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O surgimento das vertentes pós-modernas nas teorizações em Relações Internacionais e suas principais fundamentações

CAMPO DA ALIMENTAÇÃO GLOBAL

1. A COMPREENSÃO PÓS-MODERNA DAS RELAÇOES INTERNACIONAIS

1.2 O surgimento das vertentes pós-modernas nas teorizações em Relações Internacionais e suas principais fundamentações

Nas últimas duas décadas do século XX, a área de Relações Internacionais viu-se em uma crise18. Por um lado, as teorias dominantes em suas vertentes realistas e liberais concorriam nas explicações de fenômenos da realidade internacional. Por outro, o fim inesperado da Guerra Fria e as críticas feitas de que tais teorias não foram capazes de prever tal acontecimento, levou ao reconhecimento de que era necessário repensar as teorias da área.

No entanto, assim como o período entre as guerras mundiais incentivaram o nascimento da área de RI, as crises teóricas levaram à reflexão sobre os conceitos e os modelos criados e a desafiá-los, propondo alternativas para a explicação da realidade, agora modificada.

Entre as variadas contribuições às Relações Internacionais, com o intuito de enriquecer as análises do sistema internacional, a que merece destaque é a virada linguística. Incorporada e difundida pelos críticos pós-modernos/pós-estruturalistas, o que os distinguiu fortemente dos outros críticos, foi um fator essencial para a articulação das teorias pós-positivistas para outras Ciências, especialmente para as Ciências Sociais. Assim, para Nigro (2009),

A “virada linguística” aponta para uma filosofia que quer pensar a linguagem e o complexo processo de significação em outras bases.

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A palavra crise, tal como aplicada aqui não se refere necessariamente a algo negativo. Na sua origem semântica, crise deriva do vocábulo grego “crino”, que significa “crivar”, “passar pelo crivo”, “separar o que serve do que não tem seventia”, “purificar”. É também um Termo de origem médica que, na medicina

hipocrática, indicava a transformação decisiva que ocorre no ponto culminante de uma doença e orienta o seu curso em sentido favorável ou não. Assim, crise significa um momento de fazer escolhas, onde se analisa o melhor caminho a seguir e a melhor ferramenta para tomar decisões. Ver Abbagnano (2007).

41 No lugar de uma filosofia centrada na consciência e no sujeito, presa ao mentalismo e consequente psicologismo, surge uma filosofia que, através de uma investigação sobre o funcionamento da própria língua, tenta esclarecer os problemas filosóficos tradicionais através de uma crítica da própria linguagem em que tais problemas são elaborados. (p. 180)

Desse modo, a “virada linguística” se caracterizou pela abertura de uma nova maneira de compreender e analisar a linguagem, em todos os seus significados e interesses de poder no contexto em que se encontra.

Considerados como os mais radicais, por criticar a realidade a ponto de contestá-la, os pós-modernos escolhem dar destaque ao papel dos discursos no estabelecimento dos significados na linguagem, esta como instrumento de manutenção de poder, mostrando o quanto esses discursos são importantes. Conforme afirma ainda Nigro (2009),

A linguagem é definida como uma ação humana, uma atividade, um processo contínuo, que não pode ser analisada como um objeto, mas sim, compreendida pelos falantes que dela participam. (p. 183)

Para a área de Relações Internacionais, a virada será fundamental para introduzir a análise dos discursos e das práticas discursivas, bem como destacar o papel da linguagem na formação da realidade. Constructos estes que, até a década de 1980, eram ignorados, especialmente no que se refere à política externa dos Estados e aos discursos dos atores internacionais não-estatais, que objetivavam ressaltar o seu poder e sua presença nos espaços de discussão de âmbito internacional.

Estes temas até então eram considerados irrelevantes para a perspectiva racionalista e positivista que guiava a produção de conhecimento relacionado aos fatos internacionais. Isso se dava em parte pela formação de conhecimento baseada nas teorias dominantes, ou seja, os realismos e os neorrealismos, bem como as teorias de vertente liberais.

Porém, gradualmente a virada linguística “invadiu” a área de Relações Internacionais por influência de autores como Saussure (2002) e Wittgenstein (1975), os quais foram altamente relevantes em outros ramos das Ciências Sociais. Com efeito, a linguagem, para Saussure, “é uma construção social, estando sujeita a constrangimentos sociais, históricos e políticos. Por conseguinte, ela não é neutra de valores” (RESENDE, 2010. p. 48).

