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PERSPECTIVAS E DESAFIOS NO PLANEJAMENTO DE CURSOS DE PORTUGUÊS COMO LÍNGUA DE

2) Alguns fatores externos: alunos podem faltar em função do

4.4 Subsídios para o planejamento de cursos de PLAc

4.4.1 Destotalizando o imigrante deslocado forçado

Discutimos, na seção 4.1, os efeitos de sentido produzidos pela naturalização de algumas designações para se referir aos imigrantes que compõem o público-alvo das iniciativas de PLAc. Percebemos que três processos – relacionados entre si – são recorrentes na caracterização desse público pelos professores e coordenadores da área: (i) a alusão ao status jurídico do imigrantes (e suas diversas categorizações), geralmente associada a uma condição de fragilidade/vulnerabilidade por parte desse imigrante; (ii) a identificação desses imigrantes pelo viés das suas (supostas) perdas e faltas; (iii) o reconhecimento por aquilo que não são (apontando suas diferenças com base na comparação com outros grupos de imigrantes). Conforme discutimos, tais processos corroboram a construção de uma imagem do refugiado

desamparado (AYDOS, 2010), que acaba sendo eleita como um padrão “modelar” representante de todo o grupo de imigrantes deslocados forçados no país. A nosso ver, esse é um processo típico da perspectiva do Multiculturalismo Liberal (MAHER, 2007), que discutimos no capítulo I deste trabalho. Ao focarmos demasiadamente apenas

naquilo que faria os imigrantes serem diferentes, corremos o risco de essencializá-los, de tomá-los como parte de um grupo sem “contradições ou equívocos” (MAHER,

ibidem), elegendo o imigrante “desamparado” como um deslocado forçado modelo. Em última instância, isso pode contribuir para firmar um lugar de marginalidade para as pessoas que fazem parte desse grupo e levar-nos a crer, por exemplo, que um deslocado forçado que não passe por certas dificuldades – tais como falta de dinheiro, perseguição e violação de direitos humanos – seja encarado com um “deslocado forçado ilegítimo” ou, ainda, um oportunista. A nosso ver, esse é um dos motivos que podem levar à diferenciação, falha (AYDOS, 2010; SANTOS, 2014), entre imigrantes econômicos e refugiados. Isso não quer dizer que as diferenças devam ser deixadas de lado, mas acreditamos que elas possam ser encaradas de outra forma, conforme trataremos ao longo desta seção.

Em sala de aula, os impactos de tal postura de diferenciação podem envolver: o tratamento desse grupo sempre como em estado de perda e desamparo, o que pode levar o professor a planejar estratégias didáticas levando em conta não as necessidades dos estudantes, mas aquilo que ele acha que o estudante precisa. Em uma sala de aula de ensino de português, poderia levar o professor a acreditar que deve ensinar português na língua do estudante, por exemplo. No que tange a essa questão, nos registros dessa pesquisa, a maioria dos alunos participantes revelou que não gostaria que o professor conhecesse e usasse a língua que eles falam para não prejudicar o aprendizado deles do português, tendo em mente o pouco tempo que eles têm para dedicar ao estudo de PLAc (3 horas semanais). Embora não seja objetivo deste trabalho discutir a validade ou não de se ensinar o português pelo uso da PL1 dos aprendizes, chamamos a atenção para o fato de que parece ser recorrente, principalmente entre professores que sabem crioulo haitiano, usar bastante essa língua nas aulas de português. Perguntamo-nos se esses mesmos docentes fariam isso em outros contextos de ensino de PLA. Acreditamos que este seja, em alguma medida, um reflexo do discurso das faltas e perdas dos imigrantes deslocados forçados: por serem, muitas vezes, vistos como dignos de pena, certos professores tendem a usar a língua materna dos alunos para “facilitar” a aprendizagem. Essa constante assunção de uma necessidade de “amparar” esse imigrante pode, mais do que ajudar, firmar os aspectos que os diferenciam dos nacionais, fazendo-os sentir como estrangeiros, no sentido de alheios à sociedade de acolhimento, criando “guetos culturais” ou contribuindo para a sua

estereotipificação, ou, ao contrário, aumentando seu desejo de assimilação (MAHER, 2007).

