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Entre grades: a dificuldade de manutenção de entidades familiares pela mulher encarcerada frente à banalização da prisão preventiva

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS

CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO

FERNANDA BORGES FEITOSA

ENTRE GRADES: A DIFICULDADE DE MANUTENÇÃO DE ENTIDADES FAMILIARES PELA MULHER ENCARCERADA FRENTE À BANALIZAÇÃO

DA PRISÃO PREVENTIVA

NATAL 2019

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FERNANDA BORGES FEITOSA

ENTRE GRADES: A DIFICULDADE DA MANUTENÇÃO DE ENTIDADES FAMILIARES PELA MULHER ENCARCERADA FRENTE À BANALIZAÇÃO DA

PRISÃO PREVENTIVA

Monografia apresentada ao curso de graduação em Direito, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em Direito.

Orientador: Prof. Dr. Walter Nunes da Silva Júnior.

NATAL 2019

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Àqueles a quem devo tudo e mais um pouco: minha mãe, Eliane, e meu pai, Cícero (in memoriam).

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AGRADECIMENTOS

Certa vez, li uma frase de autoria do saudoso poeta Fernando Pessoa que muito me marcou, a qual carrego para a vida: tudo vale a pena se a alma não é pequena. Ainda mantenho comigo a mesma interpretação da primeira vez em que me deparei com essa poesia, a de que, na vida, o que há de valioso depende sempre e diretamente de sua entrega e, sobretudo, de sua trajetória.

Hoje, lanço mão dessas mesmas palavras na tentativa de resumir uma trajetória específica, minha trajetória na Universidade Federal do Rio Grande do Norte e no glorioso curso de Direito. De fato, nunca serei capaz de expressar toda a minha felicidade e gratidão pelos anos vividos nesta casa que me acolheu e tanto me ensinou. Entrei carregando inúmeros sonhos e expectativas e, ao longo dos semestres, respirei a universidade o máximo que pude. Descobri um direito até então desconhecido por mim, muitas vezes sombrio, mas entendi, ao mesmo tempo, que as adversidades tornam as conquistas mais bonitas. Enxerguei a pluralidade da academia e pude compreender que minha verdade nem sempre se iguala a dos outros. Discuti ideais, mudei de opiniões, amadureci. Despeço-me levando mais sonhos do que tinha antes, mas saio, principalmente, com a certeza de que tudo valeu a pena.

No entanto, esta não é a única certeza que carrego. Não tenho dúvidas de que meu caminho não seria o mesmo sem o apoio de pessoas extremamente especiais, às quais todo agradecimento é pouco.

Inicio agradecendo àqueles que, desde cedo, são meu maior referencial de amor: meus pais. À minha mãe, Eliane Borges, agradeço por me ensinar, todos os dias, o verdadeiro significado da palavra resiliência, assim como por acreditar em mim mais do que eu mesma. Ao meu pai, Cícero Feitosa, agradeço por todos os ensinamentos inesquecíveis, minha imensa saudade é a maior prova disso.

Também sou grata ao meu namorado, Ricardo Urbano, por abraçar meu mundo como se fosse dele e incentivar todos meus objetivos;

À minha família e amigos, expresso minha gratidão por toda a torcida, vocês são essenciais e insubstituíveis;

Ao meu orientador, Professor Walter Nunes da Silva Júnior, devo agradecer em dobro: tanto pela orientação primordial que me forneceu neste trabalho, como também pela oportunidade de acompanhá-lo por quatro semestres de monitoria nas disciplinas de direito processual penal I e II, período que marcou de maneira singular minha graduação.

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Obrigada por ser um ponto fora da curva e por não medir esforços na busca de uma genuína justiça criminal, o senhor é uma grande inspiração.

À Professora Mariana de Siqueira, agradeço por prontamente ter se disponibilizado em contribuir com esta pesquisa. Não só isso, também presto meus sinceros agradecimentos por ter tido a oportunidade de experienciar sua afeição pela docência e por suas convicções.

Ao Professor Ângelo Menezes, agradeço por ser um grande exemplo de dedicação e por mostrar que o brilho nos olhos sempre nos leva mais longe.

Por fim, agradeço ao Instituto Alana, em nome da advogada Thais Nascimento Dantas, a qual com muita prestatividade me ajudou a trilhar os rumos pretendidos neste trabalho e cujo trabalho tem toda minha admiração. A luta continua, mas como bem disse Chico Buarque: amanhã há de ser outro dia.

(8)

Não serei livre enquanto alguma mulher for prisioneira, mesmo que as correntes dela sejam diferentes das minhas.

(9)

RESUMO

Esta pesquisa tem por escopo o estudo da problemática da dificuldade de manutenção de entidades familiares pela mulher encarcerada. Muito embora um arcabouço considerável de normativas firme a tutela do núcleo familiar da mulher em conflito com a lei, esta enfrenta inúmeros obstáculos para preservá-lo. Tais obstáculos reforçam, com frequência, a incompatibilidade existente entre o cárcere e o exercício do direito à maternidade. Nesse sentido, o presente trabalho possui o objetivo geral de apurar, mediante um exame constitucional e processual penal, os reais entraves à manutenção de núcleos familiares pelas mulheres presas, sobretudo diante do fenômeno banalização do instituto da prisão preventiva. Detém os objetivos específicos de compreender a evolução do conceito de família e sua ineficácia prática quando aplicado à realidade das mulheres encarceradas; destrinchar as diretrizes normativas que têm como objetivo a tutela tanto da família em sentido amplo, quanto da família da mulher que se encontra no cárcere; examinar de maneira crítica a conformação das unidades prisionais femininas e desenvolver um estudo minucioso do instituto da prisão preventiva e suas respectivas nuances. Trata-se de pesquisa descritiva, de caráter exploratório e intervencionista. Ao final, no intuito de se assegurar uma maior proteção a tais núcleos familiares, propõe-se a expansão de políticas socioassistenciais às presas domiciliares, bem como a realização de reformas na Lei de Drogas.

Palavras-chave: Processo Penal. Direito à Maternidade. Encarceramento Feminino. Prisão Preventiva.

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ABSTRACT

This research has its scope the study of the problem of the difficulty of maintenance of family entities by the incarcerated woman. Although a considerable framework of normative firmly guarding the family core of women in conflict with the law, these group of women still faces numerous obstacles to preserving it. Such obstacles often reinforce the incompatibility between prison and the exercise of the right to motherhood. In this sense, the present work has the general objective of ascertaining, through a constitucional and procedural criminal examination, the real obstacles to the maintenance of family cores by women prisoners, especially in view of the banalization phenomenon of the institute of pre-trial detention. It has the specific objectives of understanding the evolution of the concept of family and its pratical ineffectiveness when applied to the reality of incarcerated women; to unravel the normative guidelines that aim to protect both family in the broad sense and the family of the woman in prison; to examine critically the conformation of female prison units and develop a thorough study of the institute of pre-trial detention and its nuances. This is a descriptive, exploratory and interventionist research. In the end, in order to ensure greater protection for such families, it is proposed to expand socio-assistance policies to house arrested women, as well as drug law reforms.

