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CAPÍTULO III – O EU CRIADOR

1. Amar a si mesmo

1.1 Para introduzir o narcisismo

Não restam dúvidas do lugar de destaque que a conceituação sobre o narcisismo possui na teoria freudiana. De modo semelhante poderíamos dizer que não é possível pensar a sublimação sem nos apoiarmos na leitura sobre o narcisismo. Com efeito, não seria exagero afirmar que a concepção da teoria do narcisismo é crucial para a leitura metapsicológica do processo sublimatório e tendo isso em vista, muitos foram os autores que dedicaram especial atenção a essa questão. Castiel (2007), por exemplo, chega a destinar um capítulo inteiro para descrever o quanto a introdução do narcisismo

96 na obra freudiana acarreta novas articulações à teoria da sublimação; também Laplanche em seu livro “Problemáticas III: A Sublimação” (Laplanche, 1989) convoca o estatuto do narcisismo para pensar o lugar da sublimação em Freud, recorrendo para isso à noção de apoio, traumatismo e simbolização. Kupermann (2003, 2007, 2010) e Mijolla- Mellor (2010, 2011) também dão destaque ao lugar do narcisismo para o entendimento do trabalho sublimatório, esses últimos merecem destaque por encontrarmos neles ferramentas conceituais que nos auxiliarão a pensar a sublimação vinculada ao trabalho de luto e, portanto, enquanto uma possibilidade de transformação subjetiva.

É importante lembrar que a primeira aparição do narcisismo (narzissmus) ocorre em 1910 em uma nota dos “três ensaios” relacionado à homossexualidade masculina. Outras aparições da noção ocorrem no ensaio sobre Leonardo da Vinci (Freud, 1910/1990), em “Totem e tabu” (Freud, 1913/1990) e também na análise do presidente Schreber (1911/1990). Apenas com a publicação do artigo em 1914 é que a arquitetura do aparelho psíquico, tanto em sua dimensão topológica quanto em sua dimensão econômica-intensiva é revista. Daí a nomenclatura do título do trabalho: “introdução ao narcisismo” trata, por certo, de introduzir o narcisismo à obra freudiana. Aqui, propomos introduzir o narcisismo ao trabalho de sublimação.

Sistematicamente, com a entrada em cena da noção do narcisismo o Eu ganha uma história para a sua construção, ao menos uma história que leve em conta seu desenvolvimento como objeto de investimento. Para tanto, algo deve ser acrescentado, uma nova ação psíquica, a fim de que os instintos auto-eróticos que se encontram ali desde o início desenvolvam-se no narcisismo (Freud, 1914b/2010, p. 19). A tomada de si como objeto é fundamental para que se dê a passagem entre o estágio de auto- erotismo no qual o sujeito não se relaciona com o que esta fora (até porque não há, neste momento, o fora) e o investimento da libido em um objeto externo.

O momento narcísico nos mostra um movimento de passagem, da tomada de si como ponte em direção ao investimento nos objetos. Neste sentido, a máxima popular de que “é necessário amar a si mesmo antes de tudo” parece cair bem, de modo que é necessário um quantum de investimento no Eu para a constituição de si. Devemos agora fazer a distinção entre este movimento de tomada de si e o do auto-erotismo, operação decerto minuciosa.

97 Uma rápida leitura pode criar a impressão que o auto-erotismo significa tomar a própria imagem como objeto de amor. Laplanche e Pontalis (2004, p. 47) nos ensinam que Freud forja o conceito de auto-erotismo para definir a sexualidade infantil, especificamente o momento em que a pulsão não é dirigida para outras pessoas, mas que se satisfaz no próprio corpo. Nesse sentido, o auto-erotismo apresentado nos três ensaios aponta para um estado do organismo em que as pulsões se satisfazem cada uma por sua própria conta, sem que exista qualquer organização de conjunto. O que significa dizer que ali predominam pulsões parciais, múltiplas e dissociadas e não a tomada da própria imagem como objeto de investimento. É a partir daí que Renato Mezan nos auxilia a demarcar o narcisismo nesta passagem entre a “desorganização” auto-erótica e a unificação das pulsões sobre a totalidade.