Apesar das boas intenções, essas são, a nosso ver, posturas que podem contribuir, em alguma medida, para um perigoso processo de assimilação desse grupo, que produza certa absorção do imigrante sobre/na cultura ao seu redor, com vistas a eliminar sua estrangeiridade. Por mais que isso pareça radical, o discurso de que o deslocado forçado precisa da língua portuguesa para conseguir trabalho, como se aprender o português fosse, per se, um meio de “salvação” desse imigrante é, ao mesmo tempo, uma forma de opressão e um equívoco. Há fatores sócio-historicos e econômicos, além de relações de poder, que influenciam o sucesso ou o fracasso de qualquer pessoa, os imigrantes inclusive – aí compreendidas clivagens de gênero, etnia, cor, status econômico, orientação sexual, religião, dentre outras. O imigrante precisa, a nosso ver, se conscientizar disso, da relação de poder existente por detrás da obrigatoriedade que sente/que lhe é imposta em aprender o idioma majoritário do Brasil. A partir daí, ele poderia ser capaz de perceber, por si mesmo, se precisa aprender (ou não) esse idioma – tendo em vista que alguns deles podem não se interessar pela aprendizagem da língua portuguesa – ou, ainda, conseguir criar estratégias de usá-lo a seu favor, para reconhecimento dos seus direitos e para luta por eles, por exemplo.

Além disso, devemos nos questionar os efeitos de sentido que o reforço da imagem do deslocado forçado como desamparado podem criar. Acreditamos que, com base nessa representação de desamparo, a área de PLAc acaba se firmando como um campo de “exercício da caridade”, exaltando o trabalho voluntário e julgando negativamente o professor que eventualmente venha a querer receber para executar aquele trabalho, e consequentemente isentando o governo de tomar as rédeas daquilo que, a nosso ver, deveria ser de sua responsabilidade. Ao mesmo tempo em que a sociedade civil assume o dever de amparar o imigrante deslocado forçado, em caráter emergencial, exercendo seu papel de cidadania, o Estado se acomoda141.

É por isso que acreditamos que a destotalização, a não-essencialização e não-vitimização do imigrante deslocado forçado no Brasil deva ser o primeiro passo a ser incorporado em qualquer proposta voltada para o ensino de PLAc, seguindo o pressuposto da Interculturalidade defendida por Maher (2007) e endossada por nós.

141 Conforme citamos anteriormente, algumas das próprias instituições que atendem esses imigrantes já se

questionam até quando elas terão que cobrir o trabalho que deveria ser responsabilidade do Estado. Disponível em: <http://www.aleteia.org/pt/politica/artigo/ate-quando-a-igreja-catolica-tera-que-realizar- os-trabalhos-que-o-governo-deveria-realizar-5811378887589888>. Acesso em: 21 jun. 2015.

Esse aspecto envolve considerar o grupo, sem perder de vista as individualidades, reconhecendo a heterogeneidade inter e intracultural desse público minoritarizado no Brasil (MAHER, ibidem.).

No contexto da sua pesquisa, que buscou observar aspectos do ensino de PLAc no contexto do Programa Portugal Acolhe – Português para Todos, Cabete (2010) também chegou a concluir que a não estereotipificação dos deslocados forçados é o primeiro passo a ser tomado. Segundo a autora,

Tendo em conta que qualquer processo de ensino-aprendizagem pretende ir ao encontro das necessidades e motivações do aprendente,

torna-se necessário conhecer um pouco melhor o público-alvo que pretende aprender o português, enquanto língua de acolhimento.

Para isso é necessário antes de mais desmistificar os traços gerais

que caracterizam esta comunidade. Ainda que cada indivíduo seja portador de características únicas que o distinguem de qualquer outro, existem no entanto algumas considerações gerais que se poderão fazer, sem cair em generalizações falaciosas.

Primeiramente, de uma forma geral, conclui-se, por um lado, que a

figura do imigrante não corresponde à imagem pré-concebida do indivíduo com mais parcos recursos económicos no seu país de origem e que, por outro lado, além das motivações económicas, outros factores o movem aquando a sua decisão de partir como a proximidade linguística, melhores condições, entre outros

(CABETE, 2010, p.108, grifos nossos).

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