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CAPÍTULO III – O EU CRIADOR

1. Amar a si mesmo

1.2 Destinos ideais

O momento do narcisismo implica muito mais em uma incidência da projeção narcísica dos adultos com suas expectativas na criança do que uma disposição inata do infante. Daí o lugar fundamental do outro nesse projeto. É quem deposita o investimento nesse amontoado multiforme de afetos, intensidades e necessidades e que, agindo assim, introduz a organização.

Na expectativa do outro encontramos a “nova ação psíquica” 30, o investimento alheio, aquilo que é necessário inserir no psiquismo para que o corpo pulsional multiforme se organize em uma unidade. Assim, o arranjo cria uma imagem unificada de si, pela qual o sujeito se reconhece ao mesmo tempo em que cria contornos para o encontro com o outro. É deste modo que, para além das usuais leituras, Jordão (2002) diz que o narcisismo é fundamental posto que fala não só do investimento de si, mas na consequência que esta ação produz: um limite para o outro no psiquismo. Neste sentido o narcisismo instaura, além da experiência de unidade e do absoluto, também a alteridade, não só porque este movimento só tem inicio a partir do investimento do outro, mas também porque é o narcisismo que possibilita ao sujeito reconhecer a si enquanto unidade e, portanto, ao exterior/mundo/outro enquanto diferente.

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É uma suposição necessária, a de que uma unidade comparável ao Eu não existe desde o começo no indivíduo; o Eu tem que ser desenvolvido (Freud, 1914/2010, p. 18).

100 É preciso, então, sustentar que esse pequeno infante é construído a partir do olhar do outro, mas também dos dizeres, do modo de agir e tratar daquele, depositando nele toda sorte de esperanças e desejos, criando a imagem ideal: perfeita, imortal, onipotente, grandiosa – Sua Majestadade, o bebê.

As coisas devem ser melhores para a criança do que foram para seus pais, ela não deve estar sujeita às necessidades que reconhecemos como dominantes na vida. (...) Ela deve concretizar os sonhos não realizados de seus pais, tornar-se um grande homem ou herói no lugar do pai, desposar um príncipe como tardia compensação para a mãe (Freud, 1914b/2010, p. 25)

Se tais características revelam a posição daqueles que dão forma ao infante, projetando nele a imagem ideal, posteriormente, com a castração, o bebê relembra o estado de incompletude e desamparo diante do objeto, da necessidade do outro. Diante dessa sensação de abandono, o recurso primário é encontrar maneiras de reaver aquilo que outrora fora; recuperar sua excelência e, com ela, a satisfação. Freud indica que este caminho é o dos ideais.

Aqui, como sempre no âmbito da libido, o indivíduo se revelou incapaz de renunciar à satisfação que uma vez foi desfrutada. Ele não quer se privar da perfeição narcísica de sua infância, e se não pôde mantê-la, perturbado por admoestações durante seu desenvolvimento e tendo seu juízo despertado, procura readquiri-la na forma nova do ideal do Eu. (Freud, 1914b/2010, p. 27)

O ideal apresentado por Freud no texto de 1914 torna-se a meta privilegiada do Eu; poderíamos dizer que é a bússola pela qual o Eu guia-se em direção aos possíveis destinos para o investimento pulsional. Veremos, posteriormente, como os destinos ideais, as expectativas do super-Eu através das imagos parentais, vinculam-se com o trabalho criativo sublimatório enquanto trabalho de elaboração e luto do circuito narcísico primário, ao mesmo tempo em que reafirmam a possibilidade do Eu de existir. Por hora, atentemos para apresentação da sublimação neste momento da obra freudiana, sobretudo no que diz respeito à distinção entre a idealização do objeto e a sublimação.

Diz Freud,

A sublimação é um processo atinente à libido objetal e consiste em que o instinto [a pulsão] se lança a outra meta, distante da satisfação sexual; a ênfase recai no afastamento ante ao que é sexual. A idealização é um

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processo envolvendo o objeto, mediante o qual este é aumentado e psiquicamente elevado sem que haja transformação da sua natureza. [itálicos nossos] (Freud, 1914b/2010, p. 40)

Os dois processos são pensados a partir da libido objetal, portanto dependem da relação com o outro. Para dizer com outras palavras: o realce a ser dado aqui diz respeito à importância do objeto nesta trama. A idealização por dizer respeito ao objeto, não coloca em questão nem a pulsão nem a qualidade da libido, ou mesmo o percurso que esta energia faz para investir no objeto. Aqui o objeto não é transformado, sua natureza mantém-se a mesma. O objeto é supervalorizado, não pode e nem consegue ser substituído, caso contrário todo o investimento se perderia.

A sublimação, por sua vez, não trata de um objeto específico, não tenta recuperá-lo; é a libido objetal que precisa ser escoada independente da finalidade estar ou não próxima a satisfação sexual original. Tanto a sublimação quanto a idealização só são possíveis à medida que o Eu narcísico deixe de concentrar o investimento em si. Por isso Freud insiste na necessidade de distinguir conceitualmente idealização da sublimação, já que em ambas a libido precisa estar disponível para o investimento, tanto em um novo objeto quanto em um objeto superestimado.

