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Dessarte, constata-se que a Lei da Primeira Infância pôs em evidência o conflito

existente entre o direito do Estado de punir aquela mulher que comete um determinado delito e o direito de uma criança ter um desenvolvimento saudável - cuja garantia configura um dever estatal – durante sua primeira infância, na companhia de sua respectiva genitora46.

Em síntese, a lei sinalizou a clara necessidade de se empreender um esforço intersetorial para que restassem garantidos os direitos das crianças de mães encarceradas, voltando sua preocupação à primeira infância que carece, em razão de sua essência, uma atenção mais qualificada e sensível às peculiaridades da idade.

Ainda, cabe destacar a norma supralegal de maior impacto no que atine ao trato da mulher no cárcere e sua respectiva manutenção de laços familiares: as Regras Mínimas da ONU para o Tratamento de Mulheres Presas e Medidas Não Privativas de Liberdade para Mulheres Infratoras, do ano de 2010, ou, simplesmente, Regras de Bangkok.

A origem de tais regras proveio de uma legítima preocupação da Organização das Nações Unidas (ONU) com o vertiginoso crescimento da população feminina encarcerada, assim como as constantes violações de direitos das mulheres em situação de privação de liberdade, incluindo aqui a dificuldade de manutenção de suas respectivas entidades familiares47.

44 Tal obra é composta por artigos de diversos especialistas de organizações que participaram e/ou contribuíram para o julgamento do Habeas Corpus Coletivo nº 143.641, de 2018, pelo STF. 45

SÁNCHEZ, Alexandra et al. Pela liberdade: a história do habeas corpus coletivo para mães & crianças. São Paulo: Instituto Alana, 2019. p. 8.

46 BRASIL, Mesa da Câmara dos Deputados. Avanços do Marco Legal da Primeira Infância.

2016. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/a-

camara/estruturaadm/altosestudos/pdf/obra-avancos-do-marco-legal-da-primeira-infancia. Acesso em: 27 ago. 19.

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Ainda no ano de 2004, mediante requisição da ONU, a defensora dos direitos humanos Florizette O’Connor realizou um estudo sobre mulheres encarceradas. Após finalizada a pesquisa, a estudiosa elencou algumas dificuldades referentes ao convívio de mães presas e seus filhos. A título exemplificativo, menciona-se: i) a distância das prisões da residência da família das mulheres reclusas, o que aumentava as chances de abandono da família; ii) a dificuldade de contato físico entre mãe filhos; e iii) a submissão de crianças a revistas aviltantes. O’CONNOR, Florizelle. UN Sub-Commission on the Promotion and Protection of Human Rights,

Na seara internacional, o documento em discussão representa a principal baliza normativa que versa sobre as necessidades e particularidades de gênero no cárcere, abarcando tanto a execução penal propriamente dita, quanto a valorização de medidas que evitem o ingresso das mulheres no sistema carcerário.

No Brasil, as Regras de Bangkok foram oficialmente traduzidas e publicadas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) no ano de 2016, o que simbolizou um inegável avanço no que se refere à problemática em apreço. Diante da proposição de um tratamento diferenciado às mulheres no ambiente carcerário, as regras em questão buscam preservar, dentre outros direitos, o direito ao exercício da maternidade pelas mulheres presas.

Sob esse prisma, algumas das Regras de Bangkok ganham uma maior notoriedade. Uma dessas regras é a Regra de nº 2, a qual concebe a necessidade de haver uma especial cautela com a mulher presa desde sua entrada no sistema penitenciário. Tal regra prevê que a mulher encarcerada estará numa condição de vulnerabilidade e deve receber todas as devidas orientações sobre o funcionamento do presídio em si e de seu regime prisional, assim como devem poder contatar seus familiares e terem acesso à assistência jurídica.

Essa mesma regra dispõe que a mulher sujeita à privação de liberdade, antes ou no momento de seu ingresso num determinado presídio, deve ter a oportunidade de definir com quem deixará seus filhos enquanto estiver presa, ou ainda, tem o direito de ter sua prisão suspensa por um período razoável para que possa tomar a aludida decisão.

Logo em seguida, a Regra de nº 3 consubstancia a indispensabilidade dos registros do número e dos dados pessoais dos(as) filhos(as) das mulheres encarceradas. Isto é, a referida disposição normativa assegura que, no momento da inclusão da mulher na prisão, deve-se realizar uma catalogação da informação sobre a existência de filhos no prontuário da detenta, devendo constar menção à localização e situação de custódia ou guarda dos infantes, nas hipóteses em que não acompanharem a mãe.

