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3 A DISSONÂNCIA EXISTENTE ENTRE A LEI E O PLANO FÁTICO

3.1 O surgimento e a realidade atual das penitenciárias femininas no Brasil

Colhe-se dos ensinamentos de Ana Maria Bidegain a ideia de que a história não pode ser uma mera descrição do passado, mas sim um empenho para se entender as nuances da atualidade e repensá-la para que seja evitada a repetição de erros anteriormente cometidos57. Consequentemente, para se compreender as bases do atual exercício do poder punitivo sobre as mulheres, é preciso visitar o trajeto histórico da custódia feminina.

De início, cabe ressaltar que cada instituição é criada para satisfazer seus objetivos próprios e os estabelecimentos prisionais não fogem a essa regra. No Brasil, as primeiras prisões femininas surgiram como resposta à busca por uma maior pacificidade nos presídios mistos. Isto pois, à época, o imaginário social entendia que as mulheres não deveriam estar reclusas nas mesmas unidades prisionais dos homens, pois elas eram responsáveis por conturbar o ambiente carcerário58. Por essa razão, é inquestionável que,

56LIMA, Raquel da Cruz; FONSECA, Anderson Lobo da. A prisão adequada para as mulheres

é a que não existe. 2016. Disponível em: https://diplomatique.org.br/a-prisao-adequada-para- as-mulheres-e-a-que-nao-existe/. Acesso em: 20 set. 2019.

57BIDEGAIN, Ana Maria. Recuperemos la historia de las mujeres com nuevas categorias de

análisis. In: LAMPE, Armando (org.). História e Libertação: homenagem aos 60 anos de Enrique Dussel. Edição Bilíngue. Rio de Janeiro/São Paulo: Vozes/CEHILA, 1996.

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ROESLER, Gabriele Maidana et al. 2016. Mulheres encarceradas: a realidade das mulheres nos presídios brasileiros. Revista Interdisciplinar de Ensino, Pesquisa e Extensão: Universidade de Cruz Alta, Rio Grande do Sul. v. 4, n. 1, 20 set. 2019.

desde o princípio, as prisões femininas não tiveram um olhar voltado à mulher e suas peculiaridades.

Nesse trilhar, em 1937, criou-se o Reformatório de Mulheres Criminosas, o qual, posteriormente, passou a ser denominado Instituto Feminino de Readaptação Social e representa o primeiro presídio feminino do Brasil. A bem da verdade, não houve a construção de um edifício específico para o aprisionamento de mulheres, mas sim a adaptação de um prédio senhorial situado no centro da cidade de Porto Alegre59.

Seguindo o exemplo da instituição pioneira do sul, São Paulo e Rio de Janeiro também instituíram seus próprios presídios femininos. Em São Paulo, no ano de 1941, a unidade prisional também teve uma origem improvisada, haja vista ter sido implantada na antiga residência dos diretores no terreno da Penitenciária do Estado60, no bairro de Carandiru61.

Já no Rio de Janeiro, data de 1942 a primeira inauguração de um estabelecimento prisional feminino62. Diferentemente dos demais presídios femininos criados até então, a penitenciária feminina carioca foi construída para o propósito do aprisionamento exclusivo de mulheres, a partir da doação de um terreno localizado no bairro de Bangu63. Todas essas três prisões femininas citadas tinham como ponto comum a administração pelas religiosas da Congregação da Nossa Senhora da Caridade do Bom Pastor D’angers. Tal inserção de um cristianismo enfático no espaço prisional feminino era justificada pela crença de que as presas, quando despertadas pela religião, seriam conduzidas ao papel da mulher segundo os ditames da sociedade: a mulher dona de casa,

59ANDRADE, Bruna Soares Angotti Batista de. Entre as leis da ciência, do Estado e de Deus.

2011. 317 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Programa de Pós-graduação em Antropologia Social, Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.

60 Ao final do ano de 2004, o governo paulista decidiu desativar a Penitenciária do Estado e

transformá-la em Presídio Feminino, devido à superlotação das prisões femininas existentes no estado. GOVERNO DE SÃO PAULO. Penitenciária do Estado é desativada e será

transformada em Presídio Feminino. 2004. Disponível em:

http://www.saopaulo.sp.gov.br/eventos/penitenciaria-do-estado-e-desativada-e-sera-

transformada-em-presidio-feminino/. Acesso em: 20 set. 2019. VARELLA, Drauzio. Prisioneiras. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. p. 13.

