• Nenhum resultado encontrado

PREÇOS PRIMÁRIOS DE COMMODITIES NO MUNDO 2008–2018 (Variação percentual em relação ao ano anterior)

AS RELAÇÕES DE PODER EM TORNO DA GOVERNANÇA GLOBAL DA SEGURANÇA ALIMENTAR

PREÇOS PRIMÁRIOS DE COMMODITIES NO MUNDO 2008–2018 (Variação percentual em relação ao ano anterior)

Grupo de commodities 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018

Todas as commodities a 33,5 -31,6 24,7 28,6 -3 -3,8 -7,9 -36,1 -9,7 17,8 17,1

Todos os alimentos 32,6 -9,9 12,3 24 -6,5 -10 -0,1 -16,1 4,1 -0,6 -4

a

Incluindo combustíveis e metais preciosos

Fonte: Adaptado de UNCTAD (2018). Elaboração própria.

As quedas de preços das commodities de 2009 e de 2012 a 2016 vem sendo revertidas em 2017 e em 2018, favorecendo, de uma certa forma os países produtores. A respeito desses dados, segundo a UNCTAD (2018), após contínuas quedas a partir de 2012, os preços de uma ampla gama de commodities devem aumentar em 2018, continuando (com algumas exceções) a tendência observada desde janeiro de 2016, quando a queda nos preços das commodities de 2011 foi revertida. Esta tendência de aumento dos preços ganhou impulso e se espalhou para uma maior variedade de commodities durante o primeiro semestre de 2018. No geral, de acordo com o Banco Mundial, os preços das commodities no primeiro trimestre de 2018

141

aumentaram em três quartos das commodities cobertas por ele. No entanto, no caso de mais de 80% dessas commodities, os preços ainda estão abaixo dos picos de 2011.

Quando se observam os preços de todos os alimentos, especificamente, de 2009 até 2018 (com exceção de 2008, 2010, 2011 e 2016) os preços variam negativamente. No que se refere ao grande grupo de commodities composto por produtos agrícolas, houve queda de preços no período de 2012 a 2015 e em 2017, que se intensificou no primeiro semestre de 2018. Como se vê, o índice dos preços da categoria “todos os alimentos” caiu 4% em 2018 em relação ao ano anterior. Todas as categorias (alimentos, bebidas tropicais e oleaginosas e óleos vegetais) refletiram essa tendência.

No entanto, a alta dos anos 2008, 2010, 2011 e 2016 foi de tal monta que os preços ainda não retornaram a valores anteriores a 2008, fazendo com que o acesso aos alimentos ainda seja dificultado, especialmente aos países mais pobres.

Esta é uma das situações que interpelam a necessidade de concertação global para a busca de solução do problema da fome e a discussão sobre o papel da governança global diante de temas globais, em geral, e da fome, em particular, como sublinham Krasner (2012); Khourya, Bjorkman & Dempewolfd (2014); Candel (2014) e Triches, Gerhardt & Schneider (2014), os quais abordam temas como políticas alimentares e homogeneidade no suprimento global de alimentos.

b) Interrelações entre segurança alimentar e nutricional e questões ambientais

Há, forte relação entre segurança alimentar e questões ambientais. Falar em produção de alimentos passa pela análise da sustentabilidade desta produção e pela avaliação das ações voltadas para o desenvolvimento rural sustentável, incluindo aqui a reforma agrária. É o que discutem Margulis, McKeon & Borras Jr. (2013); Triches & Schneider (2015); Pinto (2008); Gomes (2012); Tibúrcio (2015).

Margulis, McKeon & Borras Jr. (2013) analisam criticamente a questão da land grabbing e a governança global, colocando no centro da discussão o papel da posse da terra e da utilização dela não só como fator de produção, mas como geradora de riqueza, bem como as consequências disso para a existência da fome.

A este respeito, DEININGER (2010, p. xiii), em estudo promovido pelo Banco Mundial sobre o grande aumento do interesse global por terras agriculturáveis, afirma que

142 growing human and environmental pressures, and worries about food security, this interest will increase, especially in the developing world81.

