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Schiller, o homem cindido e a harmonia pelo jogo

CAPÍTULO I – O COTIDIANO E AS ORIGENS DA SUBLIMAÇÃO

2. As questões estéticas

2.2 Schiller, o homem cindido e a harmonia pelo jogo

Sabemos também que Freud foi leitor de Friedrich von Schiller, dramaturgo, poeta e autor de peças como Guilherme Tell e A Donzela de Orleáns. As menções ao poeta e filósofo no discurso freudiano não são poucas, de modo que valerá a pena nos atermos a ele. Vale mencionar que Schiller não era propriamente um filósofo, ainda assim conquistou seu lugar na Universidade de Jena depois do trabalho extenso para a conclusão de sua peça Don Carlos. O interesse que Schiller possui pela filosofia é, sobretudo, estético. Fortemente influenciado pela filosofia de Kant, quando dedicado aos escritos kantianos ele esperava encontrar uma ferramenta que permitisse ganhar clareza sobre a experiência trágica. Seu caráter de pesquisador dava-se na medida em que tentava entender melhor os objetos da estética; a finalidade certamente era a sua produção dramatúrgica (Vieira, 2011).

Mesmo tendo em Kant um interlocutor privilegiado Schiller tentou afastar-se de toda tradição na qual o pensamento kantiano estava profundamente enraizado (e talvez já esterilizado) retomando a problemática da estética por uma via menos metafísica. Se por um lado o projeto iluminista kantiano tem o mérito de dedicar-se ao gosto e à arte, ao mesmo tempo a aprisiona nos ditos da razão. Schiller tenta libertá-la dos grilhões que a prendiam. “Onde o caráter se torna tenso e enrijece, vemos a ciência guardar, severa, as suas fronteiras e a arte caminhar presa às pesadas correntes da regra” (Schiller, 1795/2013, p. 47). Para tanto defendia a ideia de que a arte, seja a descrita como Belas-Artes, seja a arte em geral, não é desprovida de utilidade. Tentava, assim, enfatizar o aspecto político pedagógico que a estética poderia assumir no sentido da construção de um Estado no qual as pessoas pudessem atingir o grau de humanidade

14 O sublime, em Kant e nos pós-kantianos, não se refere ao objeto. Não há objeto sublime, mas sim um

sentimento. Nas palavras de Roberto Machado “O objeto só proporciona um sentimento sublime, apresentando uma sublimidade que se encontra no espírito, no ânimo, mais precisamente, nas ideias da razão.“ (Machado, 2006, p. 60)

47 próprio do universo “civilizado”. Sua filosofia e sua estética são, portanto, teleologicamente orientadas; visam o despertar para o entendimento. Disso, notamos simultaneamente sua filiação com Kant e sua libertação da metafísica engessada em si mesma.

A formação da sensibilidade é, portanto, a necessidade mais premente da época, não apenas porque ela vem a ser um meio de tornar o conhecimento melhorado eficaz para a vida, mas também porque desperta para a própria melhora do conhecimento. (Schiller, 1795/2013, Carta VIII. p., 46)

Ainda que restrito a seu tempo, as reflexões de Schiller reverberam nas análises contemporâneas sobre a existência, a arte e o mal-estar contemporâneo. Encontramos nas “Cartas”de Schiller ao mesmo tempo uma política de estado e uma crítica na qual se destaca a dimensão estética da humanidade, a dimensão sensível da experiência em contraposição com o aspecto utilitarista e excessivamente racional das relações humanas. Diz ele, “Hoje, porém, a privação impera e curva em seu jogo tirânico a humanidade decaída. A utilidade é o ídolo do tempo; quer ser servida por todas as forças e cultuada por todos os talentos.” (1795/2013, Carta II. p., 23).

