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3 A DISSONÂNCIA EXISTENTE ENTRE A LEI E O PLANO FÁTICO

3.2 O perfil da mulher presa e a teoria do etiquetamento (labelling approach)

Quando o assunto em discussão é o encarceramento feminino no Brasil, é indispensável se desnudar a cruel lógica de seletividade mediante a qual o Poder Judiciário opera. Noutros termos, é impossível ignorar que um perfil pré-definido de mulheres protagoniza o processo de transição mulher-mãe para mulher-presa.

Dentro desse eixo temático, dados recentes colhidos pelo INFOPEN não somente revelam que o Brasil é o quarto país com a maior população carcerária feminina, mas também que tal população prisional costuma seguir um padrão no que se refere à raça/cor; à faixa etária; ao estado civil; à renda; à escolaridade e ao tipo de delito supostamente cometido.

Ao se aprofundar no aspecto da raça/cor, estima-se que 62% (sessenta e dois) por cento das mulheres presas no Brasil sejam negras79. Tal número transparece como o racismo ainda é patente no país mencionado80, pois a partir desse referencial, resta evidente a consideração de que a mulher negra é rotulada como suspeita e já nasce sentenciada por causa de sua cor, estando sujeita a uma vigilância ostensiva, bem como a uma inegável seletividade penal81.

Já no que diz respeito à faixa etária, constata-se que o aprisionamento tem uma incidência muito maior sobre mulheres jovens. Para cada 100.000 (cem mil) mulheres brasileiras com mais de 18 (dezoito) anos, existem 101, 9 jovens no cárcere, as quais ocupam a faixa etária que varia de 18 (dezoito) a 29 (vinte e nove) anos; enquanto que,

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MULHERES, Infopen. Levantamento Nacional De Informações Penitenciárias. Infopen Mulheres – 2. ed. 2018. Disponível em: http:

//depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen-mulheres/infopemulheres_arte_07-03-18.pdf. Acesso em: 22 set. 2019.

80

No âmbito estadunidense, o aspecto do racismo e o encarceramento é bastante questionado pela filósofa e escritora Angela Davis. Para ela, o sistema carcerário dos Estados Unidos se sustenta em suposições raciais de criminalidade, bem como em práticas raciais que enxergam os corpos negros como bodes expiatórios para os problemas sociais. DAVIS, Angela. Masked Racism:

Reflections on the Prison Industrial Complex. 2000. Disponível em:

https://www.historyisaweapon.com/defcon1/davisprison.html. Acesso em: 22 set. 2019. 81

ALVES, D. 2017. Rés negras, juízes brancos: uma análise da interseccionalidade de gênero, raça e classe na produção da punição em uma prisão paulistana. Revista CS, 21, pp. 97-120. Cali, Colombia: Facultad de Derecho y Ciencias Sociales, Universidad Icesi.

na mesma amostra de 100.000 (cem mil) mulheres brasileiras com mais de 18 (dezoito) anos, apenas 36,4 mulheres presas possuem 30 anos ou mais82. Isso significa dizer que, aproximadamente, 50% (cinquenta por cento) das mulheres presas são jovens, dado que, por si só, é preocupante, posto que essas mulheres jovens deveriam estar compondo a população economicamente ativa, ou seja, deveriam estar estudando, trabalhando e construindo suas respectivas vidas.

Em relação ao estado civil, há uma visível predominância de mulheres solteiras, as quais constituem cerca de 62% (sessenta e dois por cento) da população prisional feminina. Convém pôr em relevo que esse percentual estabelece relação direta com a concentração de jovens entre essa população que, como se pôde ver, representa a maioria do encarceramento feminino83.

Ainda nesse ponto, é forçoso constatar que, independentemente do estado civil, a mulher encarcerada recebe uma quantidade ínfima de visitas, ao revés do que ocorre com o homem em situação de privação de liberdade. Em termos numéricos, enquanto o homem preso costuma receber uma média de 7,8 visitas, a mulher presa costuma receber apenas 5,9 visitas, e, além disso, em alguns estados brasileiros, a média de visitas em prisões femininas é cinco vezes menor que nas masculinas, tais como os Estados do Amazonas, Maranhão, Paraíba e Rio Grande do Norte84.