Saussure contribuiu ao destacar a natureza social da linguagem e dos processos de produção de significado, enquanto Wittgenstein postulou a ideia de que a realidade deveria ser compreendida como uma complexa interação da construção da relação entre os objetos e

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seus respectivos significados sociais. Como sublinha Nigro (2009),

Wittgenstein faz uma crítica ao método analítico e, explicitamente, a si mesmo, ao escrever: “é interessante comparar a variedade de instrumentos da linguagem e seus modos de aplicação, a variedade das espécies de palavras e de frases com o que os lógicos disseram sobre a estrutura da linguagem”. (p. 188)

Em comum, os dois atribuíam centralidade ao papel da linguagem, reconhecendo-lhe sua natureza social e sua agência na construção da realidade. Os autores colaboraram para a valorização do papel da linguagem, reconhecendo a sua natureza social e a sua atuação na construção da realidade, estando sujeita a coações sociais, históricas, religiosas e políticas.

Dessa maneira, a teoria pós-moderna surge como uma mudança no modo de ver e construir o mundo, sendo uma contribuição através do questionamento dos pressupostos das teorias das Relações Internacionais na análise dos discursos dos atores internacionais.

Como já sublinhado, é importante compreender que o Pós-Modernismo das Relações Internacionais faz parte de um movimento mais amplo das ciências sociais, derivado do trabalho de estudiosos como Friedrich Nietzsche, em suas concepções primordiais, Jacques Derrida, Roland Barthès, Julia Kristeva, Michel Foucault, entre outros, que influenciaram o pensar pós-moderno, e que posteriormente seria aplicado aos estudos das relações internacionais.

Sousa (2005, p. 147) diz que “o pós-modernismo procura expor a conexão íntima entre questões de conhecimento e questões de poder político e autoridade”. É importante ressaltar a noção de que aquele possuidor do conhecimento, poderá, utilizando do seu saber, influenciar aqueles que não possuem esse conhecimento com o intuito de colaborar com a sua posição de poder.

Já para Silva e Gonçalves (2010, p. 227), o pós-modernismo “concentra-se na análise da linguagem, dos textos e dos discursos, cujos significados escondem relações hierárquicas, controles sociais e agendas políticas excludentes”. Desta forma, no âmbito internacional, o Estado irá utilizar do discurso para disseminar aquilo que manterá o seu poder no sentido fortalecer o controle sob os seus dominados, assim como incentivar a dependência destes sob os dominadores. Ou seja, o objetivo desse movimento é descortinar as narrativas que se escondem por trás dos discursos teóricos, tendo foco na investigação da narrativa que constrói as narrativas sociais.

Neste sentido, Sarfati (2005) afirma que parte do projeto pós-modernista das Relações Internacionais consiste basicamente em desconstruir as teorias de Relações Internacionais,

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mostrando a problemática da suposta racionalidade e objetividade da classificação na área. A desconstrução é uma das ideias centrais de Jacques Derrida (2002; 2004), que vai inspirar os teóricos pós-modernos das relações internacionais a mostrar a relação entre poder e conhecimento nos discursos de relações internacionais e, finalmente, desconstruir as teorias da área e os temas relacionados à segurança internacional. Isto pode ser visto em uma carta que este autor escreveu em 10 de julho de 1983, citada por Fearn (2004):

A desconstrução não é um método e não pode ser transformada num método. (...) Não basta dizer que a desconstrução não poderia reduzida a uma instrumentalidade metodológica ao a um conjunto de regras e procedimentos transponíveis. Tampouco é suficiente afirmar que cada “evento” desconstrutivo permanece singular ou, de todo modo, tão perto quanto possível de algo como um idioma ou uma assinatura (p. 174).

Para Derrida (2002), ao desconstruir se dá atenção especial à letra dos textos, com a possibilidade de revelar os sentidos literais e as metáforas escondidas. Com isso, a desconstrução tenta expor que as palavras e os conceitos não comunicam o que prometem, e sim o que a fonte das palavras deseja disseminar.

Se se considera que o objetivo principal das teorias é explicar uma determinada realidade através da análise dos discursos de todos os envolvidos naquele contexto e, após isso, incentivar a formulação de hipóteses passíveis a teste, não possuindo o único objetivo de interpretar essa realidade, como também ser capaz de modificá-la, os significados não seriam dados pela essência daquilo que se busca significar, mas sim por processos de diferenciação entre os elementos formadores das dicotomias.