O autor constata que, entre outubro de 2008 e agosto de 2009, foram comercializadas mais de 45 milhões de hectares, sendo que 75% destes foram na África. A média anual até 2008 era de 4 milhões de hectares. O crescimento da produção agrícola e, consequentemente, das demandas e transações de compra de terras, se concentra na expansão de apenas oito commodities agrícolas: milho, dendê (óleo), arroz, canola, soja, girassol, cana de açúcar e floresta plantada.

A obra identifica demais três tipos os demandantes por terra no momento: governos preocupados com a demanda interna e sua incapacidade de produzir alimentos suficientes para a população, especialmente a partir da crise dos preços dos alimentos de 2008, dentre os quais se destaca a China; empresas financeiras que, na conjuntura atual, acham vantagens comparativas na aquisição de terras como reserva de valor com fins especulativos; e, empresas do setor (agroindustrial, agronegócio) que, devido ao alto nível de concentração do comércio e processamento, procuram expandir seus negócios e mercados.

Já Triches & Schneider (2015), debatem a construção de sistemas agroalimentares voltada para o atendimento das necessidades dos consumidores, buscando entender as novas conexões para o desenvolvimento rural e seu papel na superação da fome. Pinto (2008) e Tibúrcio (2015) analisam, respectivamente, os casos da Índia e de Angola, refletindo sobre os desafios a construção de políticas públicas voltadas para a superação da fome, especialmente no que se refere à burocracia e à ausência de planejamento a longo prazo para a questão.

Guerrante (2010), por sua vez, destaca a grande dependência dos combustíveis fósseis e o debate sobre seus efeitos nas mudanças climáticas geram preocupação com a diversificação da matriz energética global e os combustíveis alternativos ao petróleo, como o etanol derivado da cana-de-açúcar. O aumento nos preços dos alimentos leva a debate os efeitos da produção de etanol sobre a (in)segurança alimentar, particularmente dos países pobres, centrando sua análise no Brasil, que se destaca no cenário mundial pela competitividade, energética e econômica, da produção de etanol e está no foco do debate, sendo um país estratégico diante do processo de tomada de decisões.

Segundo a FAO (2012), em geral, o efeito da demanda por biocombustíveis será

81

“O interesse em terras agrícolas está aumentando. E, dada a volatilidade dos preços das commodities, as crescentes pressões humanas e ambientais e as preocupações com a segurança alimentar, esse interesse aumentará, especialmente nos países em desenvolvimento”. Tradução nossa.

143

elevar os preços dos alimentos, o que prejudicará a segurança alimentar de muitas pessoas pobres nas áreas rurais e urbanas. No entanto, a discussão acima destaca o quanto a produção e o consumo de alimentos são heterogêneos em diferentes países, ambientes de produção e estruturas socioeconômicas. A produção de biocombustíveis aumentará o emprego em alguns casos, mas reduzirá em outros.

Os preços mais altos dos alimentos beneficiarão algumas famílias pobres (se forem vendedores líquidos), mas prejudicarão muitos outros (compradores líquidos). Em suma, em toda a Ásia, os preços mais altos dos alimentos vão piorar a insegurança alimentar e a pobreza, porque os que vivem nos estratos mais pobres da sociedade são consumidores líquidos de alimentos.

Há que se sublinhar, no entanto, que a questão da relação entre preço dos alimentos e produção agrícola direcionada a biocombustíveis ainda é bastante discutida seja em termos mundiais como no Brasil82. Com efeito, de acordo com Silva (2014), é necessário que se façam avaliações integradas e inter-setoriais de custos e benefícios em uma economia verde nos debates com foco em oportunidades e riscos para a segurança alimentar decorrentes da produção de biocombustíveis.

Neste sentido, Schlesinger (2014), em pesquisa apoiada pela ActionAid83, demonstra que pelo menos no Brasil os impactos sobre a produção de alimentos e sobre o seu preço são bastante significativos. No nordeste do Estado do Pará, como se verá mais adiante nesta tese, foram, de certa forma, inda mais dramáticos por causa do avanço da Palma de Dendê, como matéria-prima.