Keywords: Criminal process. Right to maternity. Female incarceration. Pre-trial detention.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Auto de Exibição e Apreensão... 48 Figura 2 – Trecho da petição referente ao pedido de saídas específicas em regime

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LISTA DE SIGLAS

ADPF Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental CADHu Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos

CF Constituição Federal

CNJ Conselho Nacional de Justiça

CNPCP Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária

CP Código Penal

CPP Código de Processo Penal

DPE-RN Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Norte DPE-SP Defensoria Pública do Estado de São Paulo

DPU Defensoria Pública da União

ECA Estatuto da Criança e do Adolescente FGV Fundação Getúlio Vargas

IBCCRIM Instituto Brasileiro de Ciências Criminais INFOPEN Levantamento de Informações Penitenciárias ITTC Instituto Terra, Trabalho e Cidadania

IDDD Instituto de Defesa do Direito de Defesa LEP Lei de Execução Penal

MPRN Ministério Público do Rio Grande do Norte ONU Organização das Nações Unidas

OMS Organização Mundial de Saúde STF Supremo Tribunal Federal STJ Superior Tribunal de Justiça

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO... 12

2 DA MULHER NO CÁRCERE E SUA

FAMÍLIA... 16 2.1 Acepção de família à luz da Constituição e a proteção constitucional à família

da mulher encarcerada... 16 2.2 Normas protetivas à mulher encarcerada e sua entidade

familiar... 20

3 A DISSONÂNCIA EXISTENTE ENTRE A LEI E O PLANO

FÁTICO... 34 3.1 O surgimento e a realidade atual das penitenciárias femininas no

Brasil... 34 3.2 O perfil da mulher presa e a teoria do etiquetamento (labelling

approach)... 40

3.3 Entre as grades e a maternidade: estudo de

caso... 46

4 DOS DESAFIOS IMPOSTOS PELA BANALIZAÇÃO DA PRISÃO

PREVENTIVA À MANUTENÇÃO DA ENTIDADE FAMILIAR DA MULHER ENCARCERADA... 58 4.1 A exceção dentro das exceções: prisão preventiva enquanto medida cautelar

subsidiária e suas nuances... 58 4.2 A banalização da prisão preventiva como desafio à manutenção das

entidades familiares... 66 4.3 Proposições alternativas ao cárcere como medidas assecuratórias dos

núcleos familiares... 74 5 CONCLUSÃO... 83 REFERÊNCIAS... 87 ANEXO A - QUESTIONAMENTOS ACERCA DO HABEAS CORPUS

COLETIVO 143.641, de 2018, E SUAS

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1 INTRODUÇÃO

Em meio a micromachismos1 cotidianos, desigualdades salariais, cruéis feminicídios e outros inúmeros obstáculos impostos por uma sociedade essencialmente patriarcal, o ato de ser mulher sempre figurou como uma tarefa árdua, de constante resistência. Sucede que as dificuldades relacionadas ao gênero feminino se acentuam em se tratando das mulheres que estão imersas no sistema prisional brasileiro.

Tal assertiva se deve ao fato de que a maior parte dos estabelecimentos prisionais brasileiros foi projetada para abrigar homens e não considera, por consequência, as especificidades do gênero feminino. Conforme indicam as pesquisas do Levantamento de Informações Penitenciárias – INFOPEN2, 74 % (setenta e quatro por cento) das unidades prisionais foram construídas para homens, 16 % (dezesseis por cento) são mistas e apenas 7 % (sete por cento) destinam-se às mulheres.

Diante dessa realidade, os desafios enfrentados pela mulher no cárcere são incontáveis e patentes, sendo a tentativa de manutenção de sua entidade familiar um dos maiores destes desafios, quer seja uma família formada fora ou dentro das penitenciárias. Muito embora o ordenamento jurídico pátrio tenha delineado múltiplos comandos no intuito de preservar o núcleo familiar da mulher encarcerada, este é, continuamente, violado no plano prático.

Nesse cenário de incontestável enfraquecimento das relações familiares, a banalização da prisão preventiva3 emerge como um reflexo da cultura do

encarceramento4 vigente no Brasil e responsável por agravar a problemática em apreço. Para Aury Lopes Jr.5, tal banalização é excessiva a ponto de consagrar o absurdo primado

das hipóteses sobre os fatos, pois primeiro se prende, para depois buscar o suporte

1 Micromachismos são discriminações contra a mulher que se revelam de maneira sutil como, por

exemplo, mediante pequenos gestos e comentários preconceituosos.

2 MULHERES, Infopen. Levantamento Nacional De Informações Penitenciárias. Infopen Mulheres – 2. ed. 2018. Disponível em: http: //depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen-mulheres/infopemulheres_arte_07-03-18.pdf. Acesso em: 15 jul. 2019.

3 A banalização da prisão preventiva nada mais é do que o reprovável fenômeno presente nos dias

atuais materializado a partir da decretação acrítica, infundada e exacerbada de prisões preventivas.

4 Cultura do encarceramento foi a nomenclatura eleita para definir a inconsistente noção de que

a prisão é a melhor - quando não for considerada a única - forma de se combater a criminalidade. 5

LOPES JÚNIOR, Aury. O Novo Regime Jurídico da Prisão Processual, Liberdade Provisória e Medidas Cautelares Diversas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012. p. 30.

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probatório que legitima a prisão, quando, em verdade, a ordem inversa é a que seria juridicamente adequada.

Essa realidade secundariza, sobretudo, a roupagem protetiva dispensada pela Constituição Federal de 1988 (CF/88) ao status libertatis, a qual se ampara numa perspectiva de tutela dos direitos fundamentais. Em outros termos, a imposição exacerbada e – por muitas vezes, infundada - de prisões cautelares, sobretudo a mulheres pobres e vulneráveis, intensifica negativamente a conjuntura em comento, qual seja a dificuldade de manutenção de entidades familiares pela mulher em situação de privação de liberdade.

Tendo ciência desse panorama, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), em decisão emblemática, concedeu, em fevereiro de 2018, Habeas Corpus coletivo à todas as presas preventivas que estivessem grávidas, puérperas ou tivessem filhos de até 12 (doze) anos de idade e/ou filhos com deficiência sob sua guarda. A ordem do aludido

writ era de conversão da prisão preventiva em prisão domiciliar, desde que o delito

supostamente cometido não envolvesse violência ou grave ameaça e não tivesse sido cometido contra os descendentes da mulher encarcerada, bem como desde que o julgador não fundamentasse pela não concessão do benefício, a partir de uma análise casuística6.

Ao agir assim, a Suprema Corte se coadunou na seara internacional com as Regras de Bangkok (Regras das Nações Unidas para o Tratamento de Mulheres Presas e Medidas Não Privativas de Liberdade para Mulheres Infratoras), as quais firmam o entendimento de que as medidas alternativas ao cárcere devem ser priorizadas, sobretudo nas situações em que não se trata de um cumprimento definitivo de pena.

Ainda no contexto do Habeas Corpus Coletivo, a Lei 13.769, de 19 de dezembro de 2018, alterou o Código de Processo Penal (Decreto-Lei nº 3.689, de 1941), a Lei de Execução Penal (Lei 7.210, de 1984) e a Lei de Crimes Hediondos (Lei 8.072, de 1990), positivando parte dos mesmos termos definidos no julgamento do Habeas Corpus Coletivo anteriormente mencionado, a saber o Habeas Corpus Coletivo nº 143.641, de 2018.

Apesar dos esforços legislativos e jurisprudenciais empreendidos, a prisão da mulher, via de regra, ainda costuma ser fruto de uma política criminal repressiva,

6 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. 2ª Turma concede HC coletivo a gestantes e mães de

filhos com até doze anos presas preventivamente. 2018. Disponível em:

http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=370152. Acesso em: 08 jun. 2019.

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consistindo numa dupla sanção: a sanção em razão da privação de liberdade da detenta e a sanção pelo distanciamento desta de sua família.

À vista dessa discrepância existente entre o disciplinamento normativo e a práxis, o presente trabalho tem como seu objetivo geral apurar – a partir de um exame constitucional e processual penal - quais são os reais entraves à manutenção das entidades familiares das mulheres presas, sobretudo diante da inegável banalização do instituto da prisão preventiva.

Ademais, são objetivos específicos: i) compreender a evolução do conceito de família e sua ineficácia prática quando aplicado à realidade das mulheres encarceradas; ii) destrinchar as diretrizes normativas que têm como objetivo a tutela tanto da família em sentido amplo, quanto da família da mulher que se encontra no cárcere; iii) efetuar uma análise crítica da conformação das unidades prisionais femininas e iv) desenvolver um estudo minucioso do instituto da prisão preventiva e suas respectivas nuances.

No que tange à metodologia utilizada, o presente estudo é descritivo, assim como detém caráter exploratório e intervencionista. Além disso, possuindo um viés garantista, a presente pesquisa fez uso de uma abordagem observativo-qualitativa e lançou mão do método de investigação a partir de revisão bibliográfica, legal, jurisprudencial, documental e estudo de caso.

No afã de satisfazer os objetivos anteriormente mencionados, o segundo capítulo tratará da mulher encarcerada e sua família. Mais especificamente, abordar-se-á a acepção de família a partir da ótica da CF/88, assim como explorar-se-ão algumas normativas que tutelam a mulher em condição de privação de liberdade e sua entidade familiar, quais sejam a própria CF de 1988; a Lei de Execução Penal (LEP); o Código Penal (CP); o Código de Processo Penal (CPP); o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA); as Regras de Bangkok e a Lei da 1ª Infância.