Por seu turno, a Regra de nº 5 demonstra um olhar voltado à adequação estrutural do presídio e provisão de utensílios fundamentais à mulher e à mulher que é mãe. Nesta regra, resta determinado que o alojamento das mulheres presas tem de contar com

Administration of Jutice, Rule of Law and Democracy Working paper by Florizelle O’Connor on the issue of women in prison. 9 July 2004. Disponível em: https://documents- dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G04/148/57/PDF/G0414857.pdf?OpenElement. Acesso em: 31 ago. 2019.

instalações e materiais aptos a satisfazerem aspectos de higiene, bem como que tem de haver fornecimento de um suprimento regular de água para fins de cuidados especiais da reclusa.

Em seguimento, a maternidade da mulher presa também é protegida no teor das Regras nº 22 e 24, as quais alicerçaram barreiras em relação às punições à mãe presa. Na Regra de nº 22, há a proibição de incidência de sanções de isolamento ou segregação a mulheres gestantes, com filhos (as) ou em período de amamentação. Já a Regra de nº 24 proíbe o uso de instrumentos de contenção nas mulheres presas durante o parto e no período imediatamente posterior.

Além das regras mencionadas, também merece realce a Regra de nº 42 que é responsável por disciplinar uma maior flexibilização no regime penitenciário para as mulheres gestantes, lactantes e mulheres com filhos (a). Segundo o comando normativo em exame, devem ser oferecidos serviços e instalações para o cuidado das crianças, bem como as condições demandadas para uma prisão mais digna e humanizada para a mãe.

Um pouco mais à frente nas Regras de Bangkok, a Regra de nº 52 aborda o momento de separação da criança e sua mãe, ou seja, a remoção da criança da prisão. A referida regra disciplina o papel do Estado nesse cenário, o qual terá o dever de facilitar o encontro da genitora e seus filhos mediante visitas, sempre que as visitas forem condizentes ao melhor interesse da criança.

Ainda, há de se salientar o conteúdo compreendido na Regra de nº 64. Isso porque esse conteúdo traduz um dos objetivos precípuos das Regras de Bangkok, a saber a minoração do encarceramento feminino. Segundo a Regra de nº 64, a pena de prisão não pode ser regra para as mulheres gestantes e/ou com filhos (as) dependentes, mas sim somente poderá ser considerada diante de crimes graves e/ou violentos, ou ainda, quando a mulher que será sujeita a privação de liberdade representar uma ameaça contínua, devendo ser garantido o melhor interesse da criança.

Diversas outras regras do aludido documento também têm o propósito de proteger a mulher presa e sua entidade familiar, todavia as regras aqui explicitadas já ilustram suficientemente a existência de variadas vertentes de proteção e preocupação com a temática.

Sucede que apesar de as Regras de Bangkok materializarem um evidente avanço em relação à questão ora em discussão, a realidade enfrentada pelas mulheres encarceradas é contrastante e não pode ser ignorada. Consoante deslinda Heidi Ann

Cerneka48, a despeito de as Regras de Bangkok não possuírem caráter obrigatório para o Brasil, elas devem ser devidamente respeitadas, pois o Estado brasileiro é membro da ONU.

Por fim, é preciso tratar da Lei nº 13.434, de 12 de abril de 2017, também conhecida como Lei do Uso de Algemas. Primeiramente, convém mencionar que Francesco Carnelutti, em sua obra As Misérias do Processo Penal, concebeu as algemas como um símbolo do direito, talvez ainda mais expressivo que a balança e a espada, afinal as algemas representam a aspiração do direito de nos atar as mãos49.

Ainda hoje, esse símbolo do direito continua sendo posto em xeque e a lei em referência tem justamente esse papel. Nesse ensejo, a Lei nº 13.434, de 2017, acrescentou o parágrafo único ao artigo 292 ao CPP, estabelecendo a vedação do uso de algemas em mulheres grávidas durante o parto e em mulheres durante a fase de puerpério imediato50. Cumpre asseverar que mesmo antes do advento da referida lei, o uso de algemas em mulheres que estivessem em trabalho de parto não merecia respaldo. Isso porque, desde o ano de 2008, a Súmula Vinculante nº 11 já vigia como baliza para o referido tema, tendo sido disciplinado pelo STF que o uso de algemas somente seria considerado lícito nos casos de resistência à prisão e fundado de receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiro, devendo a excepcionalidade ser justificada por escrito em todos os casos.