Outro quesito que não pode ser olvidado é a pobreza propriamente dita, posto que as mulheres pobres e vulneráveis são alvos constantes do aparato punitivo Estatal. Nas palavras de Soraia da Rosa Mendes, a justiça criminal reproduz iniquidade social à medida em que se interessa muito mais pela delinquência das classes sociais de baixa renda do que por outros delitos. É dizer que essa opção de foco nos crimes praticados pelos grupos mais vulneráveis da sociedade funciona, a rigor, como um método de controle social repressivo e excludente85.

No que tange ao fator escolaridade, depreende-se que cerca de 66% (sessenta e seis) por cento da população prisional feminina brasileira ainda não cursou o ensino médio, tendo concluído, no máximo, o ensino fundamental. Nesse mesmo viés, somente

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Ibidem, p.37. 83

MULHERES, Infopen. Levantamento Nacional De Informações Penitenciárias. Infopen Mulheres – 2. ed. 2018. Disponível em: http: //depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen- mulheres/infopemulheres_arte_07-03-18.pdf. Acesso em: 22 set. 2019.

84

Ibidem, p.27. 85

MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia Feminista: novos paradigmas. São Paulo: Saraivajur, 2017. (IDP: Linha Pesquisa Acadêmica). p. 61.

15% (quinze) por cento das mulheres presas concluíram o ensino médio86. Tal quadro deve ser interpretado como uma barreira a uma obtenção de vida mais digna, uma vez que, como dito, a maioria dessas mulheres são vulneráveis e possuem baixa renda.

Via de regra, quanto mais baixo for o nível de escolaridade da mulher, mais dificuldade ela terá de obter um trabalho formal87 podendo ceder, consequentemente, às práticas delituosas. Ou seja, esse cenário de baixa escolaridade aparece como uma característica marcante entre a maioria das mulheres presas porque ele dá azo à ocorrência de um ciclo de acontecimentos que costumam conduzir a mulher ao cárcere.

Num primeiro momento do aludido ciclo extramuros, a mulher, diante de sua ausência de qualificação para trabalhos formais, procura postos de trabalho precários, e, consequentemente, com baixa remuneração. Ocorre que a maioria dessas mulheres é responsável pela provisão do sustento de seu núcleo familiar e, com o tempo, percebe que rendimentos baixos não serão suficientes para manter suas respectivas famílias, recorrendo, por pura necessidade financeira, às práticas ilícitas.

Dentre tais práticas ilícitas, destacam-se os delitos ligados ao tráfico de drogas, havendo a estimativa de que 3 (três) em cada 5 (cinco) mulheres presas respondem por crimes relacionados ao tráfico, o que equivale a um percentual de 62% (sessenta e dois por cento) da população carcerária feminina brasileira88. É digno de nota que esse quantitativo de encarceramentos femininos por tráfico de drogas é significativo em razão do fato de que a legislação brasileira não difere os diferentes níveis de práticas ilícitas atreladas a este delito, de modo que todas as condutas se sujeitam às mesmas penalidades.89

Ademais, é oportuno consignar que a maioria dessas mulheres que se encontram no sistema penitenciário em razão de crimes relacionados ao tráfico de drogas não ocupavam funções hierárquicas superiores na cadeia econômica das drogas ilícitas, a

86 Ibidem, p.43.

87ORMENO, Gabriela Reyes; STELKO-PEREIRA, Ana Carina. 2013. Mulheres encarceradas: nível de escolaridade e motivos para terem evadido da escola. Revista Faz Ciência. Paraná: Universidade Estadual do Oeste do Paraná, v. 15, n. 22, 22 set. 2019.

88 MULHERES, Infopen. Levantamento Nacional De Informações Penitenciárias. Infopen

Mulheres 2. ed. 2018. Disponível em: http:

//depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen-mulheres/infopemulheres_arte_07-03- 18.pdf. Acesso em: 22 set. 2019.

89 PÚBLICAS, Fundação Getúlio Vargas - Diretoria de Análise de Políticas. Encarceramento

Feminino: Policy Paper - Segurança e Cidadania. 2018. Disponível em:

http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/25741/Encarceramento%20fem inino.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 22 set. 2019.

exemplo da gerência do tráfico ou posições de mando propriamente ditas, mas sim desenvolviam atividades subalternas.90

É preciso ter em mente que o transporte de drogas aos estabelecimentos penais influencia sobremaneira esse panorama, tanto é que a maior parte das mulheres custodiadas no sistema carcerário foi presa tentando levar drogar aos presídios. Uma análise mais minuciosa desse quadro conduz à percepção de que o exercício de funções subalternas no tráfico de entorpecentes pela mulher – a exemplo da função de mula91

atesta muito mais uma sujeição às ordens do companheiro que está preso e uma obediência às regras das organizações criminosas do que o intuito de delinquir propriamente dito92.