Por seu turno, o terceiro capítulo versará sobre as penitenciárias femininas, analisando tais entidades prisionais desde seu surgimento até sua atual conjuntura no Brasil, assim como trará uma abordagem sobre o viés da criminologia feminista. Neste mesmo capítulo, examinar-se-á o perfil da mulher brasileira que se encontra no cárcere, sendo tal observação aliada à discussão acerca da Teoria do Etiquetamento (labelling

approach). Ainda, depois de traçado tal perfil, estudar-se-á um caso concreto referente

ao tema da presente pesquisa, o qual foi colhido a partir de vivências na condição de estagiária da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Norte (DPE-RN) e que reforçará com nitidez as considerações tecidas previamente.

(17)

Já ao quarto e derradeiro capítulo caberá a discussão acerca da prisão preventiva propriamente dita. Neste contexto, dissertar-se-á sobre o tratamento conferido ao aludido instituto no Brasil e, ainda, tratar-se-á de sua banalização como um desafio à manutenção das entidades familiares da mulher encarcerada. Finalizando tal capítulo, discutir-se-ão medidas de resolução em relação à problemática em tela.

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2 DA MULHER NO CÁRCERE E SUA FAMÍLIA

Na visão de Luigi Ferrajoli7, o direito à autodeterminação referente à maternidade é um direito fundamental e exclusivo das mulheres8, o qual nem mesmo pode ser analogicamente comparado a uma paternidade voluntária pela simples razão de que a identidade masculina, em sua liberdade pessoal, não se sujeita a experiência da gestação e do parto.

Todavia, frente à custódia, esse direito costuma ser menosprezado, haja vista que a essência da privação da liberdade dificulta o exercício de uma maternidade plena pela mulher encarcerada. Isso pois o sistema penitenciário, enquanto entidade relacional, passa a integrar, bem como a ter uma função dentro do sistema familiar da mulher presa, de modo a alterar não apenas a vida da mulher encarcerada, mas de seus familiares também9.

Via de regra, tal contexto fático tende a enfraquecer tais relações familiares, pois ele demanda por si só uma reorganização da família como um todo ao cenário do cárcere10. Partindo desse enfoque, é essencial compreender como a maternidade pode se expressar, isto é, apreender o conceito vigente de família para, em seguida, adentrar-se na conjuntura da família da mulher presa.

2.1 Acepção de família à luz da Constituição e a proteção constitucional à família da mulher encarcerada

A acepção de família dos dias atuais não é a mesma de outrora. Tal afirmação deriva do entendimento de que o conceito de família caminhou junto às evoluções sociais, sofrendo constantes modificações ao longo dos tempos.

Até a promulgação da Carta Magna de 1988, a formação de uma família se delineava de maneira restrita, pois dependia da união exclusiva de homem e mulher mediante matrimônio. Inclusive, neste período prévio à Constituição Cidadã, o casamento

7FERRAJOLI, Luigi. Derechos y Garantías: la ley del más débil. Madrid: Trotta, 2010. p.

85-86.

8Por direito à autodeterminação referente à maternidade, deve-se entender, basicamente, o direito

da mulher de ser mãe, caso queira. Ou seja, não deve ser interpretado enquanto um dever da mulher, mas sim um ato de vontade que constitui um direito.

9

MONASTERO, Leda Fleury. Mães em situação de encarceramento e a relação com seus familiares: um estudo em unidades prisionais na cidade de São Paulo. 2017. 197 f. Tese (Doutorado) - Curso de Doutorado em Psicologia Clínica, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2017.

10

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se manteve como indissolúvel até o ano de 1977, mais especificamente até o advento da Lei 6.515, de 26 de dezembro de 1977, a Lei do Divórcio.

Para José Carlos Teixeira Giorgis11, a instituição do divórcio acompanhada de outros fatores, a exemplo da independência da mulher, da abertura política e do crescimento de movimentos reivindicatórios não somente tiveram o condão de impulsionar o processo constituinte, mas também de permitir sua discussão a nível nacional.

Sendo assim, restou instaurada uma nova ordem constitucional e esta, por sua vez, trouxe consigo uma noção mais plural e ampla para a conceituação de entidade familiar. Com a chegada da CF de 1988, o conceito de família ganhou novos contornos, passando a ser extraído a partir de um envolvimento afetivo existente entre os seus respectivos membros. Em outros termos, a família abandonou as vestes de uma mera instituição para se transformar num meio de alcance a um bem maior: a felicidade.

Sobre tal mudança de paradigma, Maria Berenice Dias se posiciona no sentido da necessidade de se ter uma visão pluralista do conceito de família, capaz de abarcar as mais diversas modalidades de arranjos familiares, não importando sua conformação, mas sim o vínculo que une os integrantes da entidade familiar, a saber o afeto.12

De igual maneira, Marcial Barreto Casabona13 expõe que pela leitura da acepção de família dada pela CF de 1988, capta-se a perspectiva de que em razão de diversas modificações de ordem econômica, sociológica e moral, as quais ocorreram nos últimos tempos, a família não mais ocupa o papel de entidade política dentro do Estado, mas sim de um locus de reunião de pessoas ligadas pelo afeto.

Sob esse prisma, a atual Constituição previu a proteção à família no artigo 226 e, nos seus respectivos parágrafos, foram disciplinadas suas nuances. Delimitou-se que a entidade familiar tanto poderia ser formada pelo casamento civil ou religioso com efeitos civis (§§1º e 2º); pela união estável entre homem e mulher, sendo facilitada sua conversão em casamento (§3º); e pela denominada família monoparental, aquela constituída por qualquer dos pais e seus descendentes (§ 4º).

11 GIORGIS, José Carlos Teixeira. A paternidade fragmentada: família, sucessões e

bioética. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 16-17.

12 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. São Paulo: Editora Revista dos

Tribunais, 2006. p. 39.

13 CASABONA, Marcial Barreto. O conceito de família para efeito da impenhorabilidade da

moradia. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE DIREITO DE FAMÍLIA, 4., 2004, Belo Horizonte. Anais [...]. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 383-385.

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Todavia, tais disposições não apontam uma definição restritiva sobre o que é a família, tampouco vinculam de maneira definitiva como ela deve se configurar. Com base nesse pressuposto, a luta pelo reconhecimento das mais diversas formas de entidades familiares toma as rédeas dos discursos políticos das minorias14.

Ainda, a atual ordem constitucional instituiu a igualdade de direitos e deveres referentes à sociedade conjugal para o homem e para a mulher (§ 5º), assim como a possibilidade de dissolução do casamento civil mediante divórcio (§ 6º). Por fim, sedimentou-se a noção de que o planejamento familiar é livre decisão do casal e de que o Estado tem a responsabilidade de garantir assistência à família, criando maneiras de coibir a violação no âmbito de suas relações (§§ 7º e 8º).

À vista disso, é imperioso destacar que tais disposições constitucionais protetivas à entidade familiar também incidem sobre a família da mulher presa, ou seja, a mulher em situação de privação de liberdade não deve ter tolhido seu direito de manter uma família. Muito embora tenha supostamente praticado uma conduta delituosa, a mulher encarcerada não deixa de merecer a tutela estatal, carregando uma gama de direitos que tem de ser usufruídos, inclusive o direito de manter uma entidade familiar.

Com efeito, a Constituição, responsável por fixar as diretrizes que serão seguidas pelas leis infraconstitucionais, elencou alguns direitos referentes à mulher presa e sua respectiva entidade familiar. A priori, em sentido amplo, a mulher encarcerada é abarcada pelo princípio da dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos do Estado brasileiro, previsto no artigo 1º, III da Constituição.

Para a concepção de Peter Häberle15, o princípio em tela representa o valor jurídico supremo do ordenamento constitucional, uma vez que dele decorrem todos os demais direitos fundamentais. Em razão disso, há de se concluir que tal dignidade não ficaria à mercê de nenhum critério específico, bem como pertence a todo e qualquer ser humano.

14

Neste contexto, cabe mencionar o julgamento da ADPF nº 132 e da ADIN nº 4277, ocasião na qual o STF – mediante mutação constitucional – procedeu com o reconhecimento da união estável entre casais homossexuais. Em síntese, a Suprema Corte entendeu não ser cabível a interferência estatal na vida privada dos casais homossexuais, assim como consagrou a merecida igualdade da união estável homoafetiva à heterossexual, dando nova interpretação ao artigo 226, § 3º da CF.