Ora, é inegavelmente improvável que uma mulher em trabalho de parto ofereça risco de fuga e/ou possa protagonizar situações de perigo à integridade física própria ou de terceiros, razão pela qual o uso de meios de contenção se revela demasiadamente infundado51.

Além da súmula anteriormente citada, foi aprovado o Decreto de nº 8.858, de 16 de setembro de 2016, o qual regulamentou o artigo 199 da LEP, consolidando a vedação

48 CERNEKA, Heidi Ann. Homens que menstruam: Considerações acerca do sistema prisional às especificidades da mulher. 2009. p. 66 Disponível em: http://www.domhelder.edu.br/revista/index.php/veredas/article/view/6. Acesso em: 28 ago. 2019.

49 CARNELUTTI. Francesco. As misérias do processo penal. Trad. José Antônio Cardinalli. 6.ed. Campinas: Bookseller, 2005. p. 24.

50“Art. 292, Parágrafo único. É vedado o uso de algemas em mulheres grávidas durante os atos médico-hospitalares preparatórios para a realização do parto e durante o trabalho de parto, bem como em mulheres durante o período de puerpério imediato.”

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ANDRADE, Luana Helena de Paula Drummond de. O Sistema Prisional Feminino e a Maternidade. 2017. 72 f. TCC (Graduação) - Curso de Instituto de Ciências da Sociedade Curso de Direito, Universidade Federal Fluminense, Macaé, 2017.

do uso de algemas durante o parto, o período de amamentação e durante a transferência da mulher da penitenciária para a unidade hospitalar.

Outrossim, a Lei nº 13.434, de 2017 acabou por reverenciar outras disposições anteriores que já vedavam a utilização de instrumentos de contenção em mulheres em trabalho de parto, a exemplo da resolução do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) de 201252, e as já anunciadas Regras de Bangkok, especificamente a Regra de nº 24.

Ademais, é notório que a Lei do Uso de Algemas prestigia o já citado princípio da dignidade da pessoa humana - o qual constitui um dos fundamentos do Estado democrático brasileiro, disposto no artigo 1º, III da Constituição Federal -, pois busca a realização de um parto humanizado e digno. Neste contexto, a coordenadora do Observatório da Mulher contra a Violência, do Senado Federal, Roberta Viégas, ressalta a importância da lei em comento para que seja assegurada uma fundamental liberdade física no trabalho de parto53.

Indubitavelmente, a aludida lei tem a intenção de dirimir a inquietante prática de realização de partos com gestantes algemadas e sua relevância se valida quando aliada a dados sobre a temática. A exemplo disso, no ano de 2017, a Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz) lançou a pesquisa intitulada Nascer nas prisões: gestação e parto

atrás das grades no Brasil54 - efetuada mediante entrevistas com 241 (duzentas e quarenta uma) mães presas entre 2012 e 2014 -, a qual já indicava que mais de um terço das mulheres presas grávidas tinham dado à luz algemadas55.

52 BRASIL, Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. Resolução Nº- 3, de 1º de

Junho de 2012. Disponível em:

http://depen.gov.br/DEPEN/depen/cnpcp/resolucoes/2012/resolucaono3de1odejunhode2012.p df. Acesso em: 01 set. 2019.

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FEDERAL, Senado. Fique por Dentro da Lei: Lei proíbe uso de algemas em grávidas durante trabalho de parto: Rádio Senado. 2018. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/radio/1/conexao-senado/fique-por-dentro-da-lei-lei-proibe-uso- de-algemas-em-gravidas-durante-trabalho-de-parto. Acesso em: 01 set. 19.

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LEAL, Maria do Carmo et al. Nascer na prisão: gestação e parto atrás das grades no Brasil. 2016. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csc/v21n7/1413-8123-csc-21-07-2061.pdf. Acesso em: 01 set. 19.

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Amparado em tal pesquisa, foi produzido o seguinte documentário: Nascer nas prisões : gestar, nascer e cuidar. Direção de Bia Fioretti. Presídios Femininos do Brasil. Local: [S.L.] Videosaúde Distribuidora da Fiocruz, 2017. (24min25s)