61Ibidem, p.195

62Não há dúvidas de que o contexto pelo qual o Brasil estava passando no final da década de 30

e começo da década de 40 foi determinante para a criação dos mencionados presídios femininos. Vivia-se um período de criação e modificações de instituições e leis, tanto é verdade que o Código Penal e o Código de Processo Penal foram promulgados, respectivamente, em 1940 e 1941.

cuja principal atribuição é cuidar dos filhos e do marido64. Ou seja, a pretensão dos primeiros presídios femininos era transformar as mulheres desviantes em mulheres cristãs, domésticas e condizentes com os moldes esperados pela sociedade.

Ainda hoje, a mulher que comete um delito costuma ser mais punida pelo sistema legal, pois ela transgride não só a lei, mas também viola o parâmetro daquilo que se considera como conduta feminina apropriada, assim como rompe com os parâmetros de moral e bons costumes eleitos pela sociedade65. Tem-se, portanto, a permanência de uma

visão misógina mediante a qual a criminalidade feminina é apenas o fruto de um mero desvio de gênero, isto é, uma visão que enxerga a mulher criminosa como aquela que tão simplesmente fugiu do seu arquétipo feminino.

Eis aí um grave problema: a ausência de uma guinada criminológica no que diz respeito aos estudos sobre a criminalidade feminina. Com efeito, o estudo criminológico da transgressão feminina é ínfimo e vem sendo reduzido a questões sexuais e anatômicas, o que acaba funcionando como combustível para a manutenção de uma lógica androcêntrica no sistema de justiça criminal66.

Na contramão desse preocupante status quo, surge a criminologia feminista que, com um viés emancipatório, propõe o questionamento do sistema de justiça sob a ótica da opressão de gênero. Tal campo de saber alerta a carência de um olhar voltado às singularidades e peculiaridades do gênero feminino, bem como a primordialidade de se pensar nos direitos fundamentais da mulher em sentido amplo.

Ao tratar do estudo criminológico da mulher como um aspecto secundarizado, a autora Samantha Buglione salienta que a lacuna histórica da questão feminina no direito codificado se apresenta de maneira cristalina ao se observar as incompatibilidades entre o que se aplica ao cárcere masculino e não se aplica ao cárcere feminino. Ainda em seu

64SANTOS, Jahyra Helena P. dos; SANTOS, Ivanna Pequeno dos. Prisões: um aporte sobre a

origem do encarceramento feminino no Brasil. 2014. Disponível em: http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=c76fe1d8e0846243. Acesso em: 20 set. 2019.

65 FERREIRA, Fernanda Macedo; et al. Opressão e transgressão: o paradoxo da atuação

feminina no tráfico de drogas. In: SÁ, Priscilla Plach (Org.). Dossiê: as mulheres e o sistema penal. Curitiba: OABPR, 2015, p. 165. Disponível em: http://www.oabpr.org.br/downloads/dossiecompleto.pdf. Acesso em: 20 set. 2019.

66 PEREIRA, Luísa Winter; SILVA, Tayla de Souza. Por uma criminologia feminista: do

silêncio ao empoderamento da mulher no pensamento jurídico criminal. In: SÁ, Priscilla Plach (Org.). Dossiê: as mulheres e o sistema penal. Curitiba: OABPR, 2015, p. 10-33. Disponível em: http://www.oabpr.org.br/downloads/dossiecompleto.pdf. Acesso em: 20 set. 2019.

entendimento, tal quadro produz um vício no sistema penitenciário, qual seja a adoção de um parâmetro estritamente masculino para o ser humano67.

Indiscutivelmente, a necessidade da criminologia feminista e suas respectivas facetas é reforçada diante do colapso do sistema prisional vivenciado no Brasil. É de bom alvitre relembrar que, em setembro de 2015, em sede da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 347/DF, o STF reconheceu a existência de um estado

de coisas inconstitucional68 no sistema carcerário brasileiro69. Na ocasião, a maior

instância do poder judiciário brasileiro não chegou a julgar o mérito da ação, mas deferiu uma parcela das medidas cautelares pleiteadas e admitiu que o sistema carcerário brasileiro se encontrava numa situação calamitosa, envolto num quadro de violação generalizada e constante dos direitos fundamentais dos detentos.

