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CAMPO DA ALIMENTAÇÃO GLOBAL

GRÁFICO 01: DO ACESSO INADEQUADO AO ALIMENTO ÀS VÁRIAS FORMAS DE DESNUTRIÇÃO

3.4 Segurança alimentar e soberania alimentar: a via da agroecologia

Do ponto de vista teórico, segurança alimentar e soberania alimentar são conceitos interrelacionados, pois focam na questão do atendimento de uma necessidade humana básica e constante, que é o alimento. De várias formas, ao longo deste trabalho esta constatação se fez presente. Como se viu, um dos aspectos mais importantes é o político, entendido no sentido que expressa horizontes de disputas de poder no micro e no macroambiente e que manifestam interesses quase nunca convergentes entre os atores envolvidos.

Nesta altura do trabalho, é importante traçar estes pontos de interrelação, destacando convergências e divergências, a fim de que se avance mais ainda na construção dos argumentos da presente Tese. Isto significa realizar verificação conceitual-empírica, na linha do que se explicou na secção que apresentou a metodologia que norteia esta pesquisa. Significa também retomar o que foi discutido nas seções anteriores para tecer considerações que permitam avaliar a força teórico-práxica da soberania alimentar como resistência.

Além disso, como corolário imprescindível, é importante aprofundar a compreensão do que é agroecologia, pois tal conceito configura-se como pilar da soberania alimentar e representa um modus operandi fundamental para uma possível interseção entre soberania alimentar e segurança alimentar por meio da superação dos limites que esta apresenta, dado que ela não estimularia nem autonomia e nem modos alternativos de produção de alimento, constituídos a partir dos saberes localmente construídos.

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Pode-se dizer, então, que a segurança alimentar concentra-se principalmente no processo de acesso ao alimento e, por isso, as ações para ela voltadas discutem estas dinâmicas, visando garantir que o alimento atenda as populações mais carentes do mundo, que haja quantidade suficiente para atender quem mais necessita e que exista qualidade nutricional no alimento consumido.

Como se viu, as preocupações alcançam tentativas de garantir maiores possibilidades de, pela via do mercado, o acesso aos alimentos não seja comprometido pelas variações dos preços dos alimentos no mercado internacional. Para isso, as instituições internacionais voltadas para a governança global deste âmbito, envolvem-se, portanto, nas disputas de mercado, no mercado, cujo domínio (como se verá posteriormente) por um pequeno oligopólio das gigantes corporações transnacionais alimentares. Garantir o acesso, então, é o objetivo mais urgente e fundamental que sustentaria a segurança alimentar das populações no mundo, pois a produção é suficiente para alimentar a população mundial.

Para alcançar esta segurança formalizam-se acordos e alianças que envolvem atores globais do setor estatal, do setor de mercado e da sociedade civil global de modo a encontrar formas de concertação que fundamentem orientações de procedimentos internacionais e influenciem as políticas internas dos países.

Já no que se refere à soberania alimentar, ela se constitui como uma forma diferente de enfrentar a questão alimentar, pois o foco é a produção. Não basta garantir o acesso a qualquer tipo de alimento proveniente do mercado internacional ou produzido

pelas grandes corporações, é necessário que este alimento respeite à cultura local e seus

modos de comer específicos.

Afirma-se, aqui, que o conceito de segurança alimentar é limitado, pois não ataca o cerne do problema, que reside nas dinâmicas do mercado mundial de alimentos, no poder das corporações transnacionais. Existe, por isso, a necessidade de alternativas às políticas neoliberais neste campo. Mesmo quando se fala em direito ao alimento, este é enfraquecido por ainda estar preso à configuração mercadológica do acesso70.

Deste modo, para os defensores da soberania alimentar, as políticas neoliberais, que acabaram por definir referências e ações do combate à fome no mundo, desenvolveram uma progressiva “privatização” da segurança alimentar (o que, no início estava sob o domínio da

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Interessante, neste aspecto, o que afirma Marques (2010, p. 78): “De fato, a posição produtivista supõe e propaga a ideia de que o comércio internacional de alimentos constitui o fator chave para a segurança alimentar e mesmo para o direito à alimentação. Nesta linha de raciocínio, o desenvolvimento sem entraves do comércio internacional de produtos agrícolas favorece a redução dos preços dos alimentos, o que já satisfaz os requisitos de segurança alimentar e de direito à alimentação”.

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capacidade redistributiva dos Estados), no âmbito de uma relação global de mercado, gerida pelas grandes corporações alimentares.

Por isso, a “escassez” de alimentos no mundo se deve às distorções dos sistemas produtivos alimentares, à destruição dos mercados locais, ao desmantelamento das reservas alimentares dos países e dos modelos culturais ecossustentáveis e à especulação financeira dominante na economia internacional.

