• Nenhum resultado encontrado

CAMPO DA ALIMENTAÇÃO GLOBAL

FIGURA 1: TIPOLOGIA DE JACKSON

3. GOVERNANÇA GLOBAL DA SEGURANÇA ALIMENTAR E SOBERANIA ALIMENTAR: DISCUSSÃO TEÓRICO-PRÁXICA

3.2. Segurança alimentar

O conceito de segurança alimentar emerge nos anos 70 do século passado e foi objeto de contínua evolução, o que reflete a sua complexidade e a dificuldade de inseri-lo corretamente num quadro de referência político e operacional, este também em transformação.

Seguindo o processo metodológico proposto nesta tese, é interessante destacar como, historicamente, o conceito de segurança alimentar veio se estabelecendo como a referência para as ações voltadas para a superação da fome no mundo. Estas etapas indicam que a construção do conceito se dá pela formatação das relações de poder entre os agentes envolvidos. Os estudos de Shaw (2007) sobre a história da segurança alimentar global a partir de 1945, correlacionada com a história da FAO e os desdobramentos contemporâneos da questão, ilustram este processo.

Assim, em 1975, por meio do Report of the World Food Conference, acontece a introdução do conceito de segurança alimentar, segundo o qual a medida do estado de segurança alimentar de um país é dada pela quantidade de recursos alimentares estocada e a capacidade de superar situações temporárias de escassez. Nesse documento, sublinha-se que a comunidade internacional possui responsabilidade precípua:

As it is the common responsibility of the entire international community to ensure the availability at all times of adequate world supplies of basic food-stuffs by way of appropriate reserves, all countries should co-operate in the establishment of an effective system of world food security (UNITED NATIONS, 1975, p. 251)45.

Já em 1981, Amartia Sen46 propõe a revisão do conceito, considerando que este não depende somente do equilíbrio entre demanda e oferta dos recursos alimentares, mas também do direito da comunidade e do indivíduo de adquiri-los. Suas reflexões partem da consideração que para construir uma visão geral da pobreza, é necessário ir além da atual

45

“Como é responsabilidade comum de toda a comunidade internacional garantir a disponibilidade em todos os momentos de suprimento mundial adequado de alimentos básicos por meio de reservas apropriadas, todos os países devem cooperar no estabelecimento de um sistema eficaz de segurança alimentar mundial”. Tradução nossa.

46 Ver SEN (2018, Preface, p. vii): “Much about poverty is obvious enough (...) But not everything about poverty is quite so simple. Even the identification of the poor and the diagnosis of poverty may be far from obvious when we move away from extreme and raw poverty”.

109

identificação dos pobres.

Assim, de acordo com Sen (1981, p. 45),

Ownership of food is one of the most primitive property rights, and in each society there are rules governing this right. The entitlement approach concentrates on each person's entitlements to commodity bundles including food, and views starvation as resulting from a failure to be entitled to a bundle with enough food47.

Ou seja, a alimentação é um direito que independe de recursos financeiro, pois está ancorado na garantia de sobrevivência e é dever de quem governa a sociedade.

Em 1983, a FAO expandiu seu conceito para incluir o acesso de pessoas vulneráveis a suprimentos disponíveis, sugerindo que a atenção deve ser equilibrada entre a demanda e a oferta da equação de segurança alimentar: “assegurar que todas as pessoas tenham acesso físico e econômico a qualquer tempo à comida básica que eles precisam”, conforme garante o Relatório do Diretor da FAO em 198348.

Outro documento importante nesse processo histórico de construção conceitual da segurança alimentar é o Relatório do Banco Mundial “Poverty and Hunger”, de 198649

. Nele é introduzida a dinâmica temporal na definição de fome, na qual se faz a distinção entre insegurança alimentar crônica e temporária. A primeira, associada a problemas de pobreza contínua ou estrutural e baixa renda, é considerada como tendência geral. Já a segunda é vista como situação contingente resultante de eventos momentâneos, isto é, períodos de pressão intensificada causada por desastres naturais, colapso econômico ou conflito.

Além disso, é sublinhada a necessidade de garantir alimentos adequados por sua quantidade quanto por sua qualidade. No documento, a segurança alimentar é elaborada em termos de “access of all people at all times to enough food for an active, healthy life”. Faz-se, então, uma relação clara entre alimentação adequada e vida saudável por meio do acesso constante ao alimento, por meio de políticas nacionais e internacionais claras de atendimento da demanda por comida no mundo (WORLD BANK, 1986).

Em meados da década de 1990, um importante aporte conceitual foi introduzido. Naquele momento, a segurança alimentar já era reconhecida como uma preocupação

47

“A posse de alimentos é um dos direitos de propriedade mais primitivos e, em cada sociedade, existem regras que regem esse direito. A abordagem de direito concentra-se nos direitos de cada pessoa ao conjunto de produtos básicos, incluindo alimentos, e considera a fome como resultante de uma falha em ter direito a um conjunto com alimentos suficientes”. Tradução nossa.

48

World Food Security: a Reappraisal of the Concepts and Approaches. Director General’s Report. Ver FAO (1983)

49

110

significativa, abrangendo um espectro do nível individual ao global. No entanto, o acesso agora envolvia alimentos com qualidade suficiente para garantir vida saudável, indicando preocupação contínua com a desnutrição energético-proteica. Assim, a definição foi ampliada para incorporar, além da segurança alimentar, o equilíbrio nutricional, refletindo preocupações sobre a composição dos alimentos e requisitos mínimos de nutrientes para uma vida ativa e saudável.