Sem embargo, passados pouco mais de 04 (quatro) anos de tal decisão, não se observa uma melhora significativa no sistema prisional brasileiro. Sendo assim, é natural concluir que se o sistema carcerário brasileiro já apresenta inúmeras deficiências num aspecto global, que dirá quando analisado frente às peculiaridades e necessidades inescapáveis da mulher encarcerada.

Sob esse prisma, é válido salientar que a inadequação do cárcere à mulher presa foi agravada com o aumento significativo da população carcerária feminina. Dos anos 2000 para o ano de 2016, a população carcerária feminina sofreu um aumento de 656% (seiscentos e cinquenta e seis por cento), pois a marca de mulheres presas que era de 6 (seis) mil mulheres passou para 42 (quarenta e duas) mil mulheres70.

Segundo dados do INFOPEN71, cerca de 74% (setenta e quatro por cento) desse contingente são mulheres com filhos, o que expressa a indispensabilidade de se lançar um olhar atento à proteção da manutenção dos seus respectivos núcleos familiares. Como se

67 BUGLIONE, Samantha. A face feminina da execução penal. In: Direito & Justiça Revista da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Volume 19, ano XX, 1998. p. 239 - 266.

68 A expressão estado de coisas inconstitucional foi criada pela Corte Constitucional da Colômbia, em sede da decisão SU-559 de 1997, para se referir, em síntese, a situações de graves e sistemáticas transgressões de direitos fundamentais e prolongada inércia estatal.

69 STF. Notícias STF: Direto do Plenário: STF reconhece violação a direitos fundamentais no

sistema prisional. 2015. Disponível em:

http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=299377&caixaBusca=N. Acesso em: 20 set. 2019.

70 MULHERES, Infopen. Levantamento Nacional De Informações Penitenciárias. Infopen Mulheres – 2. ed. 2018. Disponível em: http: //depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen- mulheres/infopemulheres_arte_07-03-18.pdf. Acesso em: 20 set. 2019.

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pôde observar anteriormente, diversas normativas têm como propósito a efetivação dessa tutela da mulher encarcerada e sua família, todavia, o cerne da problemática reside justamente na dissonância entre a lei e o plano fático.

Efetivamente, viver o binômio mãe presidiária no Brasil é sinônimo de procriar desencantos. Isso pelo motivo de que as penitenciárias brasileiras são um claro reflexo da omissão estatal e se encontram permeadas de insalubridade e precariedade72. Da superlotação dos presídios ao descaso referente à alimentação, higiene e saúde, o cárcere deixa de restringir apenas a liberdade e passa a englobar a restrição de diversos outros direitos fundamentais.

Em condições como estas, o direito ao exercício da maternidade no ambiente carcerário acaba por ser um dos direitos diretamente ofuscados. A título exemplificativo, pode-se mencionar a ausência de infraestrutura prisional adequada às necessidades das detentas gestantes. Consoante disciplinamento da LEP, as gestantes devem ter uma seção específica no presídio, contudo apenas 55 (cinquenta e cinco) estabelecimentos prisionais do Brasil possuem cela ou dormitório para gestantes, de modo que somente metade das presas que ostentavam tal condição estavam custodiadas em celas apropriadas73.

De igual modo, prezando pelo convívio da mãe presidiária com as crianças já nascidas, o referido diploma legal também impõe a obrigatoriedade de berçário e creche nas unidades prisionais femininas. Porém, novamente, os fatos se distanciam da previsão legal, tendo em vista que apenas 14% (quatorze por cento) das unidades femininas ou mistas contam com berçário e/ou centro de referência materno infantil, assim como somente 3% (três por cento) destes mesmos estabelecimentos possuem creche74.

Tal ínfima presença de espaços destinados ao exercício da maternidade pela mulher presa também foi apontada no relatório da pesquisa Dar à luz na sombra75, o qual

72 Sobre esse cenário, é digno de nota que: [...] “No Brasil, em sua grande maioria, as prisões femininas são escuras, encardidas e superlotadas. Dormir no chão, fazendo revezamento para ficar um pouco mais confortável, é praticamente regra. Os banheiros exalam mau cheiro, a higiene nem sempre é a mais desejável, os espaços para banho de sol são inadequados e não existe a mínima estrutura para acomodar uma criança.” SEIXAS, Taysa Matos. Os filhos da

outra: A mulher e a gravidez no cárcere. 2016. Disponível em:

https://emporiododireito.com.br/leitura/os-filhos-da-outra-a-mulher-e-a-gravidez-no-carcere. Acesso em: 21 set. 2019.