Frate (2011) contribui com esta discussão abordando a questão do etanol e refletindo que a amplitude do conceito de segurança alimentar e nutricional, e a especificidade dos métodos tradicionais das ciências da saúde, são fatores limitantes para a avaliação da segurança alimentar e nutricional. Em sua pesquisa oferece uma abordagem metodológica capaz de avaliar de forma sistêmica a segurança alimentar e nutricional de domicílios de agricultores familiares assentados em regiões produtoras de etanol de cana-de-açúcar. Seu estudo revelou quatro perspectivas, a saber: conflituosa-comensal politizada, produtivista- clientelista não ecológica, produtora-empreendedora expropriada, e harmoniosa simbiótica extrativista. O autor evidencia a necessidade de desenhar políticas que garantam a coexistência de grandes produtores e agricultores familiares como condição para

82

Pingali et al., 2008; Ewing e Msangi, 2009; McNeely et al., 2009; Molony e Smith, 2010 83

A ActionAid é uma organização não governamental internacional cujo objetivo principal é trabalhar contra a pobreza em todo o mundo. Ver http://actionaid.org.br/

144

transformação do etanol brasileiro em commodity, assim como de alargar o conceito adotado nos sistemas de certificação de biomassas energéticas de forma a torná-los legítimos.

Nesta questão, um papel preponderante é exercido pelas políticas públicas voltadas para o setor agrícola. É consolidado na literatura econômica que o desenvolvimento dos países mais pobres parte necessariamente pelo setor primário da economia. É neste sentido que Almeida (2008)84 afirma que

O setor agrícola de uma economia, por isso, possui importante papel, especialmente porque garante a reprodução das pessoas, qualificando assim sua força de trabalho. Esta importância do setor agrícola é ainda mais evidente em países pobres, os quais, por não possuírem condições de potencializarem o setor industrial e o de serviços, dependem da produtividade da agricultura para seu sustento (p. 33).

Em países menos desenvolvidos, com efeito, o desenvolvimento agrícola é importante não apenas como incentivo à produção, mas por meio de ações de regularização fundiária e da posse da terra, de reforma agrária inserida no processo produtivo voltado para o desenvolvimento rural, de produção e disseminação de tecnologias garantidoras de produtividade e de investimento nas formas produtivas baseadas na agricultura familiar. (ALMEIDA, 2008).

Acrescente-se a isso, a necessária preocupação ambiental decorrente desse processo, em meio a um mundo que, no século XXI, discute com maior intensidade as consequências danosas da ação humana sobre os frágeis ecossistemas do planeta. Em consonância com o que sustenta Leef (2004), as ações voltadas para a utilização dos recursos naturais exigem uma nova racionalidade que configure novas atitudes humanas e que supere aquela denominada de instrumental, calcada no iluminismo e que gerou o avanço do capitalismo, a qual sustentava que a razão garantia evolução e progresso para todos. Para este autor, a questão ambiental é uma crise civilizacional e, por isso, mexe profundamente na ordem econômica do mundo globalizado.

Como se percebe, falar de segurança alimentar sob o prisma da economia política internacional, conduz para a compreensão de que o agrícola, o agrário e o ambiental devem estar imbricados e unidos como balizadores das políticas públicas nacionais e internacionais voltadas para a superação da fome.

84

A dissertação de mestrado do autor desta tese enfatiza também que o desenvolvimento do setor agrícola potencializa o desenvolvimento de uma economia, numa dinâmica de interrelacionalidade setorial.

145

4.1.2 A eco-geopolítica da fome no mundo: a destruição em massa pela tanatopolítica

O pensamento de Giorgio Agamben, que foi apresentado no capítulo 3 desta tese, sublinha que, na biopolítica da contemporaneidade, o processo de desnudamento do homem se dá na dúplice dinâmica de inclusão e exclusão. A vida nua se dá pela retirada dos direitos que fazem o homem ser homem com pleno exercício na polis. Reduzido de volta a zoé, o homo sacer expressa o destino daquele cuja decisão do soberano foi no sentido de sua morte: é a tanapolítica85 como cálculo do poder sobre a morte. A fome, assim, pode se tornar uma condenação de morte.

A abordagem, neste ponto, busca apresentar as perspectivas referentes ao viés “eco- geopolítico”, um neologismo para indicar a imbricação entre a economia política e a geopolítica aplicada às questões alimentares no mundo, que abrangem não somente a produção de riqueza por meio do comércio internacional, bem como – e principalmente – a relação entre essa riqueza e a distribuição geográfica e setorial dessa riqueza, na produção de poder e de saberes correlatos.

