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CAPÍTULO IV – ELABORAÇÃO E OS TEMPOS DA SUBLIMAÇÃO

2. Tempos e perigos da sublimação

2.1 O primeiro momento, a quebra

Dissemos que a sublimação é, principalmente, um destino da pulsão, desviado de sua origem, um drible pulsional. É um desvio, pois o objetivo da pulsão não era originalmente direcionado a uma ação que pudesse ser compartilhada socialmente. Foi preciso que o objeto de interesse da pulsão deixasse de ser acessível, seja pela sua ausência, seja pelo interdito, para que o investimento recuasse. Mas como Freud nos ensinou, não se abre mão do amor tão facilmente. É preciso alguma dose de violência para que a pulsão possa desligar-se de seu objeto.

146 Aqui nos deparamos mais uma vez com o processo já estudado da dessexualização. Esse é o primeiro momento, tempo da quebra, do início dos desligamentos.

Sobre isso, Nelson da Silva Junior e Jean-Luc Gaspard (2011) salientam de forma perspicaz os perigos que a sublimação pode promover. Ao contrário da maior parte dos autores que veem nela um triunfo contra o impacto pulsional, Silva Júnior e Gaspard nos lembra que a sublimação só ocorre exatamente por conta da dessexualização da pulsão. Dessexualizar, em outros termos, significa desfusionar os componentes pulsionais que, quando unidos, indicam o destino da pulsão. Ora, se a sublimação fala do desvio do destino, então é preciso que as forças que a compõem sejam re-arranjadas. É preciso que esse formato atual se quebre, de modo a desligar as pulsões anteriormente ligadas. Esse é o sentido da desfusão pulsional apresentada por Freud no verbete “Teoria da Libido” escrito em 1923.

Nos seres vivos, os instintos eróticos e os de morte estabeleceriam misturas ou fusões regulares; mas também seriam possíveis disjunções deles. A vida consistiria nas manifestações do conflito ou da interferência dessas duas espécies de instintos, trazendo para o indivíduo a vitória dos instintos de destruição mediante a morte, mas também a vitória de Eros mediante a procriação. (Freud, 1923a/2011, p. 307).

A questão é que por conta da desfusão, pulsões de vida e morte separam-se, e Thanatos liberta-se para agir livremente. Diante disso, novas fusões podem ocorrer. Contudo essas ligações inauguradas podem ser especialmente mortíferas por conta da vinculação da pulsão de morte à outros esquemas. Pode-se perceber claramente esse novo arranjo mortífero na melancolia onde a pulsão de morte vincula-se ao super-Eu e volta-se contra o Eu. É o excesso de pulsão de morte que provoca a necessidade, por parte do Eu, de desligar42. Insistimos, o novo arranjo será mediado pelo Eu.

42

Coloca-se diante de nós um problema espinhoso, a saber: a desfusão é então provocada pela própria pulsão de morte ou então é promovida pelo Eu que agencia esse desligamento? Vejamos: No Eu e Id Freud, para tentar esclarecer isso, diz: “Na neurose obsessiva tornou-se possível ... que os impulsos amorosos se convertam em impulsos agressivos contra o objeto. Novamente o instinto de destruição ficou livre e quer destruir o objeto, ou ao menos parece existir esse propósito. O Eu não adotou essas tendências, ele se opõe a elas com formações reativas e medidas de precaução” [itálicos nossos] (Freud, 1923b/2011 p. 51). Portanto, o Eu não provocou esta desfusão. Por outro lado, se tomarmos o luto como exemplo, é o Eu que dirige o desligamento, hiperinvestindo cada representação a fim de retirar a libido do objeto – uma desfusão, portanto.

Na verdade, temos duas categorias de ligação, segundo Frappier (2005): de um lado temos a fusão/desfusão (mischung/entmischung) que diz respeito a Eros e Thanatos. De outro, temos a ligação/desligação (bindung/entbindung), que diz respeito ao trabalho do Eu. Continuamos então com o

147 De início, o que temos é o incremento de energia desligada. Diante deste excesso, os componentes agressivos da pulsão de morte libertam-se do julgo de Eros. Importante salientar isso, já que a sublimação costuma aparecer como uma arma contra o “mal” que é a pulsão de morte. Para nós, trata-se exatamente do contrário: se a sublimação traz algo de notável é o reconhecimento e o uso que faz da agressividade inerente à pulsão de morte.