Além disso, um aspecto fundamental diz respeito ao fato que, pelo viés da soberania alimentar, o alimento é considerado um direito e ter acesso a ele não pode estar à mercê das dinâmicas do mercado. Trata-se, por isso, de uma modificação no modo de pensar a dinâmica alimentar, pois, como foi bastante sublinhado anteriormente, envolve uma nova cosmovisão, que preconiza o respeito pelo meio ambiente e a necessária simbiose entre homem e natureza. Esta autonomia na produção do alimento enfatiza a agroecologia (como se verá a seguir) como o modo de produção alimentar e enseja a capacidade de trabalho coletivo no respeito aos saberes tradicionais. A preocupação basilar é com a garantia de alimento saudável, mas também com a produção da sustentabilidade ambiental, econômica e cultural das comunidades envolvidas. Nesse sentido, a soberania alimentar enseja que haja resistência ao processo de padronização alimentar e à utilização de produtos químicos e agrotóxicos em geral, geradores de graves consequências para a saúde humana. Assim, só haverá segurança alimentar se houver soberania alimentar.

É neste contexto que se apresenta a agroecologia como o modus operandi mais adequado para implementar a soberania alimentar como fator preponderante para a garantir de uma segurança alimentar guiada pelos princípios preconizados pelos movimentos sociais. Como se viu acima, Snipstal (2015, p. 165) o movimento identifica-se como “militant- agroecological-educators”, destacando, assim, a centralidade da agroecologia no processo, pois ela “is a concrete pillar in the construction of food sovereignty”. O autor sublinha também que

There are numerous tactics, methodologies, and strategies in the construction of food sovereignty. From the La Vía Campesina experience, agroecology is seen as a key pillar in the construction of food sovereignty. Agroecology is a movement to transform reality: it is about transforming our models of production and making material changes in the lives of the peasantry, rural peoples, and those who consume our food—society at large71.

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!Existem inúmeras táticas, metodologias e estratégias na construção da soberania alimentar. A partir da experiência da Via Campesina, a agroecologia é vista como um pilar fundamental na construção da soberania alimentar. A agroecologia é um movimento para transformar a realidade: trata-se de transformar nossos modelos

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Com efeito, confrontando-se com o modelo alimentar dominante (industrial, produtivista, monocultural, extensivo e de alta utilização de produtos químicos e insumos geneticamente modificados, dentre outras características), a soberania alimentar baseia-se na produção do tipo familiar, baseado em práticas agroecológicas e sustentáveis. Então, considerando esse papel estratégico na soberania alimentar, vale então aprofundar-se sobre o conceito de agroecologia.

Para uma correta compreensão da agroecologia é preciso superar o reducionismo que em algumas pesquisas ela está confinada. Com efeito, para esta visão, agroecologia é retratada como um modelo de produção de alimentos “mais ecológico”, ignorando totalmente sua expressiva identidade como metodologia política e como método de organização e aprendizagem social voltada para a superação da crise do capital dentro da agricultura. Tal abordagem desconsidera a necessidade e o subsequente papel da agroecologia como uma frente política e a visão de uma alternativa ao agronegócio - o modelo de capital da agricultura industrial (McCune, Reardon, & Rosset, 2014), ou seja, a agricultura é um modelo de práxis social.

Para além disso, confirma Snipstal (2015), é também uma ferramenta de transformação social, pois promove poder e liderança e constrói infraestrutura agrícola na base, que se constitui em fator primordial para permitir que a agroecologia floresça e construa a soberania alimentar. Dentre estes, se destacam: sistemas de sementes camponesas e bancos locais de sementes; energia de pequena escala e sistemas de irrigação; organizações cooperativas e sociais de pequenos agricultores; programas de reassentamento e acesso à terra para jovens; mecanismos de recursos baseados no movimento que trazem recursos para comunidades de pequenos agricultores e rurais; e o desenvolvimento de metodologias e tecnologias sociais, culturais e ecológicas que estarão no centro do conhecimento agroecológico no futuro.

A agroecologia, ainda segundo Snipstal (2015), é um diálogo do passado com o futuro, de ancestralidade com a juventude. Assim, por um lado, é o acúmulo de conhecimento e sabedoria camponesa ancestral. Por outro, é o diálogo crítico deste conhecimento acumulado com as modernas ciências ecológicas e naturais. No meio está o papel crítico da juventude no desenvolvimento e evolução desse processo: como o conhecimento está sendo transferido e evoluindo, e como isso continuará?

de produção e fazer mudanças materiais na vida do campesinato, dos povos rurais e daqueles que consomem nossa comida - a sociedade em geral”. Tradução nossa.