Trata-se, ademais, de ir além da distribuição geográfica da presença da fome, da produção de alimentos e das fontes de alimentos, que se configuram na geografia da fome no mundo. Significa, acima de tudo, descortinar os fluxos, os processos e os atores envolvidos nesta dinâmica para perceber a teia de interesses e as disputas de poder que subjazem nas decisões tomadas em nível global, à luz do que se entende por geopolítica da fome

É neste sentido que Fumey (2008, p. 8) sublinha que

La géopolitique traite habituellement du rapport des États sur les territoires. Elle fait la part belle aux armes, aux traités, aux alliances entre des acteurs installés dans un rapport de force et, parfois, en conlit. L’alimentation n’a pas d’acteur identiié d’emblée, car tous les êtres humains sont des mangeurs, et donc des acteurs du système alimentaire. D’un autre côté, tous les

85

Este conceito nascido das reflexões de Giorgio Agamben condensa uma expressão de valor interpretativo considerável para a compreensão da governamentalidade global indicado nesta pesquisa. Com efeito, a análise agamberiana sobre a biopolítica conduz, como se viu, à exploração uma figura particular do exercício do poder que representa a outra face da moeda da biopolítica: a tanatopolítica. A biopolítica se transforma em tanatopolítica quando a atuação de determinadas políticas públicas implica a morte de seres humanos, como um instrumento direto e ordinário (por exemplo, os campos de concentração nazistas calculados como “solução final”) ou, simplesmente, como consequência indireta e eventual, mas, igualmente, calculada. Quando se percebe a coincidência entre interesse público e a morte de seres humanos, a biopolítica se torna tanatopolítica (AGAMBEN, 1995; 1998; 2002; 2004).

146 cuisiniers du monde, les restaurateurs, les industriels et les paysans de l’agroalimentaire sont, à leur manière, des acteurs de cette activité complexe qu’est l’alimentation86

.

Com efeito, na obra Geografia da Fome (CASTRO, 1946), Josué de Castro realiza um mapeamento do Brasil a partir de suas características alimentares deixando clara a trágica situação da fome no país. Esta não poderia mais ser atribuída a fenômenos naturais, mas a sistemas econômicos e sociais que poderiam ser transformados para o benefício da população. Já na Geopolítica da Fome (CASTRO, 1951), o autor amplia para o mundo denúncias sobre a fome no Brasil. Denunciando a fome universal como uma praga fabricada pelo homem e não como fenômeno natural, ele construiu uma obra profundamente humana, acima das posições partidárias e das intolerâncias políticas.

Assim, para Josué de Castro, a geopolítica é uma disciplina científica que busca estabelecer as correlações existentes entre os fatores geográficos e os fenômenos de categoria política, a fim de demonstrar que as diretrizes políticas não têm sentido fora dos quadros geográficos (CASTRO, 1951)87.

Correia (2012, p. 243), comentando a obra de Josué de Castro, sublinha que até o título do livro “está carregado do espírito que está na gênese de uma nova geopolítica, pois poucos fenômenos têm interferido tão intensamente na conduta política dos povos, como o fenômeno alimentar, como a trágica necessidade de comer”.

A imagem abaixo descreve, as ocorrências do mal da fome, a partir de dados do Global Hunger Index e sua distribuição pelas regiões do mundo, apresentando os dados estratificados nos períodos de 2000, 2005, 2010 e 2018.

86

“A geopolítica geralmente lida com o relacionamento dos Estados com os territórios. Ela aproveita ao máximo as armas, tratados, alianças entre atores estabelecidos em uma luta pelo poder e, às vezes, em conflito. A alimentação não tem ator identificado desde o início, porque todos os seres humanos são comedores e, portanto, atores do sistema alimentar. Por outro lado, todos os cozinheiros do mundo, os restaurantes, industriais e camponeses agro-alimentares são, à sua maneira, atores nesta atividade complexa que é a alimentação”.

(tradução nossa).

87 “Embora degradada pela dialética nazista, esta palavra conserva seu valor científico (...). Ela procura estabelecer as correlações existentes entre os fatores geográficos e os fenômenos de caráter político” (CASTRO, 1951, p. 57).

147

GRÁFICO 05