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AS RELAÇÕES DE PODER EM TORNO DA GOVERNANÇA GLOBAL DA SEGURANÇA ALIMENTAR

DESNUTRIÇAO NO MUNDO 2005-2017 POR GRANDES REGIÕES

Fonte: FAO (2018a)

Como se percebe pelos dados do Relatório, a África e a América do Sul apresentam dados piorados no período. O continente africano continua a ser o que apresenta maior prevalência de desnutrição, afetando quase 21% da população (mais de 256 milhões de pessoas). A situação também está se deteriorando na América do Sul, onde a prevalência de desnutrição aumentou de 4,7% em 2014 para 5,0% projetada em 2017.

Além disso, os dados revelam que a tendência decrescente de subnutrição na Ásia, que vinha marcando os últimos anos, parece estar desacelerando significativamente. A prevalência de desnutrição projetada para esse continente em 2017 é de 11,4%, o que representa mais de 515 milhões de pessoas.

Com estes indicadores, a FAO afirma que sem ulteriores esforços da comunidade internacional, o mundo não alcançará o objetivo dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) de erradicar a fome até 2030. Assim,

Los alarmantes indicios de una creciente inseguridad alimentaria y los altos niveles de las diferentes formas de malnutrición son uma clara advertencia de

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Note-se que o setor denominado pela FAO de “América Setentrional e Europa” não aparece na tabela por apresentar dados bem abaixo do percentual de 2,5%.

137 que es mucho lo que resta por hacer para asegurarnos de “no dejar a nadie atrás” en el camino hacia la consecución de las metas de los ODS sobre seguridad alimentaria y mejora de la nutrición. (FAO, 2018, p. vii).

Diante desse quadro que demonstra o fracasso das iniciativas voltadas para a eliminação da fome no mundo, nos moldes como estão postas, torna-se necessário, como dito, ir além dos números e buscar entender os movimentos causais do fenômeno.

Assim, abordar-se-á o fenômeno da fome no mundo inicialmente pelo enfoque da economia internacional de forma “pura”, ou seja, sob o viés do mercado de alimentos e sua crescente tendência a uma oligopolização sob a égide da mercantilização dos alimentos e das commodities em geral e suas consequências ambientais, dentre outras.

A partir deste panorama, discutir-se-ão os aspectos da relação entre riqueza e poder, na linha de uma “eco-geopolítica internacional”, que visa entender, por meio de uma ampliação conceitual do que se entende por geopolítica, indo além de sua compreensão como estratégias de defesa de Estado numa relação poder-território, para alcançar os fatores políticos que envolvem uma determinada situação e suas distribuição e variações de poder, como é o caso do mal da fome. (CASTRO,1984).

4.1.1 A fome e a dinâmica da economia internacional: a questão pelo viés do mercado

Nesta perspectiva econômica centra-se a atenção ao contexto da dinâmica da produção, circulação e consumo de bens e produtos no mercado internacional aplicado à questão alimentar. Com efeito, falar sobre como o fator econômico vem ganhando cada vez mais importância para entender os fenômenos internacionais.

Nota-se nos últimos anos, especialmente a partir de 2008 (com fortes sinais já na última década do século XX), uma forte instabilidade econômica no mundo, movida pela grave crise financeira nos mercados internacionais que foi seguida por situações internas em países de todo o mundo, especialmente os EUA e os europeus.

Um dos aspectos mais relevantes desta questão reside na desregulamentação (ou na jamais existente regulamentação) do mercado financeiro internacional, o que foi combustível suficiente para comportamentos oportunistas de corporações e investidores para ganhar cada vez mais em ações, títulos e papéis negociados nas várias bolsas de valores ao redor do mundo, gerando um descolamento abissal entre economia real e economia de cunho especulativo. Tudo isso contrariando boa parte da teoria econômica que acreditava no

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comportamento racional do homo economicus e, por isso, na capacidade autocorretiva do mercado.

A este respeito, Dowbor (2015, p. 32) assevera que

O ponto fundamental é que não é a falta de recursos financeiros que gera as dificuldades atuais, mas a sua apropriação por corporações financeiras que os usam para especular em vez de investir. O sistema financeiro passou a usar e drenar o sistema produtivo, em vez de dinamizá-lo.

Movimentações no mercado financeiro sempre houve no mundo ocidental, especialmente a partir do início da era moderna com o aparecimento das primeiras casas de financiamento das grandes navegações. No entanto, o final do século XX e as duas primeiras décadas do século XXI assistiram uma evolução do investimento em capital especulativo sem precedentes. Tudo isso, em prejuízo da economia real, a que leva à produção de bens e serviços e atende às necessidades das populações.