(...) é neste momento que se intercala a organização narcisista, que se diferencia da etapa oral pela unificação das pulsões sobre a totalidade “corpo próprio” e do auto-erotismo pela unidade do seu objeto, ainda que este esteja dentro do limite corporal. (Mezan, 1984, p.176-177)

A tomada do próprio corpo e da própria imagem sinaliza a unificação das pulsões antes dissociadas em um único objeto, o “o corpo próprio”; daí a criação de uma totalidade, da imagem organizada do Eu. Enquanto momento do desenvolvimento do psiquismo, o narcisismo representa a condição de possibilidade para que o Eu seja formado. Eis, portanto, a linha do desenvolvimento da libido: da passagem do auto- erotismo, momento em que não haveria distinção entre o eu e o mundo, para o investimento de objetos exteriores. O narcisismo se insere exatamente como possibilidade para que este investimento no mundo possa ocorrer.

Disso decorre a alteração para a teoria das pulsões: sendo o Eu investido libidinalmente será passível de ser tomado também como um objeto. Ora, mais do que isto: faz parte do próprio desenvolvimento psíquico que o Eu possa ser tomado como objeto. A libido do Eu e a libido objetal tratam de dois modos de investimento da libido: a libido do Eu refere o investimento sobre a própria pessoa, a seu corpo, a tomada de si como objeto de amor; a libido objetal descreve o investimento em um objeto exterior. Interessa perceber que há uma lógica de equilibrista entre essas duas libidos – à medida que uma diminui a outra aumenta. Relembremos que foram, em especial, os questionamentos de Jung sobre a demência precoce que incitaram Freud a retomar esta

98 questão já antes apresentada no caso Schreber29. Ali Freud faz uma apresentação do narcisismo, não o inserindo efetivamente à trama, mas já suficientemente atinente a ela.

Pesquisas recentes dirigiram nossa atenção para um estádio do desenvolvimento da libido, entre o auto-erotismo e o amor objetal. Este estádio recebeu o nome de narcisismo. O que acontece é o seguinte: chega uma ocasião, no desenvolvimento do indivíduo, em que ele reúne seus instintos sexuais (que até aqui haviam estado empenhados em atividades auto-éróticas), a fim de conseguir um objeto amoroso; e começa por tomar a si próprio, seu próprio corpo, como objeto amoroso, sendo apenas subsequentemente que passa daí para a escolha de alguma outra pessoa que não ele mesmo, como objeto (Freud, 1911/1990, p. 82-83)

É, portanto, daí que ele começa a trabalhar o conceito do narcisismo, visando elucidar a experiência parafrênica (em especial o delírio megalomaníaco) a proporção que reitera a marca indelével da libido na vida psíquica ao mesmo tempo em que reafirma o conflito pulsional. Ora, é exatamente com o modelo do delírio paranóico megalomaníaco que o investimento de si ganha um símile, já que na megalomania o sujeito é hiperinvestido, onipotente. Dessa maneira, a “parafrenia” é tomada como auxiliar para pensar o momento narcísico já que nela ocorre o fenômeno da perda de interesse pelo mundo externo e total reclusão em si. Ocorre que na mania a regressão acontece pela retirada da libido dos objetos e encaminhando-se diretamente ao Eu; já nos neuróticos a introversão da libido recai nas fantasias primitivas, fantasias que representam o momento de satisfação, bem-estar e onipotência do infante.

Se o Eu também é tomado como objeto, então as pulsões de autoconservação, antes opostas às pulsões sexuais, agora se aproximam, pois tem como mesma energia a libido. O que implica dizer que se temos apenas determinada quantidade de moedas o investimento é o depósito desta economia em uma ação - o que por consequência significa retirar o investimento de outra. Em outras palavras, opera-se uma nova dualidade: o conflito deixa de se referir a qualidades da pulsão, entre pulsão de autoconservação e pulsão sexual; agora passa a versar sobre o movimento dinâmico desta pulsão, sobre a força intensiva dessa e sobre seus destinos. A dualidade passa então a operar entre dois polos: de um lado objeto investido, do outro o próprio Eu. Para utilizar o exemplo freudiano: em um extremo o enamorado, dedicando todo o

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Para mais sobre isto, ver: Jordão & Pinheiro. Antecedentes históricos da construção do conceito de

99 investimento no outro, o que acaba por tornar o Eu evanescente; do outro o delírio paranóico, onde o mundo deixa de ser objeto de interesse.

Seguindo nosso trajeto, nos defrontamos agora com o contorno do psiquismo, e com a tomada de si como investimento. Devemos então apontar a garantia de investimento no Eu como passo fundamental para a construção deste amontoado de representações organizadas que dizem respeito a uma unidade e que será a instância psíquica que se relaciona com a realidade. Como nos diz Jurandir Freire Costa, o narcisismo é, sobretudo, o investimento de objetos privilegiados que compõem a formação do Eu e tem a libido como ponto fundamental para esta construção de si (Costa, 1988).