15

HÄBERLE, Peter. A dignidade humana como fundamento da comunidade estatal. In: SARLET, Ingo. Dimensões da dignidade: Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. pp. 93-4.

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Logo, percebe-se que a condição de mulher presa em nada impede a incidência do princípio em comento. Noutras palavras, é preciso abandonar o infundado imaginário segundo o qual a pessoa que se encontra no cárcere – quer seja homem ou mulher – não deve ter sua dignidade respeitada.

Ato contínuo, também é válido trazer à baila alguns incisos do artigo 5º da Constituição relevantes para a tutela da mulher em situação de privação de liberdade e seu núcleo familiar, sobretudo porque coube ao aludido artigo a honrosa missão de estatuir os direitos fundamentais.16

Nesse contexto, evidencia-se que enquanto o inciso III do artigo 5º proíbe expressamente a prática da tortura e do tratamento desumano ou degradante, o inciso XLIX do mesmo dispositivo, num viés semelhante, garante aos indivíduos presos o respeito à integridade física e moral. De fato, essas disposições constitucionais têm relevância imensurável quando aplicadas à realidade do sistema penitenciário brasileiro.

Por seu turno, o inciso XLV17 do referido artigo tece o denominado princípio da intranscendência da pena, segundo o qual nenhuma pena pode passar da pessoa condenada. Em síntese, somente o agente que praticou uma conduta típica, ilícita e culpável é quem deve suportar o instituto jurídico da pena, não devendo haver transferência dessa punição ou de seus efeitos a terceiros, a exemplo da família da pessoa condenada.

Lamentavelmente, o princípio da intranscendência da pena é violado com frequência18, uma vez que os efeitos da condenação costumam ser transpostos para a família da pessoa condenada tanto em relação a aspectos sociais, como psicológicos e financeiros19.

16

Na definição de Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins, “direitos fundamentais são direitos públicos subjetivos de pessoas (físicas ou jurídicas), contidos em dispositivos constitucionais e, portanto, que encerram caráter normativo supremo dentro do Estado, tendo como finalidade limitar o exercício do poder estatal em face da liberdade individual”. DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 5. ed. rev., atual e ampl. São Paulo: Atlas, 2014, p. 41.

17Ibidem.

18MONTEIRO, David de Oliveira. Maternidade na Prisão: Instrumentos de Proteção e Defesa

dos Direitos Humanos. 2013. 115 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Programa de Pós-graduação em Ciências Jurídicas do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2013.

19

Por óbvio, o princípio da intranscendência da pena incide sobre as pessoas que foram condenadas definitivamente. No entanto, numa análise analógica, é evidente que os reflexos do cárcere propriamente dito na família de uma presa preventiva são tão danosos quanto, quiçá mais danosos, tendo em vista a possibilidade da acautelada preventivamente não ser condenada ao final do processo em que figura como acusada.

(22)

Ainda, mais especificamente voltado à maternidade e conferindo legitimidade à preocupação dos primeiros contatos da mulher presa com seus descendentes, o inciso L prevê que devem ser asseguradas às presidiárias condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação.

Por fim, o artigo 6º consubstancia o empenho constitucional em conferir uma proteção específica à mulher encarcerada e sua entidade familiar, prevendo dentre os direitos sociais a proteção à maternidade e à infância. Efetivamente, os artigos mencionados ilustram com nitidez os direitos previstos constitucionalmente às detentas e suas respectivas famílias.

2.2 Normas protetivas à mulher encarcerada e sua entidade familiar

Para além da atenção e cautela transmitida pela constituição à mulher presidiária e sua família, é forçoso reconhecer que as legislações infraconstitucionais também despertaram um olhar especial para a temática em comento.

De redações minuciosas a projeções mais amplas, as legislações esparsas também vêm trabalhando com afinco a questão da manutenção da entidade familiar da mulher encarcerada. Desta forma, há de se notar que a diversidade de normativas versando sobre a referida matéria sugere veementemente que os direitos por elas tutelados somente atingirão um patamar de concretude quando houver uma aplicação sistemática das legislações, sobretudo porque essas se complementam.

Nesse sentido, cumpre explorar algumas dessas legislações, as quais disciplinam garantias das mulheres presas e de suas famílias, a partir do reconhecimento de que o sistema penitenciário deve se adequar às realidades do gênero feminino, a exemplo da maternidade.

Uma delas é a Lei nº 7.810, de 11 de junho de 1984, também conhecida como Lei de Execução Penal (LEP), a qual consiste no arcabouço normativo responsável por regulamentar, em sentido amplo, a forma como deve ser efetivada a sanção penal imposta a um determinado agente20, incluindo a pessoa presa provisoriamente21, não importando se tal condição derivar de uma prisão temporária, em flagrante ou preventiva.

20

NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Execução Penal. Rio de Janeiro: Forense, 2018. p. 17.

21

Nos moldes do parágrafo único do artigo 2º da Lei 7.810/84: “Esta Lei aplicar-se-á igualmente ao preso provisório e ao condenado pela Justiça Eleitoral ou Militar, quando recolhido a estabelecimento sujeito à jurisdição ordinária.”

(23)

No que diz respeito à mulher encarcerada e a manutenção de seu vínculo familiar, a lei ora em comento adotava uma postura omissa, tão somente assegurando a mulher direitos comuns a qualquer detento22. Todavia, a partir das alterações promovidas pelas Leis de nº 11.942, de 28 de maio de 2009, e nº 12.121, de 15 de dezembro de 2009, algumas garantias relevantes foram traçadas, as quais constituem significativas conquistas das mulheres em condição de privação de liberdade.

Em termos de assistência à saúde, foi acrescentado o § 3º ao artigo 14, o qual aduz que a mulher presa ou internada de caráter preventivo e curativo tem direito a acompanhamento médico, sobretudo no período pré-natal e no pós-parto, devendo tal acompanhamento ser estendido ao recém-nascido.

Ocorre que, no plano prático, tal disposição normativa colide na ínfima quantidade de ginecologistas e médicas (os) especializados na saúde da mulher à disposição nos presídios femininos brasileiros, quantidade essa que está muito aquém da necessidade das mulheres encarceradas23.

Para Norberto Avena24, não obstante a previsão transcrita acima ser esperada e necessária, sua dicção normativa em muito se distancia da obtenção de concretude em razão da falta de estrutura dos estabelecimentos penais.

Sob esse prisma dos estabelecimentos prisionais propriamente ditos, imperioso mencionar o artigo 83, § 2º e o artigo 89, seu parágrafo único e incisos. Conforme estabelece o parágrafo segundo do artigo 83, os estabelecimentos penais femininos devem possuir berçários para que as presas possam cuidar de seus filhos e, inclusive amamentá-los, no mínimo, até seis meses de idade.

Por seu turno, o caput do artigo 89 impôs a obrigatoriedade de as penitenciárias destinadas às mulheres contarem com uma seção para gestante e parturiente, bem como com creche para abrigar as crianças maiores de seis meses e menores de sete anos, no intuito de amparar o infante cuja responsável se encontra presa.

Em seguimento, o parágrafo único do artigo 89 e seus incisos enunciaram os requisitos necessários à seção e à creche anteriormente mencionadas, quais sejam: i) atendimento por pessoal qualificado, de acordo com as diretrizes adotadas pela legislação

22 PIRES, Adriana. Precisamos falar sobre as mães em cárcere. 2016. Disponível em:

https://canalcienciascriminais.com.br/precisamos-falar-sobre-as-maes-em-carcere/. Acesso em: 07 ago. 19.

23

RIGHTS, Conectas Human. 10 Measures for the prison system. 2017. Disponível em: https://www.conectas.org/en/news/10-measures-for-the-prison-system. Acesso em: 07 ago. 19. 24

(24)

educacional e em unidades autônomas; e ii) horário de funcionamento que assegure a melhor assistência à criança e à sua responsável.

Novamente, denota-se que tais disposições normativas não condizem com a realidade da maioria dos presídios femininos no Brasil. De fato, conforme será esmiuçado no terceiro capítulo, o sistema penitenciário não acompanhou o vertiginoso crescimento da população prisional feminina e sua inadequação estrutural reforça um quadro de desigualdades de gênero25.