Derrida (2002) entende que a principal característica do pensamento ocidental moderno reside na estruturação das práticas de conhecer com base em dicotomias – como “bem/mal”, “presença/ausência”, “fala/escrita”, “vida/morte”, “mestre/escravo”, por exemplo. É neste sentido que Jatobá (2013) afirma que, “quanto ao conceito de ‘desconstrução’, pode-se dizer que se refere a um modo de desarranjar radicalmente conceitos estabilizados em termos de oposições (as quais) nunca são neutras, mas inevitavelmente hierárquicas” (p. 102- 103).

Na verdade, os discursos tendem sempre a privilegiar um elemento em detrimento de seu par, que é percebido, como negativo e indesejável. Os opostos não são iguais em valor, nem totalmente independentes um do outro. Cada um estaria contaminado pelo outro, o que significa a impossibilidade da existência de um estado totalmente puro.

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Esta reflexão será fundamental mais adiante, no desenvolvimento desta tese, quando se tratar da soberania alimentar como resistência e sua relação com a segurança alimentar, pois dever-se-á (para ser fiel ao postulado teórico) fugir da “dicotomização” de um certo e de um errado, e sim encontrar pontos de convergências e divergências, na linha da construção / desconstrução arqueo-genealógica foucaultiana.

As maneiras como se pode descrever um conceito são potencialmente infinitas, e toda descrição que se fizer omitirá ou excluirá outras descrições possíveis. O objetivo da desconstrução não é mostrar como essas lacunas podem ser preenchidas de modo a tornar nossa descrição mais completa e adequada, mas mostrar que lacunas são inevitáveis. Ela faz isso não recorrendo a critérios de completude situados fora de nossos textos e falas, mas examinando em detalhe suas implicações (FEARN, 2004. p. 177).

Essa lógica faz com que Derrida (2002) privilegie a escrita sobre a fala, pois é ela que articula e possibilita a produção das representações. Sua intenção é destacar como as estruturas, sejam elas econômicas, históricas ou sócio-institucionais, funcionam como um texto.

A importância dos discursos advém desse argumento: se o que existe não é a realidade como uma presença pura, mas somente sua representação, são os discursos que determinarão o que pode, ou não, ser representado e como será representado. Sua proposta tenta compreender a realidade social como um espaço essencialmente discursivo, onde diferentes discursos competem entre si para fixar, estabilizar e naturalizar os sistemas de representação.

Para Derrida (2004), todo texto, ou melhor, todo processo de produção de significados, contém hierarquias implícitas que foram naturalizadas por discursos de forma a impor ordem à realidade social e preservar posições de poder. Os discursos atuam na repressão de exclusões, subordinações e marginalizações praticadas pela linguagem.

De acordo com Fearn (2004) é precisamente essa capacidade de se transportar que impede aos enunciados possuírem um sentido determinado que um ouvinte ou um leitor possa entender com certeza. Desse modo, a realidade deve ser entendida como um texto produzido por práticas discursivas interessadas em criar sistemas de significados que orientem e legitimem a ação política.

Se a realidade não existe, mas somente os diversos modos de representação que são construídos a partir de práticas discursivas, então mudar os discursos implica em mudar a realidade, em todos os seus conceitos e descrições. Assim, o embate que se dá por meio das críticas da soberania alimentar ao processo de construção da governança global da segurança alimentar se dá não somente no campo das reflexões teórico-abstratas, mas acima dele e mais

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importante que nele, isso acontece no âmbito da práxis histórica, nos lugares de disputas, onde interesses e relações de poder acontecem, inclusive na dimensões microrrelacionais.

Roland Barthès (2004), ciente de que uma palavra pode expressar inúmeros sentidos, assim como um texto admite múltiplas interpretações, desenvolve a noção de “textualidade” para demonstrar o caráter multidimensional dos textos. Para ele, o texto é plural. Isso não significa apenas que tem vários sentidos, mas que realiza o próprio plural do sentido: um plural irredutível (e não apenas aceitável). O texto não é coexistência de sentidos, mas passagem, travessia; não pode, pois, depender de uma interpretação, ainda que liberal, mas de uma explosão, de uma disseminação.

Além da “escrita”, o texto contém dimensões históricas e retóricas que ultrapassam a mensagem pretendida pelo autor. Buscar a “textualidade” significa identificar a ideologia que alimenta a interpretação do texto. Ou seja, trata-se de mapear os modos de pensamento específicos que contribuem para a definição de como se conhece e se compreende os significados atribuídos aos objetos que habitam a realidade.