Dowbor (2015, p. 32), ao constatar que 1% da população mundial detém mais recursos do que os 99% restantes, completa que isto representa uma fortuna tão grande

que não podem ser transformadas em demanda, por mais consumo de luxo que se faça. Assim, são reaplicadas em outros produtos financeiros. E a realidade fundamental é que a aplicação financeira rende mais do que o investimento produtivo. O PIB mundial cresce num ritmo situado entre 1% e 2,5% segundo os anos. As aplicações financeiras rendem acima de 5%, e frequentemente muito mais. Gerou-se, portanto, uma dinâmica de transformação de capital produtivo em patrimônio financeiro: a economia real sugada pela financeirização planetária.

Cabem, então, algumas reflexões importantes. Assim, alguns autores analisam o desenvolvimento do capitalismo e suas crises nos últimos anos, verificando os rebatimentos desta evolução na produção de alimentos e sua (má) distribuição como um dos fatores da persistência da fome no mundo as limitações da globalização para atingir inclusão de todos no sistema. [STREECK (2012), ALTVATER & MAHNKOPF (2002), KRASNER (1985), PIKETTY (2014) e CARNEIRO (2015)].

O papel dos Regimes internacionais e da governança global diante de temas globais, em geral, e da fome, em particular vem sendo discutidos por KRASNER (2012); KHOURYA, BJORKMANC & DEMPEWOLFD (2014); CANDEL (2014); e TRICHES, GERHARDT & SCHNEIDER (2014). Tais estudos demonstram a relevância desta questão o mesmo tempo em que identificam as inflexões nas abordagens.

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As interrelações da segurança alimentar com as questões ambientais e a sustentabilidade e com as ações voltadas para o desenvolvimento rural sustentável, incluindo aqui a reforma agrária no Brasil e em outros países, como Índia e Angola são objetos de estudos de MARGULIS, McKEON & BORRAS JR. (2013); TRICHES & SCHNEIDER (2015); PINTO (2008); GOMES (2012); TIBÚRCIO (2015); GUERRANTE (2010) e FRATE (2011).

Abaixo apresentam-se, em breve, aspectos relevantes deste excursus.

a) Economia internacional, regimes internacionais e a segurança alimentar e nutricional no mundo

No que tange aos aspectos da economia política internacional, nos quais está imbricada a questão da fome no mundo e que influenciam as tomadas de decisões de cada estado nacional e da FAO.

. Conforme sublinham Dumenil & Lévy (2011) e Streeck (2012), no processo de (re)organização dos atores estatais e não-estatais para combater os efeitos destas crises, em especial no que se refere à regulação do capital, na linha do que afirma Piketty (2014), bem como nos movimentos dos países chamados já outrora de Terceiro Mundo para reagir concertadamente à questão da fome, tema enfrentado por Krasner (1985).

Abordar a insegurança alimentar e nutricional no mundo, por isso, significa percorrer, ainda que brevemente, os caminhos da dinâmica do comércio internacional, em especial as volatilidades dos preços das commodities e dos alimentos em particular. No primeiro caso, por entender que os países que mais sofrem o problema da fome são primário- exportadores e dependem das cotações de seus produtos agrícolas para garantir recursos para dinamizar seu desenvolvimento econômico. Os preços dos alimentos no mercado internacional ou as variações que sofrem, por sua vez, influenciam no acesso das populações pobres aos insumos nutritivos suficientes para garantir melhorias nas condições de vida.

A volatilidade dos preços de commodities em geral e dos alimentos em particular possui importância para a compreensão da dinâmica econômica envolvida na questão da alimentação mundial80. Antes, é mister sublinhar que a variável preço é relevante pois é uma das determinantes do comportamento de consumidores e de produtores. Do ponto de vista do produtor, o nível de preços afeta a receita e, por isso, seu incentivo para produzir e ofertar

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Ver-se-á mais à frente nesta tese que a dinâmica de oferte e demanda de alimentos no mercado internacional não é o único nem o principal motivo pelo qual os preços e a disponibilidade de alimentos sofram variações.

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alimentos. Já os preços de alimentos afetam as decisões de compra dos consumidores.

Pode se definir o termo volatilidade como variações de variáveis econômicas ao longo do tempo. No caso de variações de preços de alimentos, a volatilidade passa a ser problema quando as variações são grandes e difíceis de ser antecipadas (FAO, 2011), pois gera incertezas para consumidores e produtores sobre qual é o verdadeiro nível de preços, e isso pode levar os agentes a tomarem decisões consideradas sub-ótimas (ou seja, de baixa qualidade) quando comparadas com as decisões tomadas em momento de estabilidade.

No caso dos produtores, a volatilidade de preços pode reduzir investimentos e levá-los a optar por cultivar produtos de baixo risco e usar tecnologias menos produtivas. No caso dos consumidores, ela gera restrição ou incerteza de acesso aos alimentos, especialmente no caso de domicílios pobres e vulneráveis, que não possuem renda para manter seus padrões de consumo.

A tabela abaixo apresenta a variação dos preços das commodities em geral e dos alimentos no período de 2008 a 2018.

TABELA 01

PREÇOS PRIMÁRIOS DE COMMODITIES NO MUNDO 2008–2018