Só depois de nos demorarmos no entendimento da revolução narcísica que podemos compreender o ganho que o texto de 1914 nos traz sobre o trabalho da sublimação: ao propor um modo de satisfazer a pulsão que não está diretamente ligado à um objeto, mas que está vinculado à libido objetal, o discurso freudiano nos indica que a sublimação precisa abrir mão do objeto de satisfação para que possa encontrar um novo modo de satisfazer a pulsão31.

Ainda no trabalho de 1914, em outro parágrafo, e isto é interessante de marcar, Freud nos diz o quanto o trabalho de idealização aumenta as exigências do Eu, e que por

31Bem verdade que a noção de “vivencia de satisfação” apresentada no Projeto de 1895 e na

“Interpretação dos Sonhos” de 1900 já indicava, ao seu modo, uma abstração do objeto original. Assim, na ausência do objeto o psiquismo trabalharia para produzir a satisfação, incorrendo por vezes na alucinação do objeto. É nesse sentido que a imagem do objeto assume caráter eletivo na constituição do sujeito (Laplanche & Pontalis, 2005). Ainda assim, a vivência de satisfação - seja real ou alucinatória – é vinculada à imagem do objeto de satisfação ou mesmo à imagem da ação que produziu a descarga, o que nos indica que o objeto, ainda que ausente, torna-se presentificado em sua forma original ou, na forma original da ação da descarga. Na sublimação o objeto é renunciado, o que resta é a libido objetal. Por isso é necessário criar um novo objeto, com uma nova forma, caso contrário estaríamos no campo da idealização - processo atinente ao objeto.

102 consequência, estas exigências conduzem ao aumento das repressões, pois é necessário ao Eu arranjar modos de alçar ao estatuto de ideal. A sublimação, ainda que possa ser vista como um trabalho próximo do campo do ideal, não implica no aumento das exigências contra o Eu; ao contrário, ela parece colocar a possibilidade de drible diante de tais exigências. Enfim, o que temos é uma alternativa, uma saída para as exigências da pulsão por um objeto e para a pressão dos ideais driblando o recalque.

Como vimos, a formação de um ideal aumenta as exigências do ego, constituindo o fato mais poderoso a favor da repressão; a sublimação é uma saída, uma maneira pela qual essas exigências podem ser atendidas sem envolver repressão. (Freud, 1914b/2010, p. 41)

Como se o que está posto não fosse suficiente, valeria a pena estranhar a relação que Freud estabelece entre a sublimação e a idealização. Ambas apontam, de um modo ou de outro - levando em conta as distinções metapsicológicas -, para um modelo de subjetividade valorável. Freud, ainda que distinga a sublimação da idealização do objeto, deixa transparecer que a primeira também pode ser confundida como um tipo de trabalho ideal, ou seja, como um modo de direcionar a libido que esteja hierarquicamente acima dos destinos ordinários. Não estaria aí também um ranço, uma adesão no que concerne à sublimação aos ideais postos pela Belle Époque?

Por fim, a entrada do narcisismo é fundamental para nosso estudo sobre a sublimação porque é a partir do investimento em si que Freud propõe em 1923 o segundo esquema tópico para o aparelho psíquico – esquema no qual as instâncias ideais esboçadas em 1914 teriam lugar fundamental no que diz respeito ao manejo do investimento pulsional, sobretudo com a noção de super-Eu.

Seguimos então nos direcionando para a leitura da segunda tópica, onde é instaurado o lugar do Eu e, concomitantemente, o lugar do super-Eu na teoria psicanalítica. De sorte que ao nos debruçarmos sobre essa reformulação da geografia da mente conseguiremos vislumbrar o trabalho sublimatório como o manejo das satisfações pulsionais inscritas a partir da dinâmica e dos lugares psíquicos distintos. Se levarmos em conta a formulação de Sophie de Mijolla-Mellor “Quais são as modificações tópicas, dinâmicas e econômicas que requer a sublimação?” (Mijolla- Mellor, 2011) perceberemos o quanto centralizar a leitura sublimatória a partir da questão econômica - na busca por um destino pulsional - deixa em aberto outras

103 questões. É na tentativa de responder esse questionamento que estudaremos o texto fundador da segunda tópica, “O Eu e o Id”. Depois de retornar deste mergulho poderemos, por fim, nos perguntar se as modificações tópicas, dinâmicas e econômicas vistas a partir da sublimação podem ser encontrada no cotidiano. Ou seja, uma vez entendido o modo como tais modificações ocorrem e no que elas acarretam, perguntamos se tal fenômeno psíquico manifesta-se no fazer ordinário do dia-a-dia, nos espaços cotidianos, pelo sujeito comum, ou apenas é encontrada, tal qual Freud chega a afirmar, no fazer célebre do gênio, como Leonardo da Vinci?