Uma importante contribuição de Barthès reside na defesa que faz sobre a “morte do autor”, necessária para libertar o texto do monopólio de seu criador e entregá-lo ao leitor. Para ele, “um texto não é feito de palavras, libertando um sentido único, de certo modo teológico, mas um espaço de dimensões múltiplas, onde se unem e se chocam escritas variadas, nenhuma das quais é original”.

O significado de um texto não depende do autor, “e sim de seu alvo, seu público”. Assim, “dar autoria a um texto”, atribuindo-lhe uma única interpretação, seria “impor um limite ao texto”, pois ele contém múltiplas camadas e significados. Nasce, então, o potencial de todas as dimensões interpretativas do texto: histórica, retórica, cultural, intencional, simbólica, mítica, estrutural, etc. Em outras palavras, libertar o texto do autor e entregá-lo – em todas as suas possíveis e múltiplas interpretações – ao leitor.

Desse modo, se um texto não possui um significado único, fechado, acabado e se está aberto a inúmeras interpretações, dialogando com outros textos, de outras eras e fontes, num fluxo aberto e contínuo para fazer e refazer sentidos, o mesmo pode ser entendido das estruturas sociais (RESENDE, 2010. p. 43). Esta característica existencial da história que acontece na dialética do movimento constante implica que as forças sociais estejam sempre em embates por concretização de interesses.

Esse, de alguma forma, é o campo de disputas no âmbito alimentar: o texto escrito nas estruturas sociais ou, como afirmará Michel Foucault, nas práticas discursivas concretizadas na história do presente e que são resultados de afirmações e silenciamentos ao longo da

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história. A cada movimento de dominação, por exemplo, das grandes corporações transnacionais alimentares corresponde a movimentos de resistências com vistas a reagir a esta dominação por meio de práticas que levem a afirmações de seus interesses. Esta dinâmica perpassará as reflexões na presente tese.

Em suma, a realidade, por ser produto da ação humana, seria um processo contínuo e aberto, suscetível de idas e vindas, releituras e interpretações novas, o que impede entendê-la como um produto fechado, acabado e fixo.

Estas ideias, que, conforme dito anteriormente, provieram das ciências sociais, invadiram o campo de Relações Internacionais a partir especialmente da década de 90 do século passado, fez com que as ideias fossem gradualmente recepcionadas na comunidade de Relações Internacionais e proporcionassem um revigoramento teórico sem precedentes, gerando novas perspectivas de análise dos fatos internacionais e lançando luzes a novos atores, indo além do restrito campo do atores estatais e seus corolários.

O mais relevante neste excursus inicial pelo panorama teórico pós-positivista em Relações Internacionais é que esses pensadores pós-modernos são convictos de que não se pode separar a razão das relações de poder, pois acreditam que toda verdade reflete a dominação e se torna a afirmação da posição de poder.

Para eles, o processo de análise da realidade envolve uma forma de interpretação, e as diferentes interpretações estão fundamentadas em pressupostos que precisam estar sujeitos ao debate sem dominação de uma teoria ou visão de mundo. Do contrário, estariam excluindo formas alternativas de interpretação e produção de conhecimento.

Os autores pós-modernos entram no debate das teorias de Relações Internacionais dispostos a desconstruir o discurso dominante, reconectando as mudanças no sistema internacional à área e promovendo uma circulação mais aberta de ideias e interpretações orientadas de acordo com o interesse de cada ator, livre da influência do dominador. A desconstrução tem a intenção de desestabilizar aqueles conceitos fortalecidos pelas práticas discursivas dominantes e sugerir novas teorias capazes de interpretar a realidade atual, independente do sujeito que a observa.

Um fato importante a ser ressaltado é que de acordo com os autores pós-modernos, a maneira tradicional de representação das teorias de Relações Internacionais não equivale às atuais transformações do sistema internacional, o que dificulta a interpretação dos discursos dos atores internacionais e a inclusão de novos conceitos e temáticas.

Neste percurso inicial, o panorama construído sugere que tais cosmovisões e novos modos de enxergar a realidade e suas relações estão calcadas em bases teóricas de autores

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relevantes na história da filosofia. Dois deles fornecem os elementos para a análise que esta tese se propõe: o filósofo francês Michel Foucault e o filósofo italiano Giorgio Agamben. Tais pensadores oferecerão as bases teóricas que permitirão entender como se dá o processo de governo da vida (biopolítica) e as relações de poder e de resistência, aplicados à segurança e soberania alimentar.

Antes, porém, é necessário explicitar o caminho metodológico traçado. É o que se verá a seguir.

1.3 A questão metodológica da análise a partir teoria pós-moderna em Relações