Schiller, como leitor de Kant, retoma algumas conceituações do filósofo da

aufklärung. Dissemos que ao descrever o belo e o sublime Kant aponta certas

qualidades que o objeto provocaria em nós. O juízo de gosto não seria assim um juízo sobre o objeto belo em si, mas sobre o elo entre a representação deste objeto e nossas faculdades de entendimento e imaginação. O belo, portanto, seria a capacidade de entender a representação por completo, reconhecendo uma magnânima harmonia. Schiller aponta - e de certo modo não tão distante de Kant - que a harmonia e a forma agradam ao espírito porque une dois aspectos da natureza humana: a razão e a sensibilidade. Ela seria uma conciliação entre o impulso formal (Formtrieb) e o impulso ao sensível (sinnlicher Trieb) (1795/2013, Carta XII, p., 59-60).

Os impulsos são essencialmente forças - o que dá o caráter dinâmico próprio da

Trieb schilleriana. Estas forças estão presentes em cada homem e o impulsionam às suas

realizações. Há aqui, como em outros pontos, uma grande semelhança entre a trieb de Schiller e a trieb freudiana. Ambas são forças que incitam o homem, e a humanidade, ao movimento. Tanto no pensamento do filósofo quanto na do psicanalista estão presentes a ideia da dualidade, do conflito – e, portanto, de uma resolução deste. Não obstante, a

48 base do projeto de educação estética a qual a trieb schilleriana se insere está relacionada a um diagnóstico do contexto histórico europeu do final do século XVIII e a uma avaliação do papel da arte na cultura moderna. Suas idéias articulam questão moral à beleza (cf. SÜSSEKIND, Pedro, 2011). Por sua vez, diríamos que a trieb freudiana diagnostica a questão moral, mas marca, sobretudo, a dimensão ética da humanidade bem como a singularidade e a dimensão afetiva da existência.

Existe uma diferenciação interessante e fundamental sobre as forças na obra de Schiller. Os impulsos produzem movimentos distintos, opostos. Ao mesmo tempo em que as duas forças impulsionam para caminhos opostos é preciso encontrar uma alternativa para a realização da ideia de humanidade, qual seja, a perfeição do homem em sua existência

(

1795/2013, Carta XIV. P., 69).

Pois o que impede a perfeição do homem (e como consequência da humanidade) é o conflito entre os impulsos que o regem.

Eles falam sobre a divisão do homem em si, ou melhor, de um homem que é habitado por duas facetas: de um lado o “homem físico”, de outro o “homem moral”. O primeiro desses impulsos, o sensível, parte da existência física do homem, de sua natureza sensível

(

1795/2013, Carta XII. p., 59). Preso a esse impulso o homem torna- se unicamente preenchido pelas sensações, pelas manifestações físicas; daí a sujeição do homem a força da natureza, ao primitivo, ao não civilizado, agressivo, egoísta. Ou seja: o homem físico beira a barbárie.

O segundo impulso, o formal, “parte da existência absoluta do homem ou de sua natureza racional, e está empenhado em pô-lo em liberdade.”

(

1795/2013, Carta XII p., 60). Lembremos a filiação de Schiller a Kant: liberdade é o uso livre da razão. Assim, o segundo impulso é autônomo em relação às forças na natureza. O impulso

sensível constitui apenas casos, contingências. O impulso formal propõe leis,

universalidade.

O sentimento pode apenas dizer: isto é verdade para este sujeito e neste momento, um outro momento e outro sujeito podem vir a retirar o que a presente sensação afirma. Quando o pensamento, entretanto, afirma: isto é, ele decidiu para sempre e eternamente (...). (1795/2013. Carta XII. p., 61)

49 Pois se o impulso formal indica a tendência ao uso da razão, a universalidade, a leis, então para adquirir de fato esta liberdade deve-se ter por princípio obedecer às leis que estabeleceu para si. Assim, o homem livre é o ideal, o progresso que deve ser alcançado pelo homem físico.