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Há uma clara intenção de promover ações práticas de produção agroecológica de alimentos, mas também de conhecimentos que aliem saberes e ciência, em harmonia com a natureza. Desafio, com certeza, hercúleo, na medida em que está localizado em um contexto econômico internacional dominado pelos interesses das grandes corporações que, como se verá mais adiante nesta tese, definem os processos internos e internacionais da produção, distribuição e consumo de alimentos. E é precisamente nisto que se fundamenta a presente pesquisa: verificar como a soberania alimentar, cujo pilar é a agroecologia, se constitui em resistência a esta dominação cratológica.

Nesse sentido, a agroecologia é um processo de construção contínua de um modelo de agricultura que pode existir e evoluir em perpetuidade, estando em harmonia com a natureza. Trata-se então de configurar modelos formativos de conhecimento voltados para a promoção de agroecologia72.

A propósito desta questão formativa para a agroecologia, McCune, Reardon & Rosset (2014), ao estudarem três experiências promovidas pela Via Campesina à luz da Educação Popular, da agroecologia e do Diálogo de Saberes73, afirmam que

In each case, common themes arise: the need for a diálogo de saberes, the pace of change (in farming, in organizations, and within people), the search for methods to create and sustain autonomous processes, and the complex interplay of factors that motivate people to learn about, practice, and transform agriculture (MCCUNE, REARDON & ROSSET, 2014, p. 45)74

Um dos aspectos mais relevantes que vem sendo discutidos pelos movimentos sociais rurais aborda o papel altamente negativo da utilização de produtos químicos na produção de alimentos. A agroecologia tem por princípio o não uso destes agrotóxicos e o combate às empresas que os utilizam.

Sobre este tema específico, Machado & Machado Filho (2014) na obra “A dialética da

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“Currently, there are roughly 40 different agroecological schools and training processes within La Vía Campesina, with the overwhelming majority of them based throughout the Americas and the Caribbean regions—and recently in Africa and Asia. The newest agroecological training school to sprout in the Americas is the Latin American Institute of Agroecology (IALA) in Nicaragua. After years of organizing and planning, this school opened in the Summer of 2014, coordinated by the Association of Rural Workers (ATC)—a La Vía Campesina member organization in Nicaragua. The school is located in the heart of Nicaragua’s coffee growing region, in a state called Matagalpa” (SNIPSTAL, 2015, p. 167).

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Paulo Freire Latin American Institute of Agroecology (IALA) in Venezuela; The Campesino-to-Campesino Agroecological Movement in Cuba; e IALA Mesoamérica in Nicaragua.

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“Em cada caso, surgem temas comuns: a necessidade de um diálogo de saberes, o ritmo da mudança (na agricultura, nas organizações e dentro das pessoas), a busca de métodos para criar e sustentar processos autônomos e a interação complexa de fatores que motivar as pessoas a aprender, praticar e transformar a agricultura”. Tradução nossa.

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agroecologia: contribuição para um mundo com alimentos sem veneno” sustentam que a agroecologia é um método viável de produção agrícola com condições de sobra para substituir o agronegócio e atender a demanda da fome no mundo, diferente das árduas críticas de alguns pesquisadores conservadores75. Além disso, pretendem demonstrar a possibilidade e o dever de se produzir alimentos limpos, afirmando que é realmente possível produzir alimentos sem agrotóxicos e fertilizantes de síntese química em qualquer escala.

Dessa forma, nestas estratégias de gerar produção e reprodução de saberes voltados para a agroecologia, cada vez mais atores populares, incluindo camponeses, proletários e indígenas e outros povos marginalizados pelo modelo neoliberal - incluindo muitos educadores e pesquisadores estão se unindo cada vez mais para construir alimentos alternativos ao sistema. Agroecologia é uma ferramenta social importante para a transformação das realidades rurais através de ação coletiva e se constitui numa peça estratégica na construção da soberania alimentar.

Estas reflexões fecham a primeira parte desta tese. Ao longo do caminho até aqui percorrido, buscou-se fundamentar as bases teórico-práxicas que permitem analisar, à luz da teoria pós-moderna das Relações Internacionais e a partir dos constructos teóricos de Foucault e Agamben, a evolução da soberania alimentar como resistência no processo de atuação da governança global da segurança alimentar, a qual se configura como governamentalidade global.

A segunda parte desta Tese, a seguir, empreenderá uma descrição empírica das relações de poder em torno da governança global da segurança alimentar.

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Os autores criticam as empresas do agronegócio que buscam desqualificar o método agroecológico, afirmando, que além da questão da escala, o custo de produção é mais caro do que a convencional. Demonstram, com exemplos de experiências agroecológicas que é possível produzir alimentos em qualquer escala e de que seus custos não são mais caros.

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PARTE II

AS RELAÇÕES DE PODER EM TORNO DA GOVERNANÇA