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Foi-voltou, jogar para elaborar: Verarbeitung

CAPÍTULO IV – ELABORAÇÃO E OS TEMPOS DA SUBLIMAÇÃO

1. Os caminhos para elaborar

1.2 Foi-voltou, jogar para elaborar: Verarbeitung

Dedicamos, é verdade, uma quantidade grande de tempo para tratar da

durcharbeitung. Esse esforço foi necessário também na medida em que o luto, processo

cuja relação com a sublimação é indicada no capítulo anterior, é também base para pensar a elaboração. Poder-se-ia dizer que esse é o paradigma para o work-through e não conseguiríamos encontrar melhor expressão do que a descrita por Mezan como “tempo de muda” (Mezan, 1998). Mas esse não é o único modelo que Freud utiliza para descrever o processo de transformação.

140 Em “Além do Princípio do Prazer” Freud descreve a brincadeira de uma criança que só posteriormente descobriríamos ser seu neto. A descrição não toma o trabalho inteiro, mas ela tornou-se paradigmática para o campo psicanalítico por que nela encontramos Freud equiparando o brincar infantil ao trabalho de elaboração.

A cena se passa da seguinte maneira: Freud observa que seu neto Ernest possuía o hábito de atirar para longe da cama os objetos pequenos que estavam ao alcance de suas mãos, logo quando sua mãe ausentava-se. Quando assim agia a criança vocalizava um arrastado “o-o-o-ó”, acompanhado de uma expressão de satisfação e interesse. A vocalização logo foi percebida como algo a mais do que uma simples interjeição, na verdade, representava a palavra alemã “fort” (foi embora).

Freud diz que acaba por compreender que se tratava de um jogo, no qual o menino utilizava seus brinquedos como apoio para jogar o “ir embora”. Note-se que esse comportamento da criança era habitual e perpetuou durante um período de tempo. No entanto, um dia Freud observa um comportamento diferente em seu neto. De posse de um carretel a criança estabeleceu outro jogo: em seu berço atira para fora o objeto repetindo a vocalização extasiada “o-o-o-ó”; logo após puxava o cordão e alegrava-se com seu reaparecimento enunciando “da” (está aqui). Com isso, pôde compreender aquilo que seu neto produzia:

Então era essa a brincadeira completa, desaparecimento e reaparição, de que geralmente via-se apenas o primeiro ato, que era repetido incansavelmente como um jogo em si, embora sem dúvida o prazer maior estivesse no segundo ato (Freud, 1920/2010, p. 172)

Temos aqui uma confusão para o entendimento do fort-da. Ao dizer que o segundo ato é o prazeroso poder-se-ia cria o entendimento de que a satisfação está no retorno do objeto. Verdade, já que há satisfação no retorno do objeto ausente. No entanto, para Freud a ação narra algo além do prazer. O ganho aqui é que o pequeno Ernest encontrava-se em uma situação passiva, nada podia fazer diante da ida de sua mãe. Mas ao transformar a sua experiência em jogo pôde repeti-la e, “ao repeti-la como jogo, embora fosse desprazerosa, assumiu um papel ativo” (Freud, 1920/2010, p. 173). O jogo aqui serve como suporte para que a vivência dolorosa assuma outras formas, reconfigurando-se a partir da repetição. Ainda que o caso seja o de “tornar-se senhor da

141 situação”, Freud não perde de vista que o jogo poderia também satisfazer o desejo da criança de vingar-se da mãe por ela ter se afastado.

Trata-se, enfim da exemplificação de uma situação de desprazer que pode ser transformada em prazer. Mas para não ficar restrito ao exemplo do jogo infantil Freud nos remete à situação teatral, onde o artista também encena uma experiência desagradável sendo essa sentida como prazer (como no caso das tragédias). O que importa é apontar que a despeito do domínio do princípio do prazer “há meios e caminhos para tornar objeto de recordação e elaboração psíquica (verarbeitung) o que é em si desprazeroso” (Freud, 1919/2010).

Note-se aqui o aparecimento da elaboração psíquica novamente. O termo, como constatamos, é outro: verarbeitung. A distinção esta no contexto ao qual o trabalho é produzido. A durcharbeitung exemplificada no contexto clínico; a

verarbeitung apresenta-se através de meios mais ordinários e cotidianos como o jogo

infantil. Hanns nos indica que o léxico alemão possui significado de: 1 – assimiliar, absorver (algo como lidar emocionalmente); 2 – processar, transformar. Além disso, Hanns nos conta que o comentário de introdução ao verbete na edição alemã Gesammelt

Werke (G.W.) associa à verarbeitung noções como “consumir através do trabalho”,

“modificar através do trabalho” e também “modificar através de ligação/conexão

(verbildung) com outros objetos”. (Hanns, 1996, p. 198-204)

O que deprendemos de nossa análise é que a verarbeitung é mais do que um mecanismo de elaboração, mas sim um trabalho de processamento, de transformações que visam à integração das experiências. Não por acaso o processo é exemplificado a partir do brincar infantil. Em primeiro lugar, porque a cena de abandono da mãe é vivida de maneira traumática - e não esqueçamos que é sobre repetições de experiências traumáticas que o texto de 1920 trata. Desse modo o jogo é a forma que a criança encontra de “lidar” com aquilo que a avassala. Em segundo, a exemplificação pelo jogo infantil e pela teatralização indica o estatuto ordinário e comum que a verarbeitung possui. Se sua prima durcharbeitung está vinculada ao campo clínico porque lida com as resistências, a verarbeitung encontra-se no dia-a-dia enquanto modo espontâneo de processar e modificar-se através do trabalho psíquico.