Não parece ser um exagero de nossa parte pensar que para Schiller o homem é cindido. No entanto (e aqui é onde o pensamento de Schiller torna-se instigante), não se trata de propor uma linha de desenvolvimento teleológica, na qual se sai do estado “homem físico” em direção ao “homem moral”. Ora, é exatamente o contato com a dimensão primitiva que possibilita ao homem físico aproximar-se das experiências sensíveis. O homem moral, por ter abdicado de tal forma desta dimensão física em prol da moral perde a capacidade de experenciar a dimensão sensível e estética da condição humana. Assim, o projeto de Schiller não propõe construir uma linha progressiva, da barbárie à civilização, ao contrário, visa a construção de uma harmonia entre o que impulsiona o homem à experiência sensível e o que o impulsiona em direção ao ideal civilizado. A possibilidade de produzir um homem total, a ideia de humanidade, dá-se através do campo estético. E será exatamente através das tendências, do Trieb, que o homem pode se reconciliar consigo, encontrando sua faceta total. A tendência à forma e a tendência ao sensível são forças que estão em conflito, mas não necessariamente antagônicas; unidas são capazes de mobilizar o homem ao progresso.

Eis então o projeto tão caro a Schiller e a sua educação pedagógica. O impulso sensível está ligado à vida fenomênica da humanidade. Como descreve Duflo (1999, p. 71): “Ela quer as intuições, a mudança, em resumo, dar um conteúdo a toda forma e, claro, em particular a essas formas a priori que são o espaço e o tempo. [...] Em oposição, a tendência formal é tendência à eternidade, verdade e justiça.”. Deste modo, o homem é refém de sua divisão. Se o impulso sensível for exacerbado, ou seja, dominar o impulso formal então teremos o homem selvagem, passional, bárbaro, quase um animal. Mas se o impulso formal for dominante diante do sensível então teremos um homem excessivamente moral, sempre a procura de justiça, mas que negará inapelavelmente uma parte fundamental de sua humanidade. É apenas através do equilíbrio e da harmonia que o homem pode alçar o progresso.

O homem, entretanto, pode ser oposto a si mesmo de duas maneiras: como selvagem, quando seus sentimentos imperam sobre seus princípios, ou como bárbaro, quando seus princípios destroem seus sentimentos. O selvagem

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despreza a arte e reconhece a natureza como sua soberana irrestrita; o bárbaro escarnece e desonra a natureza, mas continua sendo escravo de seu escravo por um modo frequentemente mais desprezível que o do selvagem. O homem cultivado faz da natureza uma amiga e honra sua liberdade, na medida em que apenas põe rédeas em seu arbítrio (Schiller,1795/2013. Carta IV, p. 31).

No entanto o homem não está fadado à este embate. Existiria um meio para acabar com a cisão, uma terceira tendência – a tendência ao jogo, ou o impulso lúdico (Spieltrieb). O Spieltrieb propõe-se como a resposta para a divisão entre as tendências humanas, mas não de forma pragmática. Essa resposta está sempre a caminho, uma visada da própria humanidade, ou melhor, a visada que fará a própria humanidade. Interessante salientar que o impulso lúdico não propõe anular os impulsos, silenciando- os, mas sim conciliá-los, de modo a agirem em conjunto. O lúdico indica a resolução dos problemas do homem cindido, ao mesmo tempo em que encaminha a questão do destino, da direção que as ações do homem visam. A grande questão de Schiller é que,

como os impulsos impõem continuamente necessidades ao espírito, a solução do impulso lúdico é impor uma necessidade que convocará as forças dos dois impulsos.

Como se dissesse, “olhe, vocês dois, podem trabalhar juntos para resolver essa questão!”. Assim, oferecendo um objeto para que os impulsos trabalhem, suprime-se também a necessidade que se impunha ao espírito.

O impulso lúdico, portanto, no qual ambas atuam juntas, tornará contingentes tanto nossa índole formal quanto a material, tanto nossa perfeição quanto nossa felicidade; justamente porque torna ambas contingentes, e porque a contingência também desaparece com a necessidade, ele suprime a contingência nas duas, levando forma à matéria, e realidade à forma. (Schiller, 1795/2013, Carta XIV. p., 70-71)

Ora, vemos então que se a estética para Schiller é o embate entre duas forças que cindem o homem, a saída será a nova harmonização deste, tornando unidade e fazendo-as confluírem para que seja possível a conciliação. O impulso lúdico será a noção que propõe o equilíbrio das forças. Se o exercício e o trabalho são disciplinares, envergam o homem em direção a moral, o prazer e as sensações plenas vergariam o homem em direção a barbárie. O jogo então conflui as forças, impelem-se para que seja possível um salto na história da humanidade.