Mas ainda não apontamos claramente quais sãos os perigos intrínsecos à sublimação, apenas vislumbramos que esses estão vinculados à pulsão de morte e à dessexualização. Já vimos que a sublimação age no sentindo de produzir uma torção no destino da libido, ou seja, “a libido do objeto tornar-se libido narcísica”. Esse processo coincide com o abandono das metas sexuais, a dessexualização. No fragmento a seguir Freud expõe qual o perigo que a dessexualização acarreta.

A essa transformação em libido do Eu vincula-se naturalmente um abandono dos objetivos sexuais, uma dessexualização. De todo modo, assim

compreendemos um importante papel do Eu em sua relação com Eros. À medida que se apodera de tal forma da libido dos investimentos objetais, arvora-se em único objeto de amor, dessexualiza ou sublima a libido do Id, ele trabalha de encontro às intenções de Eros, coloca-se a serviço dos impulsos instintuais contrários. Tem de tolerar uma outra porção de investimentos

objetais do Id, como que participar deles. Depois viremos a falar de outra consequência possível dessa atividade do Eu. [itálicos nossos] (Freud, 1923b/2011, p. 57)

A sublimação trabalha contra Eros? Mas como, se até então estávamos certos de que, por operar ligações, a sublimação atuava no sentido de dominar a pulsão livre? Bem verdade, mas antes de operar qualquer ligação é preciso que a disjunção ocorra, liberando as intensidades. Por conta disso o Eu precisa suportar uma outra quantidade de investimentos objetais do Id. Apenas um pouco mais à frente no desenvolvimento de suas idéias é que Freud consegue desembaraçar esse nó.

Não posso continuar a discutir essa questão sem introduzir uma nova suposição. O Super-eu nasceu de uma identificação com o modelo do pai. Toda

identificação assim tem o caráter de uma dessexualização ou mesmo sublimação. Parece que também ocorre, numa tal transformação, uma disjunção instintual [itálicos nossos] (Freud, 1923/2011, p. 68)

problema exposto. Este primeiro tempo da sublimação, o momento da quebra estaria vinculado ao trabalho do Eu ou de Thanatos? Nossa leitura é que o incremento da força da pulsão de morte, enquanto princípio, mobiliza a ação do Eu para provocar o desligamento. Esse incremento ocorreria por contra de uma desfusão. Ou seja, a entmischung provocaria a entbindung

148 Algumas considerações são fundamentais a partir desse trecho. O que está posto, em primeiro lugar, é o próprio caráter estruturante da sublimação, na medida em que ela é base da constituição do super-Eu. A passagem identificatória diria respeito não só à entrada do objeto na esfera do Eu, mas também à passagem da energia sexual em energia dessexualizada. Eduardo Cunha, ao analisar os processos identificatórios, nos ensina que a dessexualização nesse momento “imbricaria de modo definitivo a experiência da sublimação aos processos identificatórios, ao menos em sua vertente estruturante” (Cunha, 1992, p. 181). Ou seja, ela é fundamental na construção do psiquismo, tal qual Freud o desenhou. A essa articulação soma-se tantas outras aqui apresentadas no sentido de destituir o caráter excepcional do trabalho sublimatório. Como visto, a partir da pulsão de saber e do período de latência, a sublimação estaria sempre presente em momentos derrisórios de mudança e transformação do psiquismo.

Em segundo lugar, a própria constituição do super-Eu, modelada a partir de uma sublimação, só pode ocorrer a partir de uma disjunção, ou seja, a partir da desfusão pulsional. Isso porque nesse momento, como em outros apresentados, é a quebra e o caos consequente que possibilitará uma nova organização.

A dimensão da pulsão de morte como potência criadora é apontada por Luis Alfredo Garcia-Roza ao associar a ela a recusa à permanência e a tendência à renovação das formas. Note-se que esse aspecto só pode ser defendido quando contrapomos a potencia de destruição de Thanatos à tendência à unificação e à indifereciação de Eros. Tendo em vista esse embate, Garcia-Roza descreve a pulsão de morte enquanto potência destrutiva (e princípio disjuntivo) que impede a repetição das formas antigas, do mesmo. “Ela é, portanto, criadora e não conservadora, posto que impõe novos começos ao invés de reproduzir o “mesmo” (Garcia-Roza, 2004, p. 137).

Com isso temos aqui o primeiro tempo sublimatório. O momento da disjunção das pulsões, promovido pelo fator disruptivo da pulsão de morte.