto essencialmente belicoso, inconstante e cheio de desconfianças, conhecer o tipo de nação que melhor oferecia vantagens como aliada era importante; e, muito mais, era se aproximar das que já haviam tido contato com os não índios, pois acreditar um no outro não era tão simples assim.

Naquele princípio, onde as teias de relações eram muito frágeis, um dos aspectos mais cruciais era manter os laços de confianças de ambos os lados. A experiência do contato com os não-índios durante mais de um século proporcionou aos nativos muitos recursos para sobreviverem a um novo contexto, e um deles era a forma de se relacionar com os adventícios. Não foi por simples formalidade que Jacaúna tratou Martim como “filho”. Mais tarde, Janduin, importante chefe indígena dava o mesmo tratamento ao holandês Roulox Baro, quando requisitou auxílio daquele principal para lutar contra os portugueses.262 Àquela altura, muitos índios compreendiam sua situação e que a forma de lidar com os luso-brasileiros lhes poderia render alguns bons resultados; dependendo, é claro, dos papéis que ambos procuravam desempenhar em determinados contextos. Friedrich Câmara observa que:

Aqui se afiguram alguns importantes papéis dos índios na colonização portuguesa: guerreiros, informantes e povoadores. Estes papéis, claro, só seriam desempenhados corretamente quando as alianças eram bem tecidas e favoreciam os interesses de ambos. Se, por um lado, o povoamento e controle do território por grupos aliados favoreciam aos projetos coloniais, também esses grupos podiam auferir vantagens como produtos europeus, aliados para

261 BEZERRA, Antonio. Algumas Origens do Ceará. (Fac-símile a edição de 1918). Fortaleza: Fundação

Waldemar Alcântara, 2009, p.13.

suas guerras aos inimigos, além de deter o desejo escravagista e genocida europeia contra o seu grupo.263

Em setembro de 1621, Soares Moreno tornou-se Capitão-Mor da capitania do Ceará; tendo-a administrado por dez anos, mediante o compromisso do poder real:

E porque convem a meu serviço que a dita capitania do Ceara se povoe a cultive assim para o bem comum que a si promete a meus vassalos que a ella se quiserem ir viver, como para aumento de minha Fazenda e Para se impedir aos corsários e comercio que tem com gentio por aquela costa, e ficar melhor a navegação do Maranhão, vos mando, que tanto que este vos for apresentado pelo dito Martim Soares, lhe desse as embarcações necessárias para levar a dita gente e mais cousas referidas.264

No entanto, ele não conseguiu realizar com muito êxito tal tarefa. A começar pela quantidade de terras que havia requisitado quando ali chegou. Das doze léguas que pediu, apenas duas lhe foram concedidas. Some-se a isso a falta de recursos para erguer fortificações e a chegada dos cinquentas soldados prometidos mediante o Alvará régio de 14 de outubro de 1620.

Outro problema que teve que enfrentar foram os ataques dos muitos nativos arredios à presença branca naqueles territórios. Segundo ele, “V.Magestade foy servido de mandar assistir a este Seara onde cheguei em 28 de setembro e fui muito bem recebido de todos os Indios aqui vizinhos, os quais achei muito trabalhados com guerras que huns selvagens cercuvizinhos lhes dão a huns portugueses que aqui assistem”.265

As alianças sempre foram uma estrada de mão dupla. Para os não-índios, seu entendimento era o de que essas relações eram importantes para a subordinação e a sujeição dos nativos à Coroa. Para os nativos, além de algumas mercês, poderiam minimizar ou evitar ações de total extermínio por parte dos colonos. Embora os portugueses necessitassem mais dos nativos que os nativos deles as vantagens da política de alianças pesaram mais para o lado dos não índios. Câmara observa que

para obter sucesso no seu empreendimento colonial, a metrópole precisava dicotomizar o índio controlador do território, encaixá-lo nas categorias amigo manso/inimigo-bravio, criar justificativas para a conquista das terras ocupadas por eles e consolidar o domínio sobre sua força de trabalho.266

Com essas categorizações, pouco a pouco foi se observando quem potencialmente poderia ser ou não aliados dos colonos e, consequentemente, súditos do

263 SIERING, Friedrich Câmara. Conquista e dominação dos Povos indígenas: resistência no Sertão dos

Maracás (1650- 1701). (Dissertação). Salvado: UFBA, 2008, p. 72.