51 Está ai o projeto pedagógico que propõe ao homem atingir um grau maior, através da harmonia das forças que o impulsionam. Ou nas palavras de Schiller: “(...) o homem joga somente quando é homem no pleno sentido da palavra, e é somente homem

pleno quando joga” (Schiller, 1795/2013, Carta XV. p. 80).

Schiller fala de supressão da contingência como modo de direcionar os impulsos. Essa supressão se dá na medida em que é oferecido aos impulsos um caminho para que trabalhem unidos. O jogo é esse caminho. E de fato, o jogo indica aqui um espaço, uma ação na qual o homem possa fazer livre uso de seus impulsos. “Esse nome é plenamente justificado pela linguagem corrente, que costuma chamar jogo tudo aquilo que, não sendo subjetiva nem objetivamente contingente, ainda assim não constrange nem interior nem exteriomente” (Schiller, 1785/2013, Carta XV, p. 74). Bem verdade que Schiller exemplifica esse livre uso a partir da arte, indicando a questão do ideal de belo. Lembremos novamente a filiação a Kant, para quem o belo harmoniza e o sublime transborda. Schiller indica que ambos, harmonizando ou transbordando, impulsionam o homem em direção ao ideal de humanidade.

Ora, há aqui uma indicação que se assemelha sobremaneira a descrição do trabalho sublimatório: a ideia da busca constante pela resolução, ou ao menos redução de danos, do conflito entre as forças. Veremos que no caso sublimatório o conflito esta ligado às instancias psíquicas e a impossibilidade de satisfação direta. Já em Schiller, o conflito descreve o embate entre impulsos distintos. De qualquer modo, o que temos em um quanto no outro é a reflexão sobre as possibilidades de encontrar uma alternativa para lidar com o conflito que tange o humano. Em Schiller, esse conflito é da ordem da natureza, da moral e da plenitude da humanidade. Em Freud, o conflito é psíquico e se dá, sobretudo, no que diz respeito à satisfação da pulsão. Assim, poderíamos dizer que a descrição do impulso lúdico schilleriano nos inspira a ver no campo da estética, das formulações sobre o campo do sensível e daquilo que é pático a possibilidade de encontrar alternativas para lidar com os impasses/embates psíquicos. Uma alternativa, deve-se ressaltar, que é da ordem da mobilização de forças opostas para um fim comum.

Para finalizar este capítulo, é importante ressaltar o que foi dito anteriormente. Não podemos defender que a psicanálise é diretamente herdeira dessas problematizações sobre a estética e sobre o sublime. Não obstante, o que enunciamos aqui são alguns dos pensamentos sobre a arte, o sensível e o sublime aos quais a

52 psicanálise, se não parente, nos inspira a estabelecer algumas aproximações, sobretudo para promover a capacidade de reler essas formulações a partir do inconsciente.

Terry Eagleton (1990) nos diz que a categoria de arte e as formulações sobre a estética assumem importância própria no pensamento moderno porque o discurso estético não é nunca completamente autônomo, fechado nele mesmo. Propor uma leitura sobre o campo da estética é também propor uma leitura de ideologias do pensamento e das forças que compõem cada um desses sistemas. Assim, quando Freud debruça-se sobre a estética ou sobre a arte ele não tem interesse em ser visto como um esteta nem tampouco como crítico da arte; ao contrário, ele mesmo os criticou por perceber nesses especialistas certo vazio de conteúdo - uma preocupação excessiva para com a forma e pouca importância para algo que se esconde nas produções humanas. A arte e o sublime têm para Freud outro objetivo: o inconsciente.

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