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Kant, o sublime e o trabalho da razão

CAPÍTULO I – O COTIDIANO E AS ORIGENS DA SUBLIMAÇÃO

2. As questões estéticas

2.1 Kant, o sublime e o trabalho da razão

Mas o parentesco de Freud não é com a estética de Baumgarten. A incursão sobre o universo estético deve muito ao pensamento kantiano que a seu modo conseguiu produzir um leve descolamento entre a estética e a razão, diferente de Baumgarten para quem a primeira era inferior à segunda.

Immanuel Kant, sereno eremita de Königsberg, talvez o representante supremo do pensamento esclarecido chegou mesmo a propor uma estética na intenção de investigar a faculdade de julgar o gosto. A primeira parte da Crítica da faculdade do

juízo a “Crítica da Faculdade de Juízo Estética” (Kant, 1790/2002), marca o

pensamento kantiano e iluminista sobre o sensível. Perguntava-se ele como o julgamento sobre o belo, tão particular e subjetivo, pode ser ao mesmo tempo um julgamento universal e objetivo. Para dizer em outras palavras: tratava-se de entender como um objeto estético pode provocar uma sensação que é ao mesmo tempo pessoal e universal.

43 Para Kant a faculdade do gosto coloca em questão a própria faculdade de pensar, ou seja, a razão e o esclarecimento. A faculdade da razão trabalha no sentido de produzir um juízo universal sobre determinado objeto. A faculdade do gosto, por sua vez, produziria um juízo contingente, pessoal, individual. Essa complexidade entre os juízos é o que mobiliza Kant a tratar sobre essa surpreendente faculdade de juízo que se dá a priori.

Dizemos a priori, pois essa é uma noção importante para o entendimento da filosofia kantiana bem como de sua estética. Para dizer o fundamental: trata-se de um modo de conhecimento que independe da experiência; em sua forma pura, o a priori revela os conhecimentos que são absolutamente desprovidos de qualquer elemento empírico. Diz-se que o a priori kantiano não é um campo do conhecimento, mas a condição de todo conhecimento objetivo - forma pura do conhecimento, independente do seu conteúdo (Abbagnano, 2007, p. 77). Para Kant, as leis da natureza agem independentemente das circunstâncias da vida empírica, são universais; também é universal o princípio de obediência à lei moral (Jimenez, 1999, p. 118). Nesses casos eles são a priori, pois condicionam e fundamentam todos os graus da experiência humana.

Mas qual o lugar do a priori no que tange a experiência sensível? Questão é que quando nos defrontamos com um sentimento de prazer ou de dor, de júbilo ou de terror, esses nos chegam ao espírito através da experiência. Ou seja, para que eles existam é preciso que algo provoque isso ao espírito. Eles dependem de uma manifestação empírica, não são como o conhecimento ou a moral que estão lá a priori. Não obstante, mesmo sendo mediado por uma experiência, o juízo que fazemos de tal sentimento não é contingente. Tomamos esse sentimento como universal a todo e qualquer ser humano.

Vejamos: um sujeito pode dizer “este é um belo pôr-do-sol” e não conseguir nenhuma justificativa racional que consiga contemplar esse sentimento, ainda que tenha absoluta certeza do que sente. Ao mesmo tempo, também estará certo de que “todos também acharam isto belo”, ou seja, pressupõe uma universalidade do sentimento que inicialmente era pessoal e absolutamente subjetivo – afinal, é o sujeito quem atribui beleza ao pôr-do-sol. Eis então o paradoxo que impeliu Kant a dedicar-se às faculdades do juízo: Quando constrói o juízo de que “todos acharam isto belo”, o sujeito atribui a

44 seu juízo uma universalidade que, a priori, não é possível. Como um juízo subjetivo pode ser universal? A universalidade é uma característica das faculdades construídas pela razão. Como pode então, o julgamento que parte de um fenômeno, que não é a

priori, mas que é pessoal e contingente propor-se universal? Essas são algumas das

questões que a Critica da Faculdade do Juízo Estética pretende resolver.

Cabe-nos perceber que o sensível torna-se, então, um modo de apreender o mundo, uma faculdade do homem. No entanto, a estética kantiana é apenas um fragmento de todo seu projeto que visava as faculdade do entendimento. Assim ao propor uma filosofia sobre o gosto marcada por um projeto iluminista, Kant começa a demarcar a fronteira ainda hoje sustentada da divisão entre aquilo que é da ordem da razão e o que é da ordem do sensível. Neste segundo caberia a confusão e as ideias que não chegariam à perfeição do esclarecimento. Com efeito, a estética e o sensível elevam-se como objeto de estudo, mas sempre subordinados à razão.