Nesse ínterim, infere-se que esta noção de que há um perfil previamente traçado de mulheres as quais serão submetidas à justiça criminal em muito se assemelha com a teoria criminológica do etiquetamento, também conhecida como labelling approach. Em linhas gerais, essa vertente teórica defende a percepção de que o caráter delituoso de um fato ou agente está diretamente atrelado à reação rotulacionista de instâncias oficiais e não oficiais de controle.93

A rigor, a predita teoria parte do pressuposto de que um determinado grupo social possui o poder de definir rótulos de criminalização, os quais serão aplicados a uma outra parcela da sociedade. Isso significa dizer que, para a teoria em questão, a criminalidade tem origem num duplo processo cujo deslinde se dá na: i) definição legal do crime, a qual confere à conduta o teor ilícito; e ii) seleção que estigmatiza um autor entre todos aqueles que praticam tal conduta94. Desse modo, pode-se compreender que um grupo específico de indivíduos já são visados quando da criação das normas.

No Brasil, um exemplo que corrobora com veemência tal assertiva é o emblemático caso de Adriana Ancelmo, esposa do ex-governador do Estado do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, que foi acusada pelo Ministério Público Federal (MPF) pelos

90 Ibidem. 91

Termo utilizado para conceituar a pessoa responsável por transportar drogas devido à coação ou em troca de pagamento.

92 SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. Reforma tópica do processo penal: inovações aos procedimentos ordinário e sumário, com o novo regime das provas, principais modificações do júri e as medidas cautelares pessoais (prisão e medidas diversas da prisão). 3. Ed. revista, atualizada e ampliada – Natal: OWL, 2019, p. 353.

93 CABRAL, Juliana Maria Diniz. Do contratualismo à criminologia do etiquetamento. 2004. 94

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Do paradigma etiológico ao paradigma da reação social: mudança e permanência de paradigmas criminológicos na ciência e no senso comum. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 4, n. 14, p. 276-287, abri./jun. 1996. P. 280.

crimes de lavagem de dinheiro, corrupção passiva e organização criminosa, em decorrência da Operação Calicute95.

Pois bem. No decorrer da referida operação, a prisão preventiva de Adriana foi decretada, mas sua defesa requereu, com prontidão, a respectiva conversão em custódia domiciliar, pleito que foi acatado em março de 2017 pelo Superior Tribunal de Justiça, mais especificamente por decisão da ministra Maria Thereza de Assis Moura96. Sucede que o referido requerimento - mediante o qual Adriana Ancelmo saiu do Complexo Penitenciário de Gericinó, Zona Oeste do Rio de Janeiro, para seu apartamento, na Zona Sul da mencionada cidade – se pautou nas modificações efetuadas no artigo 318 do CPP com o advento da já citada Lei nº 13.257, de 2016.

Especificamente, postulou-se a concessão da prisão domiciliar com fulcro no inciso v, do artigo 318 do CPP, o qual enuncia que a conversão da prisão preventiva em domiciliar deve ser concedida à mulher com filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos. Como, à época, um dos filhos de Adriana Ancelmo tinha 11 (onze) anos de idade, ela foi devidamente abarcada pela previsão legal.

Em que pese o célere êxito logrado pela defesa da ex-primeira-dama do Estado do Rio de Janeiro, a conversão da prisão preventiva em domiciliar não alcançou e nem alcança a maioria das mulheres, como, por exemplo, a auxiliar de limpeza Alessandra, cujo caso ganhou notoriedade nacional. Mãe de cinco filhos, Alessandra foi presa preventivamente porque teria tentado entregar ao seu marido que estava preso 8,5g (oito gramas e meio) de maconha dentro de um bolo. Ao requerer a conversão para a prisão domiciliar mediante assistência da Defensoria Pública de São Paulo (DPE-SP), Alessandra teve seu pleito negado no STJ mediante parecer da ministra Laurita Vaz, a qual asseverou que não estava demonstrada a imprescindibilidade de Alessandra para os cuidados de seus filhos97.