Ademais, também convém mencionar o Decreto-Lei nº 3.869, de 03 de outubro de 1941, a saber o Código de Processo Penal (CPP). Das lições de Walter Nunes da Silva Júnior, depreende-se que o código ora em comento foi inspirado na ideologia que norteava a Itália fascista, a qual conduziu a formação de um processo penal brasileiro como instrumento de consolidação da força repressiva do Estado26.

Outrossim, também é digno de nota que a legislação em questão não foi objeto de debate no Congresso Nacional, uma vez que o CPP foi inserido no ordenamento jurídico pátrio pela forma de Decreto-Lei. Ou seja, o aludido decreto foi aprovado por mero decurso de prazo, sem ter ocorrido discussão parlamentar a respeito de suas respectivas disposições27.

A soma dos fatores mencionados impulsionou diversas reformas tópicas ao longo das constituições brasileiras, mormente com o advento da Constituição Federal de 1988, cujo teor introduziu delineações garantistas e demandou uma indispensável releitura do CPP28. Não obstante as constantes alterações, o CPP ainda resta eivado de diversos vícios, sendo um dos mais preocupantes deles a influência do sistema inquisitivo29.

25

DIUANA, Vilma et al. Direitos reprodutivos das mulheres no sistema penitenciário: tensões e desafios na transformação da realidade. Cien Saude Colet 2016; no prelo.

26SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. Curso de Direito Processual Penal: Teoria

(Constitucional) do Processo Penal. 2. ed. Natal: Owl Editora Jurídica, 2015. p. 117-118. 27 Ibidem, p. 116.

28

Ibidem, p. 120-121. 29

Nas palavras de Foucalt, o sistema inquisitivo é aquele em que o processo criminal se desenvolve sem a participação efetiva do acusado, sem que ele conheça a acusação, as imputações, os depoimentos e as provas. Por seu turno, Aury Lopes Jr. tenta sintetizar o sistema inquisitivo ou inquisitório como uma disputa desigual entre um juiz-inquisidor e, essencialmente, enviesado e o acusado. De fato, para a maior parte da doutrina, o sistema inquisitivo é marcado pela não dissociação das figuras de investigador, acusador e julgador, uma vez que todas serão representadas pelo magistrado. Na presente pesquisa, o sistema inquisitivo voltará a ser abordado em capítulos subsequentes. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. Trad. Raquel Ramalhete. 34. ed. Petrópolis: Vozes,

(25)

Em razão de tal cenário, algumas temáticas extremamente relevantes ainda carecem de uma abordagem mais profunda no CPP, a exemplo da proteção aos direitos da mulher presa e de sua entidade familiar. Todavia, necessário se faz trazer à baila as tutelas já dispostas no CPP à mulher encarcerada e seu núcleo familiar.

Desta forma, a tutela contida no CPP se revela, inicialmente, a partir dos incisos IV e V, os quais foram objetos, respectivamente, de modificação e inclusão, ao artigo 318 pela Lei nº 13.257, de 08 de março de 2016, também conhecida como Estatuto da Primeira Infância30. Da leitura de tais dispositivos, extrai-se o entendimento de que o juiz pode

substituir a prisão preventiva pela prisão domiciliar, nas hipóteses em que a acautelada preventivamente é uma mulher gestante e/ou com filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos.

Sucede que o caput do artigo 318 aduz que o juiz poderá efetuar a conversão acima mencionada, razão pela qual foi inaugurada evidente controvérsia a respeito da interpretação adequada para o termo poderá. Uma parcela da doutrina e da jurisprudência defendia que o artigo em questão deveria ser interpretado pela sua literalidade, cabendo ao juiz decidir, casuisticamente, se a mulher presa preventivamente teria direito à benesse.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) se filiou a essa vertente, conforme demonstra o julgamento do Recurso Ordinário em Habeas Corpus 74.933 MT31,

2007. p. 32 e LOPES JUNIOR., Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, vol. 1, p. 61

30 Tal alteração ganhou repercussão devido ao desenrolar do caso Adriana Ancelmo, mulher do ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral. Isso porque Adriana estava cumprindo prisão provisória no Complexo Penitenciário de Gericinó/RJ, quando obteve a conversão de sua prisão preventiva em domiciliar, com amparo na Lei 13.257/16. A obtenção do benefício motivou uma intensa discussão sobre a ausência de isonomia da aplicação da mencionada lei, uma vez que sua incidência não era idêntica em relação a mulheres ricas e pobres. O Caso Adriana Ancelmo também voltará a ser discutido em capítulo subsequente.

31 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. “(6. Turma) RHC 74.933/MT. RECURSO

ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. CORRUPÇÃO DE MENOR (I) PRISÃO EM FLAGRANTE CONVERTIDA EM PREVENTIVA. DECRETO

FUNDAMENTADO. GRAVIDADE CONCRETA. MODUS OPERANDI.

ENVOLVIMENTO DE CRIANÇA. PROTEÇÃO DA ORDEM PÚBLICA. (II) PRISÃO DOMICILIAR. DOIS FILHOS MENORES. ESTATUTO DA PRIMEIRA INFÂNCIA. NOVAS DISPOSIÇÕES DO ART. 318 DO CPP. INCABÍVEL. EXCEPCIONALIDADE NÃO EVIDENCIADA. (III) DESPROPORCIONALIDADE DA CUSTÓDIA PROVISÓRIA À PENA DECORRENTE DE EVENTUAL CONDENAÇÃO. INVIÁVEL A CONCESSÃO DA ORDEM POR PRESUNÇÃO. (IV) CONDIÇÕES PESSOAIS FAVORÁVEIS. IRRELEVÂNCIA. (V) CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO CONFIGURADO [...] Recorrente: Ingrid Carvalho Kattwinkel. Recorrido: Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso. Relator: Min. Antônio Saldanha Palheiro, 18 de outubro de 2016.” Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=201602185901&dt_publicac ao=10/11/2016. Acesso em: 09 ago. 2019.

(26)

oportunidade na qual a aludida corte superior assumiu a posição de que, mesmo quando verificadas as condições objetivas em lei, o julgador não tinha o dever de determinar o cumprimento da prisão preventiva em custódia domiciliar. Ou seja, para o STJ, o verbo

poderá disposto no caput do artigo 318 do CPP não devia ser interpretado como uma

obrigação judicial.32

Doutra banda, havia a corrente defensora da conversão enquanto um direito subjetivo da mulher encarcerada preventivamente. Isto é, sustentava-se que - caso preenchidas as condições de um dos dois incisos elencados - a presa preventiva faria jus ao benefício referido.

Compondo esta corrente, Badaró ressaltava que o termo poderá, utilizado no

caput do artigo 318 do CPP, deve ser interpretado como deverá, não podendo a conversão

depender da discricionariedade do julgador33. Integrando a mesma corrente, Fauzi Hassan Choukr argumentava que aspectos como a gravidade do crime em abstrato não podiam amparar o indeferimento da concessão da conversão da prisão preventiva em domiciliar34.

Diante de tamanho dissenso, o STF fixou o parâmetro da temática com o julgamento do Habeas Corpus Coletivo nº 143.641/SP. Nessa ocasião, a Corte Suprema concedeu a ordem pleiteada coletivamente35, determinando que a regra seria a conversão da prisão preventiva em prisão domiciliar de todas as mulheres presas gestantes, puérperas ou mãe de crianças com até 12 anos sob sua guarda ou pessoa com deficiência. O STF pôs a salvo apenas as hipóteses nas quais os crimes tinham sido supostamente cometidos mediante violência ou grave ameaça, bem como contra os descendentes da acautelada preventivamente. Ainda, a conversão também não incidiria em situações excepcionalíssimas, mas, ainda assim, a denegação do benefício dependeria de uma devida fundamentação pelo julgador.

32 Exaram o mesmo entendimento: STJ, RHC 73.914/SP, 5ª T., rel. Min. Felix Fischer, j. 20-10-2016, DJe de 21-11-2016; STJ, HC 359.302/SP, 6ª T., rel. Min. Nefi Cordeiro, j. 8-11-2016, DJe de 21-11-2016.

33

BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Processo Penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p.1043.

34

CHOUKR, Fauzi Hassan. Código de Processo Penal: comentários consolidados e crítica jurisprudencial. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 664.