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MULHERES, Infopen. Levantamento Nacional De Informações Penitenciárias. Infopen Mulheres – 2. ed. 2018. Disponível em: http: //depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen- mulheres/infopemulheres_arte_07-03-18.pdf. Acesso em: 21 set. 2019.

74 Ibidem. 75

BRASIL. Ministério da Justiça. Dar à luz na sombra: condições atuais e possibilidades futuras para o exercício da maternidade por mulheres em situação de prisão. Secretaria de Assuntos Legislativos. Brasília: Ministério da Justiça, IPEA, 2015. Disponível em:

expôs a excepcionalidade de tais espaços, bem como fez a ressalva de que, quando eles existem, costumam conter inegáveis deficiências. Ainda segundo o aludido estudo, as mães que conseguem ficar com seus filhos são submetidas a um regime mais severo de isolamento e disciplina, o que torna sua privação de liberdade ainda mais árdua.

Além disso, há de se notar que a custódia também impacta o direito à saúde da mulher encarcerada e de seus descendentes. Em nível mundial, as prisões são consideradas um alarmante problema público de saúde, uma vez que reúnem as parcelas mais carentes das populações, as quais raramente tiveram acesso a patamares mínimos de bens culturais e/ou serviços e que, portanto, são mais propensas a adquirirem doenças infectocontagiosas76. Soma-se a isso as já mencionadas más condições de superlotação e

insalubridade do confinamento carcerário, de modo que o resultado não poderia ser outro, senão uma intensa proliferação de doenças.

Por óbvio, os descendentes das mulheres em situação da privação de liberdade também podem ser acometidos por essas enfermidades. Um claro exemplo disso é a sífilis congênita, a qual pode ser transmitida no ciclo gravídico-puerperal da mulher presa, uma vez que a bactéria da referida enfermidade consegue atravessar a barreira placentária. Tal doença aumenta o risco de abortamentos precoces, tardios, trabalhos de parto prematuros e do próprio óbito da criança, assim como pode gerar sequelas nas crianças sobreviventes, a exemplo de cegueira, malformações cerebrais, alterações ósseas e lábio leporino77.

Ainda no que tange à saúde, é válido destacar que próprio acompanhamento do período gestacional é comprometido devido à falência do sistema carcerário brasileiro. Isso pois a mulher em situação de privação de liberdade não tem acesso a exames laboratoriais e de imagem, bem como de outros métodos aptos a monitorar o desenvolvimento fetal e verificar, prevenir e tratar eventuais enfermidades78.

Levando em consideração esses aspectos exemplificativos, a conclusão é axiomática: os presídios femininos não podem ser meras extensões dos masculinos. Mais ainda, não há nenhuma justificativa para que a mulher presa – quer provisoriamente, quer

https://www.justica.gov.br/news/201clugar-de-crianca-nao-e-na-prisao-nem-longe-de-sua- mae201d-diz-pesquisa/pesquisa-dar-a-luz-na-sombra-1.pdf. Acesso em: 21 set. 2019.

76 CARVALHO, Maria Lazaro et al. Perfil dos internos no sistema prisional do Rio de Janeiro: especificidades de gênero no processo de exclusão social. In: Ciência e Saúde Coletiva. 2006. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csc/v11n2/30433.pdf Acesso em: 21 set. 2019. 77

CADHU, Coletivo de Advogados em Direitos Humanos. Petição Inicial do Habeas Corpus Coletivo 143.641. 2017. Disponível em: https://prioridadeabsoluta.org.br/wp- content/uploads/2016/05/08-05-2017-peticcca7acc83o-inicial-cadhu.pdf. Acesso em: 21 set. 2019.

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definitivamente – tenha o seu direito à maternidade tolhido. Tais pressupostos conduzem ao inevitável questionamento de como o encarceramento feminino vem se delineando no Brasil, tema cuja discussão será feita no tópico seguinte.