142 Sobre isso, Laplanche e Pontalis afirmam também que é fundamental aproximar as noções de elaboração (verarbeitung) e perlaboração (durcharbeitung). Elas não estariam tão distantes assim, já que “existe uma analogia entre o trabalho do tratamento e o modo de funcionamento espontâneo do aparelho psíquico” (Laplanche & Pontalis, 2004, p. 144).

Mas então, se essa ação é tão comum, qual o lugar do jogo nesse ato? Pois bem, o jogo é o campo onde a ação pode ocorrer. Nesse sentido é um espaço privilegiado na medida em que possibilita a repetição da ação. Daí que temos nele um formato para que a situação de repetição possa ser transformada. Com isso, o jogo ganha também um indicativo estético, tanto pelo formato que inscreve, quanto pela experiência sensível que proporciona.

Não podemos nos furtar de apontar que a própria noção de jogo nos aproxima do brincar infantil e, por conseguinte, vincula nossas indagações ao processo criativo da criança. Já analisamos anteriormente que Freud estabelece um paralelo entre o brincar e os processos criativos e não desejaríamos mais do que isso. Avançar por essa trincheira a esse momento só produziria desgaste para aquele que escreve e descrença para aquele que lê. Sabemos que a teoria psicanalítica e, sobretudo, os ditos freudianos, formam uma trama de pensamento, onde os conceitos amarram-se a outros e problemáticas se encadeiam. Talvez por isso mesmo que os trabalhos teóricos tenham esse caráter de repetição: repete-se para produzir novas ligações.

Chegamos então ao fim desta apresentação sobre as elaborações. A nosso ver existe uma relação, um fio condutor por assim dizer, entre elas: ambas descrevem a dinâmica do trabalho psíquico – ainda que em circunstâncias distintas. Desse modo, se existe um mínimo denominador comum a estes conceitos ele é a própria noção de trabalho, alavancada pelo radical presente nos dois conceitos (Verarbeitung,

Durcharbeitung) - o arbeit. Nosso estudo se coloca então não apenas sobre a noção de

elaboração, mas, sobretudo, sobre as próprias concepções de trabalho psíquico que o aparato utiliza para dar conta da força pulsional, seja vencendo as resistências que impedem o Eu de encontrar novas formas de ser; seja o próprio trabalho de inserir a pulsão livre em um jogo de ligações onde possa ser manejada. Desse modo, as elaborações são marcas do trabalho do Eu, esforço incessante de fazer algo para lidar com aquilo que abala.

143 Em “Lembranças encobridoras” Freud (1899) já nos ensinava que as moções pulsionais precisam ser ligadas a restos do escutado, a fragmentos da palavra alheia. Dessa maneira o sujeito pode encadear a pulsão às representações de modo a enunciar o próprio desejo. A palavra é o ponto de apoio por onde as tramas podem ser tecidas e para que o desejo seja enunciado. Essa também é a matriz para a construção da fantasia, modelo privilegiado de encadear e conduzir o desejo. Aqui o outro tem lugar fundamental, pois é quem oferece aquilo que é necessário para que a intensidade seja direcionada para algum lugar – nesse caso, o elemento de suporte para trabalhar a pulsão é a palavra. Interessante perceber que, tanto nas lembranças encobridoras, quanto no fort-da, é sempre preciso um elemento alheio ao Eu para que esse possa integrar e ligar a pulsão. Se em um lado é o dito, a palavra, que serve como apoio para que a ligação possa acontecer, no outro é o jogo, a brincadeira o suporte por onde a ligação se faz.

Daí também encontramos nos afazeres do Eu a dimensão estética do psiquismo, uma vez que é a partir de suas tarefas que as formas e modos de realizar o trabalho psíquico são colocadas em cena. Tal qual a sublimação, a elaboração também versa sobre um modo específico de trabalhar a pulsão, ou seja, indica uma forma, um

estilo no manejo pulsional. Neste sentido não nos distanciamos das concepções de Joel

Birman que vincula a sublimação à uma estilística da existência na medida em que possibilita ao sujeito inventar novas maneiras de se relacionar consigo e com os objetos de investimento. A referência a uma forma indica não só uma maneira, um jeito específico, mas sobretudo uma configuração. Com isso também é deslocada a própria noção de talento sublimatório, já que este diria respeito à capacidade particular e acima da média de encontrar formas de realizar o trabalho do Eu. Com a sublimação e a elaboração, essa concepção caí por terra para dar espaço à lógica do esforço psíquico e ao modo estético no qual esse se dá.

Enfim, viemos ao longo desse segmento indicando uma leitura da elaboração enquanto trabalho psíquico que tenta dar conta, tanto na clínica quanto na vida cotidiana, dos processos de transformação a partir das moções pulsionais. Caberia agora articular essas formulações ao processo sublimatório, uma vez que o entendemos como um desvio do destino da pulsão. Pretendemos com essa articulação não só vincular a ideia de transformação subjetiva à sublimação mas também indicar como o engajamento

144 em outros afazeres, por mais corriqueiros e cotidianos que possam parecer, servem como suporte para a mudança subjetiva.