35

O ministro Edson Fachin apresentou divergência em relação à concessão do aludido Habeas Corpus. Argumentou, em síntese, que o estado de coisas inconstitucional no sistema prisional brasileiro não autorizava a automática concessão da prisão domiciliar e, em razão disso, afirmou que tal concessão deveria ser antecedida de uma análise do caso concreto e do melhor interesse da criança.

(27)

Mesmo com a concessão da ordem do aludido remédio constitucional, diversas decisões judiciais continuavam a optar pelo indeferimento da conversão da prisão preventiva em domiciliar. Nesta conjuntura, sobreveio a Lei 13.769, de 19 de dezembro de 2018, que incluiu os artigos 318-A e 318-B no CPP36, buscando positivar parte dos termos estabelecidos no Habeas Corpus nº 143.641, de 2018.

Sendo assim, enquanto o artigo 318-A e seus incisos previram as hipóteses e as exceções da conversão da prisão preventiva em domiciliar, o artigo 318-B dispôs que tal substituição poderia ser efetivada sem prejuízo da aplicação simultânea das medidas alternativas previstas no artigo 319 do CPP.

Com efeito, a substituição da prisão preventiva pela prisão domiciliar passou a não mais habitar um campo de dúvida, tendo em vista o uso do verbo “será” no caput do artigo 318-A, o qual, por sua vez, passou a indicar a conversão como uma obrigação legal do julgador37. Isto é, findou determinado que no caso das mulheres gestantes, mães e/ou responsáveis por crianças ou pessoas com deficiência, a conversão da prisão preventiva em domiciliar é a regra, devendo ser excepcionadas tão somente as situações contidas nos incisos I e II do artigo 318-A do CPP38.

De mais a mais, a lei em apreço deixou de elencar como ressalva o que o STF previu como situações excepcionalíssimas, as quais – segundo a decisão da Corte Suprema - poderiam amparar a denegação do benefício em questão se o julgador apresentasse uma fundamentação para tanto. Nota-se que tal ato foi uma clara escolha do legislador a partir da percepção de que o termo mencionado possibilitou decisões arbitrárias do Poder Judiciário.

36Art. 318-A. A prisão preventiva imposta à mulher gestante ou que for mãe ou responsável por

crianças ou pessoas com deficiência será substituída por prisão domiciliar, desde que: I - não tenha cometido crime com violência ou grave ameaça a pessoa;

II - não tenha cometido o crime contra seu filho ou dependente.

Art. 318-B. A substituição de que tratam os arts. 318 e 318-A poderá ser efetuada sem prejuízo da aplicação concomitante das medidas alternativas previstas no art. 319 deste Código. (grifo acrescido)

37

MOURA, Gina Kerly Pontes; ROCHA, Jorge Bheron; LANDIM, Maria Noêmia Pereira. Tribuna da Defensoria: Indeferimentos de prisão domiciliar devem ser revistos. 2019. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-jan-01/indeferimentos-prisao-domiciliar-revistos-lei. Acesso em: 13 ago. 2019.

38

É válido salientar que as situações dos incisos I e II do artigo 318-A do CPP não impedem a aplicação da prisão domiciliar definitivamente. Em verdade, essas exceções apenas não permitem que a concessão da prisão domiciliar seja feita de forma automática, a exemplo do que acontece com as mulheres acauteladas preventivamente que se enquadram, na íntegra, do que consta no caput do dispositivo mencionado.

(28)

Também merece destaque a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 - a saber o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – cujo precípuo objetivo é assegurar absoluta prioridade às crianças e aos adolescentes. No que diz respeito à proteção conferida à mulher presa e sua entidade familiar, o ECA delineou importantes diretrizes normativas, as quais se encontram, em sua maioria, dispostas no capítulo I - Do Direito à vida e à

Saúde, do título II, referente aos direitos fundamentais.

Nesse viés de tutela, cabe realçar alguns dispositivos do referido diploma legal. Sendo assim, dispõe o caput do artigo 8º que deve ser garantido o acesso aos programas e às políticas de saúde da mulher e de planejamento reprodutivo a todas as mulheres. Mais especificamente em relação às gestantes, o mesmo dispositivo preleciona o dever de se assegurar uma nutrição adequada, atenção humanizada à gravidez, ao parto e ao puerpério e atendimento pré-natal, perinatal e pós-natal integral no âmbito do Sistema Único de Saúde.

Tais compromissos foram instituídos no artigo 8º do ECA mediante a redação dada pela Lei 13.257, de 2016, o Estatuto da Primeira Infância. Ainda no que respeita ao oitavo artigo, é válido pontuar o conteúdo de seus parágrafos 4º e 5º. Nesse sentido, o parágrafo quarto atribui ao poder público a responsabilidade de promover assistência psicológica à gestante e à mãe, no período pré e pós-natal, até mesmo como maneira de prevenir ou minorar as consequências do estado puerperal.

Já o parágrafo quinto esclarece que assistência do parágrafo quarto também deverá ser prestada a gestantes e mães que pretendem entregar seus filhos para adoção, assim como a gestantes e mães que estão em condição de privação de liberdade.

Lançando mão de uma análise sistemática, é possível compreender que o § 5º emerge com o escopo de complementar o § 4º, universalizando a abrangência da garantia à assistência psicológica à gestante e à mãe, no período pré e pós-natal. Noutras palavras, o § 5º, com a redação conferida pelo Estatuto da Primeira Infância, vem esclarecer que que o teor do parágrafo antecedente também deve incidir nas situações de gestantes e mães que manifestem interesse em entregar seus filhos para adoção, bem como de gestantes e mães que se encontrem presas.

É válido salientar que, segundo estudos efetuados por professores da Universidade de Harvard, a ausência de experiências comuns às pessoas, bem como de

(29)

suporte psicológico na infância ocasionam danos ao desenvolvimento da criança39. Isso se deve ao fato de que todos os seres humanos devem passar pela denominada experiência

compartilhada, a qual representa uma importante etapa do desenvolvimento sensorial e

emocional.

Os estudos indicaram que o afeto vivenciado nessa experiência é imprescindível para a formação de pessoas saudáveis e aptas a estabelecerem relações sociais significativas. Transpondo tal pesquisa para o cenário das mulheres presas e suas entidades familiares, uma conclusão se faz evidente: a segregação da mãe e seu descendente, quer seja no presídio ou em entidades de acolhimento institucional, tem potencial para causar danos irreversíveis às crianças.

Em seguimento, cumpre analisar o teor do § 10º do artigo 8º, incluído pelo Estatuto da Primeira Infância. Sendo assim, observa-se que o parágrafo citado atribui ao poder público a responsabilidade de assegurar uma ambiência adequada à gestante e à mulher com filho na primeira infância40 que se encontrem sob custódia em unidade de privação de liberdade. Cautelosamente, consta no dispositivo ora em discussão que a ambiência às mães presas deve se atender às normas sanitárias e assistenciais do Sistema Único de Saúde para o acolhimento do filho, em articulação com o sistema de ensino competente.

Por sua vez, o artigo 9º do ECA determina que o poder público, as instituições e os empregadores têm a responsabilidade de proporcionar condições adequadas ao aleitamento materno, inclusive aqueles que são filhos de mães sujeitas à medida privativa de liberdade.

Nesse ponto, cabe mencionar que o aleitamento materno estabelece relação direta com o crescimento saudável dos bebês. Em reforço a esta assertiva, registra-se a orientação disposta no Caderno de Atenção Básica de nº 23, o qual desde o ano de 2009 revela a preocupação referente à manutenção do aleitamento materno, recomendando de que mãe e bebê permaneçam juntos por, no mínimo, dois anos.

Mais precisamente, no aludido documento, é feita a menção de que tanto a Organização Mundial de Saúde (OMS), quanto o Ministério da Saúde recomendam aleitamento materno exclusivo por seis meses e complementado até os dois anos ou mais.

39

NELSON, Charles A., FOX, Nathan A. e ZEANAH, Charles H. Romania’s Abandoned Children: Deprivation, Brain Development, and the Struggle for Recovery. Cambridge: Harvard Univ. Press, 2014.

40

Segundo o artigo 2º da Lei 13.257, de 08 de março de 2016, a primeira infância compreende os primeiros 6 (seis) anos completos ou 72 (setenta e dois) meses de vida da criança.