As preferências alimentares, determinadas social ou culturalmente, passaram a ser levadas em consideração. O grau potencialmente alto de especificidade do contexto implica que o conceito havia perdido sua simplicidade e que não fosse ele mesmo um objetivo, mas um conjunto intermediário de ações que contribuem para uma vida ativa e saudável. Foi quando se estabeleceu a ideia de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN)50, para expressar esse ulterior aprofundamento conceitual.

Em 1994, o Relatório de Desenvolvimento Humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento introduziu o conceito de “Segurança Humana” (UNDP, 1994), da qual a segurança alimentar é um dos componentes, juntamente com a segurança econômica, sanitária e ambiental51. Este conceito está intimamente relacionado com a perspectiva dos direitos humanos no desenvolvimento que, por sua vez, influenciou as discussões sobre segurança alimentar, numa construção mais ampla da seguridade social que possui muitos componentes distintos, incluindo saúde e nutrição, o que reforçará a consolidação do termo “Segurança Alimentar e Nutricional”.

Na linha desse desenvolvimento conceitual, a Cúpula Mundial da Alimentação de 1996 adotou uma definição ainda mais complexa: “A segurança alimentar, nos níveis individual, doméstico, nacional, regional e global, é alcançada quando todas as pessoas têm acesso físico e econômico a alimentos suficientes, seguros e nutritivos para atender às suas necessidades alimentares e preferências alimentares para uma vida ativa e saudável” (FAO, 1996).

Esta definição, ainda hoje aceita, sublinha a multidimensionalidade do conceito, incluindo nele os componentes da disponibilidade, acesso, utilização e estabilidade. Reafirma- se também o conceito de direito ao alimento, tema amplamente debatido nos anos seguintes.

50

Reforça-se mais uma vez aqui que, no contexto desta tese, sempre que se falar em segurança alimentar, considerar-se-á também seu componente nutricional.

51

Na verdade, a lista de ameaças à segurança humana é longa, mas pode ser considerada sob sete principais âmbitos: segurança econômica, segurança alimentar, segurança sanitária, segurança ambiental, segurança pessoal, segurança comunitária e segurança política. Ver UNDP (1994).

111

No documento “The State of Food Insecurity” de 200152

, tal conceituação é confirmada e mais uma vez refinada, assegurando o componente social essencial seja no âmbito físico, quanto no âmbito econômico para determinar o acesso aos recursos alimentares. Segundo ele, segurança alimentar é “a situation that exists when all people, at all times, have physical, social and economic access to sufficient, safe and nutritious food that meets their dietary needs and food preferences for an active and healthy life”. (p. 18)53

. Essa nova ênfase no consumo, no lado da demanda e nas questões de acesso das pessoas vulneráveis à alimentação, está mais intimamente identificada com o estudo seminal de Amartya Sem, já discutido acima. A comunidade internacional aceitou essas declarações cada vez mais amplas de objetivos comuns e responsabilidades implícitas. Mas sua resposta prática, cujas evidências serão discutidas a seguir, tem sido concentrar-se em objetivos mais simples e mais estreitos em torno dos quais organizar a ação pública internacional e nacional.

Assim pode-se dizer que a segurança alimentar é um conceito técnico que possui quatro dimensões: disponibilidade de alimentos; o acesso, individual e por meio do mercado, aos alimentos; a utilização apropriada dos alimentos; e a estabilidade no tempo da disponibilidade, do acesso e do consumo do alimento.

Essencialmente, a segurança alimentar pode ser descrita como um fenômeno relacionado aos indivíduos e aos grupos familiares. É o estado nutricional do membro da família individual que é o foco final, e o risco de que o status adequado não seja alcançado ou se torne prejudicado. O último risco descreve a vulnerabilidade dos indivíduos neste contexto. Como as definições revisadas acima indicam, a vulnerabilidade pode ocorrer tanto como um fenômeno crônico quanto transitório. Destarte, a segurança alimentar doméstica é a aplicação deste conceito ao nível da família, com os indivíduos dentro das famílias como foco de preocupação.

Cabe inserir aqui, brevemente, por ser importante mais adiante nesta pesquisa que a segurança alimentar possui forte relação com o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) desenvolvido pelo PNUD. Ele é a medida resumida do progresso a longo prazo em três dimensões básicas do desenvolvimento humano: renda, educação e saúde. O objetivo da criação do IDH foi o de oferecer um contraponto a outro indicador muito utilizado, o Produto Interno Bruto (PIB) per capita, que considera apenas a dimensão econômica do

52

Disponível em http://www.fao.org/3/y1500e/y1500e00.htm

53

“Uma situação que existe quando todas as pessoas, em todos os momentos, têm acesso físico, social e econômico a alimentos suficientes, seguros e nutritivos que satisfaçam suas necessidades alimentares e preferências alimentares por uma vida ativa e saudável”. Tradução nossa.

112

desenvolvimento.

Um IDH baixo, por exemplo, indica que a população daquele determinado território não possui nem renda, nem educação e nem saúde suficientes para uma vida digna. Consequência lógica é a constatação de que esta população sobre de insegurança alimentar. Assim, o IDH passa a ser um instrumento indicador da presença da fome.

Pode-se visualizar tais ideias, a figura abaixo, produzida a partir do “The state of food security and nutrition in the world 2018”54, revela os caminhos do acesso inadequado de alimentos que levam a múltiplas formas de desnutrição.

GRÁFICO 01: DO ACESSO INADEQUADO AO ALIMENTO ÀS VÁRIAS FORMAS DE