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O segundo momento, o retorno ao Eu

CAPÍTULO IV – ELABORAÇÃO E OS TEMPOS DA SUBLIMAÇÃO

2. Tempos e perigos da sublimação

2.2 O segundo momento, o retorno ao Eu

149 A pulsão de morte agiu e provocou desligamentos. Contudo, isso não significa em absoluto a emergência de novas configurações, até porque, desligadas as pulsões, o que temos são intensidades soltas no aparato psíquico sentidas como desprazer. Nesse caso, se a quantidade de energia for maior do que o possível de se processar, não estamos mais no campo da sublimação, mas sim do traumático. Cabe ao Eu organizar esse processo de desligamento, descolando a pulsão do objeto gradativamente, parte por parte, tal qual acontece no luto. Se no primeiro momento a pulsão foi dessexualizada e a libido foi retirada do objeto, agora é preciso que ela se dirija ao Eu, tornando-se libido narcísica.

Chamamos esse trabalho de tempo da elaboração, tempo necessário para integrar as pulsões abandonadas e dirigi-las ao Eu. O incremento da pulsão de morte possibilitou o desligamento do objeto; agora cabe ao Eu, polo organizador do psiquismo, realizar o trabalho de elaborar. Para tanto é preciso que ele absorva as pulsões desligadas, direcionando-as a si; só com elas em seus domínios o Eu é capaz de produzir algum manejo. Essa transformação, como sabemos, não ocorre instantaneamente, mas antes se insere “em uma duração e no espaço de um trabalho”. É esse caráter de trabalho, de arbeit, que está posto o tempo todo, dado se tratar de um processo.

Interessante perceber como o trabalho de elaboração com frequência apóia-se em uma ação para ocorrer - e se utilizarmos o luto como exemplo isso será mais fácil de reconhecer. Como se fosse preciso transgredir os limites do psíquico, colocando em cena a partir de uma ação, de um fazer, aquilo que ocorre no sujeito. Marie Claude Lambotte (2002), a partir de seus estudos a respeito da melancolia notou a emergência nesses pacientes do que ela chama de uma “postura estética”. Uma ação que possibilita a esses sujeitos saírem da situação mortificante da melancolia a partir da composição estética. Sua análise fundamenta-se na ideia de que o melancólico vê o mundo de forma rasa, sem relevos. Ele age como se soubesse de antemão que de nada adianta agir, nada vale experimentar já que o resultado impreterivelmente será o fracasso. Em verdade, ele age como se soubesse a verdade – trágica – do mundo e do homem: que nada vale a pena, pois o mundo é isso. O mundo e as coisas, tais quais ele enxerga, são absolutas. Para Lambotte, a emergência nesses pacientes de uma “postura estética” possibilita a eles reconhecer relevos, encontrar cores onde só imperava escalas de cinza. Assim ele experimentam alguma transformação, gradualmente, no objeto externo; os objetos

150 passam a ter nuances e relevos. Ele inclina-se a estetizar, começam por modificar as cortinas, ou realizar uma reforma, ou mesmo arrumar seu quarto (os exemplos poderiam ser muitos). Disparado pelo “objeto estético” ele descortina o véu de pessimismo que recobria o Eu. Bem verdade que a análise de Lambotte é muito mais profunda do que a que trazemos aqui. Não obstante, o que é importante notar para nossos fins é que a estetização do mundo funciona como suporte para o trabalho de elaboração psíquica, ou seja, para o trabalho de integração e assimilação da intensidade pelo Eu, em direção ao Eu.

Uma vez realizado esse trabalho é preciso que as pulsões, anteriormente desligadas e agora investidas no Eu, possam novamente direcionar-se para o campo exterior. Mas o caminho ainda não está livre para esse momento sublimatório, ainda estamos ameaçados pelos perigos do processo de desfusão. Ocorre que uma vez que as pulsões desligadas foram absorvidas pelo Eu, esse sofre com o demasiado aumento pulsional, sobretudo da pulsão de morte, agora dirigida a ele. Um dos perigos que Nelson Júnior e Gaspard mencionam é exatamente o incremento da agressividade pulsional no psiquismo, anteriormente dirigida para fora e que em determinado momento do processo sublimatório precisa vincular-se ao Eu (Silva Júnior & Gaspard, 2011). Mas se o momento da elaboração é um tempo necessário para a sublimação, então qual o perigo real? Em outras palavras, quais perigos pode a pulsão de morte acarretar se, no final das contas, a sublimação irá dirigir a pulsão para outro destino? Diríamos que se assim fosse a sublimação realmente seria uma arma contra todo e qualquer infortúnio, a panacéia dos males psíquicos. Mas não existem certezas e todo aquele que se dispuser ao trabalho sublimatório poderá sofrer. Basta-nos alguma observação do cotidiano para notar que o investimento sublimatório está imbricado no sofrimento psíquico. Vejamos, por exemplo, um adolescente que se presta a fazer o vestibular e, para isso, precisa abdicar de seus desejos em direção a esse novo fim. Não conseguiríamos acreditar que essa escolha se faz de forma tranquila e encontramos em nossas clínicas ou nos jornais a expressão do sofrimento psíquico que esse investimento pode acarretar. Com alguma boa vontade encontraríamos outros exemplos, bastando para isso olhar para o cotidiano como local de acontecimentos.

Ocorre, assim, que a sublimação nem sempre consegue sublimar toda a energia que desfusionou, como se sobrasse algo que não foi possível de religar e de redirecionar

151 para o exterior. Esse algo é exatamente a pulsão de morte que manteve-se nos limites do Eu.

O componente erótico não mais tem a força, após a sublimação, de vincular toda a destrutividade a ele combinada, e esta é liberada como pendor à agressão e à destruição. Dessa disjunção o ideal tiraria o caráter duro e cruel do imperioso “Ter que” (Freud, 1923b/2011, p. 68)

Para marcar: toda a agressividade e destrutividade que antes, ligada a Eros, estava dominada foi desfeita, essa ação é fundamental para produzir novos arranjos. Seguindo nosso esquema, o Eu absorveu em si todas as energias, indiferenciando-as. Ocorre que, estando o componente erótico enfraquecido, as pulsões de morte que restaram nos limites do Eu passam a alimentar as exigências do super-Eu, intensificando sua crueldade. “Ter que”: a exigência imposta ao Eu. Esse, quando sublima e direciona sua energia para outro destino não possuindo mais forças para lidar com esse incremento agressivo. Nelson Júnior e Jean-Luc Gaspard denominam essa situação de iatrogênese43 da sublimação: se a sublimação é um “tratamento da pulsão” ela também está suscetível de provocar sofrimento no sujeito (Silva Júnior & Gaspard, 2011). O perigo está aqui posto pela “pura cultura da pulsão de morte”. Para os autores, esta relação é o que está na base daquilo que Freud chamou de necessidade inconsciente de punição e de masoquismo moral. Estas articulações são fundamentais para o entendimento do processo sublimatório no sentido de que, ela também, pode provocar efeitos nefastos no sujeito.

Deste modo, este segundo momento é marcado pelo direcionamento da pulsão ao Eu e dos efeitos mortíferos desta ação. Não obstante, ela é fundamental para que a sublimação se efetue no terceiro momento.