(30)

Além disso, em sede do mesmo documento, é pontuado que, mesmo no segundo ano de vida da criança, o leite materno continua a ser importante fonte de nutrientes. A estimativa seria a de que dois copos (500ml) de leite materno no segundo ano de vida seriam os responsáveis por fornecer 95% das necessidades de vitamina C, 45% das de vitamina A, 38% das de proteína e 31% do total de energia. Ademais, o leite materno também protegeria o infante contra doenças infecciosas.41

Por fim, outro dispositivo do ECA que merece ser destacado é o art. 19, § 4º, o qual foi incluído pela Lei 12.962, de 08 de abril de 2014, e versa sobre o direito de visitas. Especificamente, o referenciado artigo determina que a convivência da criança e do adolescente com a mãe ou o pai que se encontra privado de liberdade deve ser mantida mediante visitas periódicas promovidas pelo responsável ou pela entidade responsável nos casos de acolhimento institucional, a despeito de autorização judicial.

Outro instrumento normativo de extrema relevância para a temática em questão é a Lei nº 13.257, de 08 de março de 2016, também conhecida como Lei da Primeira Infância ou Marco Legal da Primeira Infância, a qual foi criada com a finalidade de conferir um amparo especial aos primeiros seis anos de vida do desenvolvimento infantil e do ser humano, o que – conforme reportado anteriormente – corresponde a denominada primeira infância. Para tanto, o arcabouço normativo em questão prevê programas, políticas públicas, serviços e iniciativas que buscam promover o desenvolvimento integral dos infantes compreendidos na faixa etária citada42.

Do mesmo modo, tal lei promoveu modificações no CPP43 e no ECA, as quais foram significativas para a tutela da mulher presa e de sua entidade familiar, conforme explicitado em tópicos anteriores. Neste ponto, há de se reconhecer que a Lei da Primeira Infância também evocou a displicência com a qual é tratada a mulher presa e sua família. Acerca desse aspecto em específico, é válido trazer à tona uma reflexão contida logo no capítulo inaugural do livro Pela Liberdade: a história do habeas corpus coletivo

41 BRASIL, Ministério da Saúde. Saúde da Criança. Aleitamento Materno e Alimentação Complementar. 2015. (Cadernos de Atenção Básica, nº 23). Disponível em: http://189.28.128.100/dab/docs/portaldab/publicacoes/saude_crianca_aleitamento_materno_ca b23.pdf. Acesso em: 15 ago. 19.

42

SÁNCHEZ, Alexandra et al. Pela liberdade: a história do habeas corpus coletivo para mães & crianças. São Paulo: Instituto Alana, 2019.

43

Para além da alteração disposta no tópico 2.2.3, a Lei da Primeira Infância estabeleceu - nos artigos 6º, X; 185, § 10º e 304, § 4º, todos do CPP - a necessidade de se averiguar se a pessoa presa possui filho, sobretudo em três momentos: i) assim que a autoridade policial tiver conhecimento da prática de infração penal; ii) no interrogatório; e iii) na lavratura do auto de prisão em flagrante.

(31)

para mães & crianças44, referente à aplicação da lei em discussão. Sendo assim, é posto em evidência na aludida obra o fato de que o acompanhamento da aplicação da Lei da Primeira Infância escancarou uma dupla recusa do Poder Judiciário brasileiro. A primeira recusa seria justamente o reconhecimento do cenário do sistema penitenciário nacional e a consequente ilegalidade de se decretar prisão preventiva a mulheres gestantes ou mães de crianças. Já a segunda seria a recusa atrelada a negativa de eficácia aos estabelecido45

. Dessarte, constata-se que a Lei da Primeira Infância pôs em evidência o conflito existente entre o direito do Estado de punir aquela mulher que comete um determinado delito e o direito de uma criança ter um desenvolvimento saudável - cuja garantia configura um dever estatal – durante sua primeira infância, na companhia de sua respectiva genitora46.

Em síntese, a lei sinalizou a clara necessidade de se empreender um esforço intersetorial para que restassem garantidos os direitos das crianças de mães encarceradas, voltando sua preocupação à primeira infância que carece, em razão de sua essência, uma atenção mais qualificada e sensível às peculiaridades da idade.

Ainda, cabe destacar a norma supralegal de maior impacto no que atine ao trato da mulher no cárcere e sua respectiva manutenção de laços familiares: as Regras Mínimas da ONU para o Tratamento de Mulheres Presas e Medidas Não Privativas de Liberdade para Mulheres Infratoras, do ano de 2010, ou, simplesmente, Regras de Bangkok.

A origem de tais regras proveio de uma legítima preocupação da Organização das Nações Unidas (ONU) com o vertiginoso crescimento da população feminina encarcerada, assim como as constantes violações de direitos das mulheres em situação de privação de liberdade, incluindo aqui a dificuldade de manutenção de suas respectivas entidades familiares47.

44 Tal obra é composta por artigos de diversos especialistas de organizações que participaram e/ou contribuíram para o julgamento do Habeas Corpus Coletivo nº 143.641, de 2018, pelo STF. 45

SÁNCHEZ, Alexandra et al. Pela liberdade: a história do habeas corpus coletivo para mães & crianças. São Paulo: Instituto Alana, 2019. p. 8.

46 BRASIL, Mesa da Câmara dos Deputados. Avanços do Marco Legal da Primeira Infância.

2016. Disponível em:

https://www2.camara.leg.br/a-camara/estruturaadm/altosestudos/pdf/obra-avancos-do-marco-legal-da-primeira-infancia. Acesso em: 27 ago. 19.

47

Ainda no ano de 2004, mediante requisição da ONU, a defensora dos direitos humanos Florizette O’Connor realizou um estudo sobre mulheres encarceradas. Após finalizada a pesquisa, a estudiosa elencou algumas dificuldades referentes ao convívio de mães presas e seus filhos. A título exemplificativo, menciona-se: i) a distância das prisões da residência da família das mulheres reclusas, o que aumentava as chances de abandono da família; ii) a dificuldade de contato físico entre mãe filhos; e iii) a submissão de crianças a revistas aviltantes. O’CONNOR, Florizelle. UN Sub-Commission on the Promotion and Protection of Human Rights,

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Na seara internacional, o documento em discussão representa a principal baliza normativa que versa sobre as necessidades e particularidades de gênero no cárcere, abarcando tanto a execução penal propriamente dita, quanto a valorização de medidas que evitem o ingresso das mulheres no sistema carcerário.

No Brasil, as Regras de Bangkok foram oficialmente traduzidas e publicadas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) no ano de 2016, o que simbolizou um inegável avanço no que se refere à problemática em apreço. Diante da proposição de um tratamento diferenciado às mulheres no ambiente carcerário, as regras em questão buscam preservar, dentre outros direitos, o direito ao exercício da maternidade pelas mulheres presas.

Sob esse prisma, algumas das Regras de Bangkok ganham uma maior notoriedade. Uma dessas regras é a Regra de nº 2, a qual concebe a necessidade de haver uma especial cautela com a mulher presa desde sua entrada no sistema penitenciário. Tal regra prevê que a mulher encarcerada estará numa condição de vulnerabilidade e deve receber todas as devidas orientações sobre o funcionamento do presídio em si e de seu regime prisional, assim como devem poder contatar seus familiares e terem acesso à assistência jurídica.

Essa mesma regra dispõe que a mulher sujeita à privação de liberdade, antes ou no momento de seu ingresso num determinado presídio, deve ter a oportunidade de definir com quem deixará seus filhos enquanto estiver presa, ou ainda, tem o direito de ter sua prisão suspensa por um período razoável para que possa tomar a aludida decisão.

Logo em seguida, a Regra de nº 3 consubstancia a indispensabilidade dos registros do número e dos dados pessoais dos(as) filhos(as) das mulheres encarceradas. Isto é, a referida disposição normativa assegura que, no momento da inclusão da mulher na prisão, deve-se realizar uma catalogação da informação sobre a existência de filhos no prontuário da detenta, devendo constar menção à localização e situação de custódia ou guarda dos infantes, nas hipóteses em que não acompanharem a mãe.