Uma pausa. Mas de que nos interessa esta apresentação sobre a estética, sobretudo a estética kantiana, para a problematização da sublimação? Ora, porque o conceito de sublimação está atrelado ao campo da teoria da literatura e da filosofia às quais convocam, sobremaneira, à ideia de uma experiência cujo efeito seja sentido como sublime; e ainda que ortograficamente os termos “sublime” e “sublimação” se aproximem e produzam cadeias de associações, no discurso psicanalítico essa vinculação com frequência perde-se, de modo que a noção de sublimação acaba por tornar-se uma ideia em si, desvinculada de cadeias epistemológicas. Então, se no discurso físico-químico a sublimação é um movimento, uma passagem rápida e direta de um estado para outro; no discurso filosófico o que se constrói é a possibilidade de teorização de um campo novo que não é o da razão, mas de toda experiência sensível, daquilo que é pático (Rancierè,2009). Entender então o discurso filosófico sobre o sublime nos possibilita mapear melhor quais são os componentes que constituem a própria noção de sublimação. Além disto, seria impossível desvincular o modo como Freud enuncia a sublimação do contexto cultural da Viena do século XIX e a famosa

belle époque. Ainda que não se refiram unicamente a esse assunto, o sublime e as Belas

Artes mantêm forte relação.

Mas e Kant? Pois bem, ele mesmo chegou a esboçar uma conceituação sobre o sublime que faria oposição a experiência do belo. O sublime é zênite da experiência

45 sensível, algo que o simples belo não poderia proporcionar. A própria representação da natureza é a expressão kantiana do sublime, enquanto o belo seria representado pela arte e suas manifestações. Kant privilegia a dimensão da natureza em contraposição às formações do espírito do homem, porque ela demonstraria a infinitude através de suas manifestações10. Isto não quer dizer que o homem estivesse em segundo plano, ao contrário, o homem é dotado da capacidade de usar a razão, de pensar. A infinitude do sublime exige ao homem o trabalho de reconhecer-se pequeno e frágil diante da natureza. Ao mesmo tempo é essa percepção a marca do homem, pois diante da força suprema o homem não deixou de trabalhar, ao contrário, foi tal força que o impeliu a usar seu bem capital, seu máximo poder - a razão.

No entanto, não foi Kant o primeiro a utilizar o sublime de tal modo11. Edmund Burke foi quem introduziu esta distinção entre o sentimento do sublime e o sentimento do belo. Para ele o sentimento da beleza é caracterizado por uma constante e invariável repetição da sensação. Não haveria, portanto, nada de novo, de surpresa para a subjetividade diante desta experiência, ao contrário, o resultado seria a sensação de domínio e certeza das coisas e do mundo. O oposto acontece com o sublime. Seu signo é a novidade, e exatamente por ser nova a experiência é descrita com força, quase incapturável, indescritível. O novo aparece e rompe com as certezas e previsibilidades do sujeito, com seu esquema de associações. É a sensação diante do penhasco, ao mesmo tempo magnífico e aterrador12. É o barco perdido no mar na tempestade negra de Ruisdael13.

Burke propõe uma estética sensualista. Kant retoma as formulações de Burke e lhes dá os contornos da filosofia do esclarecimento. É que para ele uma experiência tal impõe ao sujeito a exigência de reconhecer sua finitude, de trabalhar sobre ela para produzir o entendimento. Note-se que o sublime não é o objeto nem o fenômeno, mas

10 Para Kant há uma ligação direta entre a ideia de infinito e o trabalho da razão. De forma sucinta,

diríamos que o primeiro impulsiona o trabalho do segundo.

11Le Traitédu sublime et dumerveilluexdans Le discours, traduzido por Boileau em publicado 1674. Esta

seria a primeira apresentação do conceito do sublime e é atribuído a Longino, retor grego do século III (213-273). Mas o texto, conhecido desde a Renascença em sua versão latina, seria obra de um humanista do século I. Versão brasileira, Do sublime. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

12

Friedrich, Caspar David. (1818). Despenhadeiros de Giz em Rugen.

46 sentimento14. Portanto, o que é sublime é aquilo que avassala o homem e produz a exigência de trabalho - que para Kant é a da razão.

O sublime kantiano descreve a ruptura, o transbordamento. E diante disso é preciso fazer alguma coisa. É preciso trabalhar.