264 APEC. Sobre Martim Soares Moreno que vai com Governador do Ceará. Carta de 28 de janeiro de

1621. In: Coleção Professor Limério Moreira da Rocha. p.12.

265 AHU. Documentos para o Ceará. Carta do Capitão mor do Ceará, Martins Soares Moreno, ao rei D.

Felipe II, a pedir o envio de cinquenta soldados para a construção de uma fortificação. Caixa 1. Doc. 6. 1621.

rei. Mediante esse procedimento, milhares de nativos que não se encaixavam na categoria amigo/manso foram sumariamente extintos, sobretudo, quando as terras e os recursos naturais ficaram mais escassos e serem pleiteados por ambos os lados.

Na medida em que foram alargando as fronteiras da costa rumo aos sertões mais “incultos”, ocupando terras e tentando tornar os Tapuias leais ao Rei e ao Deus cristão, os administradores entenderam que os conquistar não seria tão fácil.

Ao adentrar o século XVIII, os conflitos se tornaram mais agudos. As principais vertentes de expansão que vieram pelo Acaraú, internaram-se pelo centro norte, travavam batalhas contra os nativos que habitavam as nascentes do Jaguaribe até as fronteiras da capitania do Piauí. Ali, os Caratiú iam perdendo suas terras para os novos moradores adventícios, que aos poucos iam construindo fazendas e criando seus gados e os submetendo aos novos mecanismos de organização socioeconômica. Negando esse novo princípio, que afetava profundamente sua estrutura de sobrevivência, a solução era resistir através do “roubo” do gado e pela pilhagem de fazendas. Numa carta escrita pelo Capitão Mor do Ceará Domingos Simões Jordão, em oito de março de 1736, percebe-se essa problemática.

Também se acham umas terras dos Caratius, da parte de dentro da Serra da Ibiapaba e Serra dos Cocos, que ambas tem a mesma união para a parte desta capitania, as quais foram descobertas e conquistadas com as armas dos moradores dela [...] também se acha nesta capitania uma nação de Tapuia mansos chamado jenipapo, de mau procedimento, por se não querer este sujeitar a trabalhar para ter com que sustentar e não vive este mais que matar os gados dos moradores e destruirlhes as fazendas, o q. recebe V.M um grande prejuízo nos seu dízimos Reais. Causa é esta por onde não quererem os moradores por vizinhos, e tendo lhe dado Vigario varias vezes Missionário para os doutrinar, nenhum com ele quer assistir pelas rebelião emque vivem e mau trato que lhe dão, no que V.M determinara o que for servido.267

É interessante observar a negação dos índios ao trabalho nos moldes dos “civilizados”; a não aceitação ao aldeamento que implicaria em sua redução em todos os sentidos, em especial no controle de seu espaço e de seu tempo. A alternativa para esses era a cruz ou enfrentar a guerra que ali chegara.

Por isso, a opção dos capitães-mores em se aliarem a nações temidas era uma importante estratégia, especialmente para reduzir o poder de muitos tapuias, especialmente os Paiacu, os quais “senhoreavam a faixa costeira que, compreendendo as bacias inferiores do Açu e baixo Jaguaribe se estendiam às proximidades do Rio

267 APEC. Carta do Capitão mor do Ceará, Domingos Simões Jordão. In: Coleção Prof. Limério da

Choró”.268 Assim como os Tremembé, os Paiacu não tinham boas relações com os portugueses, nem estes com os Paiacu. Essas duas nações, dentre outras, duramente muito tempo, foram duramente perseguidas e hostilizadas não só pelos não-índios, mas também pelos seus contrários. Nesse contexto, a bárbara guerra contra os Tapuias já havia alcançado os sertões do Jaguaribe, quebrando as últimas fímbrias da muralha que obstaculizava o avanço da consolidação das fronteiras lusitanas rumo ao norte. Um contínuo de escaramuças que desestruturavam as sociedades Tapuias nos sertões de Açu (RN), Piancó (PB) e Jaguaribe (CE).