Por seu turno, a Regra de nº 5 demonstra um olhar voltado à adequação estrutural do presídio e provisão de utensílios fundamentais à mulher e à mulher que é mãe. Nesta regra, resta determinado que o alojamento das mulheres presas tem de contar com

Administration of Jutice, Rule of Law and Democracy Working paper by Florizelle O’Connor on the issue of women in prison. 9 July 2004. Disponível em: https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G04/148/57/PDF/G0414857.pdf?OpenElement. Acesso em: 31 ago. 2019.

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instalações e materiais aptos a satisfazerem aspectos de higiene, bem como que tem de haver fornecimento de um suprimento regular de água para fins de cuidados especiais da reclusa.

Em seguimento, a maternidade da mulher presa também é protegida no teor das Regras nº 22 e 24, as quais alicerçaram barreiras em relação às punições à mãe presa. Na Regra de nº 22, há a proibição de incidência de sanções de isolamento ou segregação a mulheres gestantes, com filhos (as) ou em período de amamentação. Já a Regra de nº 24 proíbe o uso de instrumentos de contenção nas mulheres presas durante o parto e no período imediatamente posterior.

Além das regras mencionadas, também merece realce a Regra de nº 42 que é responsável por disciplinar uma maior flexibilização no regime penitenciário para as mulheres gestantes, lactantes e mulheres com filhos (a). Segundo o comando normativo em exame, devem ser oferecidos serviços e instalações para o cuidado das crianças, bem como as condições demandadas para uma prisão mais digna e humanizada para a mãe.

Um pouco mais à frente nas Regras de Bangkok, a Regra de nº 52 aborda o momento de separação da criança e sua mãe, ou seja, a remoção da criança da prisão. A referida regra disciplina o papel do Estado nesse cenário, o qual terá o dever de facilitar o encontro da genitora e seus filhos mediante visitas, sempre que as visitas forem condizentes ao melhor interesse da criança.

Ainda, há de se salientar o conteúdo compreendido na Regra de nº 64. Isso porque esse conteúdo traduz um dos objetivos precípuos das Regras de Bangkok, a saber a minoração do encarceramento feminino. Segundo a Regra de nº 64, a pena de prisão não pode ser regra para as mulheres gestantes e/ou com filhos (as) dependentes, mas sim somente poderá ser considerada diante de crimes graves e/ou violentos, ou ainda, quando a mulher que será sujeita a privação de liberdade representar uma ameaça contínua, devendo ser garantido o melhor interesse da criança.

Diversas outras regras do aludido documento também têm o propósito de proteger a mulher presa e sua entidade familiar, todavia as regras aqui explicitadas já ilustram suficientemente a existência de variadas vertentes de proteção e preocupação com a temática.

Sucede que apesar de as Regras de Bangkok materializarem um evidente avanço em relação à questão ora em discussão, a realidade enfrentada pelas mulheres encarceradas é contrastante e não pode ser ignorada. Consoante deslinda Heidi Ann

(34)

Cerneka48, a despeito de as Regras de Bangkok não possuírem caráter obrigatório para o Brasil, elas devem ser devidamente respeitadas, pois o Estado brasileiro é membro da ONU.

Por fim, é preciso tratar da Lei nº 13.434, de 12 de abril de 2017, também conhecida como Lei do Uso de Algemas. Primeiramente, convém mencionar que Francesco Carnelutti, em sua obra As Misérias do Processo Penal, concebeu as algemas como um símbolo do direito, talvez ainda mais expressivo que a balança e a espada, afinal as algemas representam a aspiração do direito de nos atar as mãos49.

Ainda hoje, esse símbolo do direito continua sendo posto em xeque e a lei em referência tem justamente esse papel. Nesse ensejo, a Lei nº 13.434, de 2017, acrescentou o parágrafo único ao artigo 292 ao CPP, estabelecendo a vedação do uso de algemas em mulheres grávidas durante o parto e em mulheres durante a fase de puerpério imediato50. Cumpre asseverar que mesmo antes do advento da referida lei, o uso de algemas em mulheres que estivessem em trabalho de parto não merecia respaldo. Isso porque, desde o ano de 2008, a Súmula Vinculante nº 11 já vigia como baliza para o referido tema, tendo sido disciplinado pelo STF que o uso de algemas somente seria considerado lícito nos casos de resistência à prisão e fundado de receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiro, devendo a excepcionalidade ser justificada por escrito em todos os casos.

Ora, é inegavelmente improvável que uma mulher em trabalho de parto ofereça risco de fuga e/ou possa protagonizar situações de perigo à integridade física própria ou de terceiros, razão pela qual o uso de meios de contenção se revela demasiadamente infundado51.

Além da súmula anteriormente citada, foi aprovado o Decreto de nº 8.858, de 16 de setembro de 2016, o qual regulamentou o artigo 199 da LEP, consolidando a vedação

48 CERNEKA, Heidi Ann. Homens que menstruam: Considerações acerca do sistema prisional às especificidades da mulher. 2009. p. 66 Disponível em: http://www.domhelder.edu.br/revista/index.php/veredas/article/view/6. Acesso em: 28 ago. 2019.

49 CARNELUTTI. Francesco. As misérias do processo penal. Trad. José Antônio Cardinalli. 6.ed. Campinas: Bookseller, 2005. p. 24.

50“Art. 292, Parágrafo único. É vedado o uso de algemas em mulheres grávidas durante os atos médico-hospitalares preparatórios para a realização do parto e durante o trabalho de parto, bem como em mulheres durante o período de puerpério imediato.”

51

ANDRADE, Luana Helena de Paula Drummond de. O Sistema Prisional Feminino e a Maternidade. 2017. 72 f. TCC (Graduação) - Curso de Instituto de Ciências da Sociedade Curso de Direito, Universidade Federal Fluminense, Macaé, 2017.

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do uso de algemas durante o parto, o período de amamentação e durante a transferência da mulher da penitenciária para a unidade hospitalar.

Outrossim, a Lei nº 13.434, de 2017 acabou por reverenciar outras disposições anteriores que já vedavam a utilização de instrumentos de contenção em mulheres em trabalho de parto, a exemplo da resolução do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) de 201252, e as já anunciadas Regras de Bangkok, especificamente a Regra de nº 24.

Ademais, é notório que a Lei do Uso de Algemas prestigia o já citado princípio da dignidade da pessoa humana - o qual constitui um dos fundamentos do Estado democrático brasileiro, disposto no artigo 1º, III da Constituição Federal -, pois busca a realização de um parto humanizado e digno. Neste contexto, a coordenadora do Observatório da Mulher contra a Violência, do Senado Federal, Roberta Viégas, ressalta a importância da lei em comento para que seja assegurada uma fundamental liberdade física no trabalho de parto53.

Indubitavelmente, a aludida lei tem a intenção de dirimir a inquietante prática de realização de partos com gestantes algemadas e sua relevância se valida quando aliada a dados sobre a temática. A exemplo disso, no ano de 2017, a Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz) lançou a pesquisa intitulada Nascer nas prisões: gestação e parto

atrás das grades no Brasil54 - efetuada mediante entrevistas com 241 (duzentas e quarenta uma) mães presas entre 2012 e 2014 -, a qual já indicava que mais de um terço das mulheres presas grávidas tinham dado à luz algemadas55.

52 BRASIL, Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. Resolução Nº- 3, de 1º de

Junho de 2012. Disponível em:

http://depen.gov.br/DEPEN/depen/cnpcp/resolucoes/2012/resolucaono3de1odejunhode2012.p df. Acesso em: 01 set. 2019.

53

FEDERAL, Senado. Fique por Dentro da Lei: Lei proíbe uso de algemas em grávidas durante trabalho de parto: Rádio Senado. 2018. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/radio/1/conexao-senado/fique-por-dentro-da-lei-lei-proibe-uso-de-algemas-em-gravidas-durante-trabalho-de-parto. Acesso em: 01 set. 19.

54

LEAL, Maria do Carmo et al. Nascer na prisão: gestação e parto atrás das grades no Brasil. 2016. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csc/v21n7/1413-8123-csc-21-07-2061.pdf. Acesso em: 01 set. 19.

55

Amparado em tal pesquisa, foi produzido o seguinte documentário: Nascer nas prisões : gestar, nascer e cuidar. Direção de Bia Fioretti. Presídios Femininos do Brasil. Local: [S.L.] Videosaúde Distribuidora da Fiocruz, 2017. (24min25s)

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