95 A Operação Calicute representa a 27ª fase da Operação Lava-Jato e foi deflagrada no intuito de investigar o desvio de recursos públicos federais em obras efetuadas pelo governo do Estado do Rio de Janeiro.

96 MAGGIE, Yvonne. A injustiça da justiça – o caso Adriana Ancelmo. Portal G1. 2017. Disponível em: http://g1.globo.com/pop-arte/blog/yvonne-maggie/post/injustica-da-justica-o- caso-deadrianaancelmo.html. Acesso em: 23 set. 2019.

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FANTÁSTICO. Mães presas pedem na Justiça prisão domiciliar para ficarem perto de filhos: Uma delas é a auxiliar de limpeza Alessandra, mãe de cinco filhos. Outra é a ex- primeira-dama do Rio Adriana Ancelmo, mãe de dois filhos.. 2018. Disponível em: http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2018/02/maes-presas-pedem-na-justica-prisao-

A partir disso, começou a se questionar o porquê de tantas mulheres permanecerem no cárcere, mesmo preenchendo os requisitos necessários à conversão da prisão preventiva em prisão domiciliar. Ora, exsurge-se manifesto o entendimento de que há uma discrepância de tratamento entre classes sociais distintas, pois enquanto a benesse legal foi rapidamente concedida à ré Adriana Ancelmo, a qual possuía boas condições financeiras; as detentas que se enquadravam no perfil pré-estabelecido de mulher presa seguiram sob a custódia estatal.

Face a esse diagnóstico de seletividade do sistema de justiça, o Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos (CADHu)98 enxergou a oportunidade de lutar pelo

direito de conversão da prisão preventiva em domiciliar das mulheres que não detinham poder aquisitivo equivalente ao de Adriana Ancelmo, isto é, das mulheres presas pobres e vulneráveis. Estrategicamente, o CADHu impetrou o já mencionado Habeas Corpus Coletivo nº 143.641, de 2018, desafiando o STF a se manifestar sobre o tema99.

Como bem sintetiza Eloísa Machado de Almeida, professora de direito constitucional da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e advogada do CADHu, o caso Adriana Ancelmo foi decisivo para a temática das mulheres acauteladas provisoriamente e seus núcleos familiares, pois escancarou que as lentes do Poder Judiciário variavam de acordo com a ré, tendo em vista que uma mulher rica obteve o benefício da conversão de maneira muito rápida - o qual já estava previsto na legislação brasileira há mais de um ano - enquanto outras mulheres no Brasil continuavam presas, inclusive com seus bebês, sem qualquer condenação100.

É premente que se deixe claro a influência direta da condição social no que diz respeito ao acesso à justiça da mulher encarcerada. Certamente, a ré Adriana Ancelmo teve condições financeiras para arcar com as despesas processuais, bem como para custear uma assessoria jurídica qualificada. Entretanto, esse não é o cenário vivenciado pela

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Posteriormente, a titularidade do writ foi modificada. No entendimento do relator do Habeas Corpus, o Ministro Ricardo Lewandoski, a legitimidade ativa do caso deveria seguir, analogicamente, as disposições referentes ao Mandado de Injunção Coletivo, constantes da Lei 13.300, de 23 de junho de 2016 e, por se tratar de caso de abrangência nacional, a DPU deveria substituir o CADHu.

99 SILVA, Jaqueline Galdino da. Cárcere e maternidade no STF: uma análise da atuação dos amici curiae no caso do Habeas Corpus Coletivo n°143.641/SP. 2018. 121 f. Monografia (Especialização) - Curso de Escola de Formação da Sociedade Brasileira de Direito Público, Sociedade Brasileira de Direito Público, São Paulo, 2018.

100 TREVISAN, Maria Carolina. Filho de Adriana Ancelmo fez 12 anos. Ela continua em

prisão domiciliar. 2018. Disponível em:

https://mariacarolinatrevisan.blogosfera.uol.com.br/2018/08/17/filho-de-adriana-ancelmo- fez-12-anos-ela-continua-em-prisao-domiciliar/. Acesso em: 23 set. 2019.

maioria das mulheres encarceradas para as quais, em verdade, o direito aqui discutido costuma ser invisível.

Ante as considerações tecidas, pode-se concluir que as mulheres encarceradas no Brasil costumam seguir um perfil previamente delineado, o qual acaba por reiterar a existência de um sistema de justiça criminal extremamente seletivo.