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1.2 O ensino para grupos minoritarizados e a questão das territorializações

1.2.1 Territorialização, territorialidade e territorializações precárias

Conforme já adiantamos na seção anterior, o conceito de territorialização, de que trata Bizon (2013), tem suas raízes na Filosofia, com Deleuze & Guattari (1980), e na Georgrafia Crítica, com Haesbaert (2004). A autora lança mão de outros pressupostos teóricos para conceitualizar territorialização/territorialidade. Retomaremos, aqui, sucintamente, a discussão feita em sua tese, focalizando os referidos autores. A noção de territorialização é central para nosso trabalho, na medida em que representa nossa visão de apropriação do espaço pelos imigrantes deslocados forçados. Além disso, acreditamos que a língua portuguesa figure como um meio possibilitador – desde que associado a outros – de processos de territorialização menos precários (BIZON, 2013) por parte dos imigrantes deslocados forçados no Brasil.

Para Bizon (op. cit.), territorialização é o movimento de apropriação material e simbólica do território, concebido não apenas em sua dimensão física/geográfica/material, mas também como “ator e objeto da ação”13, resultado constante de atos ou agenciamentos. Em outras palavras, o território é construído e, simultaneamente, é um cenário de construção. Em uma das definições de território apresentadas por Bizon, a autora evoca as palavras de Guattari & Rolnik (1986):

A noção de território aqui é entendida num sentido muito amplo, que ultrapassa o uso que fazem dele a etologia e a etnologia [e a Geografia, deveríamos acrescentar] [...]. O território pode ser

relativo tanto a um espaço vivido quanto a um sistema percebido no seio do qual um sujeito se sente “em casa”. O território é

sinônimo de apropriação, de subjetivação fechada sobre si mesma14.

Conforme aponta Bizon (ibidem), a noção de território em Deleuze & Guattari, resumida pela passagem destacada acima, ultrapassa a visão do território simplesmente material/físico, compreendendo, também, outros aspectos, tais como o “território etológico ou animal, território psicológico ou subjetivo, território sociológico, território geográfico” (ibidem, p. 118). Nesse sentido, a territorialização – chamamos a atenção para o fenômeno enquanto verbo, ou seja, um processo, ação em constante movimento – pode acontecer em múltiplos contextos, e não apenas no material, pois, “desde que haja a conjunção entre os agenciamentos maquínicos de corpos e coletivos de enunciação, é possível territorializar em qualquer coisa” (ibidem, p. 118, grifos nossos). Nas palavras de Haesbaert (2004),

o território pode ser construído em um livro a partir do agenciamento maquínico das técnicas, dos corpos da natureza (as árvores), do corpo do autor e das multiplicidades que o atravessam; e do agenciamento coletivo de enunciação, nesse caso, um sistema sintático e semântico, por exemplo. Cria-se um território dos Krenak, onde agenciamentos maquínicos de corpos estão fixados diretamente na Terra, onde a circulação dos fluxos desejantes se inscreve diretamente na Terra. Criam-se agenciamentos coletivos de enunciação para recortar o Sol e a Lua, por exemplo, e fixar-lhes atributos15.

Podemos entender, grosso modo, que se o território é “sinônimo de apropriação”, conforme destacado pela passagem de Guattari & Rolnik16, e apropriar-se de algo pressupõe uma agência, “a territorialidade é, portanto, característica central dos agenciamentos” (BIZON, 2013, p. 118). Além do agenciamento, a autora aponta outras duas dimensões componentes dos territórios: a desterritorialização e a reterritorialização – um movimento constante de des(re)territorialização. Para a autora, “a criação implica sempre uma destruição. É necessário desterritorializar para reterritorializar” (ibidem, p.118), ou seja,

[...] os territórios sempre comportam dentro de si vetores de desterritorialização e reterritorialização. Muito mais do que uma coisa ou objeto, o território é um ato, uma ação, uma rel-ação, um

14 GUATTARI & ROLNIK, 1986, p. 323 apud BIZON, 2013, p.118, grifos nossos.

15 HAESBAERT, 2004 apud BIZON, 2013, p. 118.

movimento (de territorialização e desterritorialização), um ritmo, um movimento que se repete e sobre o qual se exerce um controle17.

É preciso frisar que esses movimentos de des(re)territorialização são múltiplos. Na interpretação de Bizon (2013), pode haver desreterritorializações na imobilidade e territorializações em movimento. Como exemplo, a autora destaca que “[o]s campos de concentração nazistas, por exemplo, são casos de uma desterritorialização in situ ou na imobilidade, enquanto os nômades, mesmo sem um território fixo, territorializam ao longo de seus trajetos” (ibidem, p. 119). Nesse sentido, entendemos que o(s) movimento(s) de des(re)territorialização pode(m) acontecer em decorrência de agenciamentos, de certa forma, voluntários (como no caso dos nômades, para utilizar o exemplo da autora), ou involuntariamente (como no caso dos judeus nos campos de concentração nazistas). É nesse sentido que, segundo Bizon (op. cit.), Haesbaert (2004) considera os territórios como espaços políticos, “demarcados pelas relações de poder”, comportando os sentidos de dominação (material/geográfica) e apropriação (experiências vividas/ valores de uso/ simbólica).

Portanto, o território, referindo-se centralmente à espacialidade das relações de poder, envolve sempre a ideia de controle de uma área e de agência e luta em favor da dominação e da apropriação dos espaços de toda ordem, dado que “todo território é, ao mesmo tempo e obrigatoriamente, em diferentes combinações, funcional e simbólico, pois exercemos domínio sobre o espaço tanto para realizar ‘funções’ quanto para produzir “significados”18.

Bizon (2013), no entanto, nos alerta para a diferenciação entre os termos

território e territorialidade. Segundo a autora, território é “construção social e política que abarca diferentes instâncias de espacialidade (materiais e simbólicas)”, enquanto territorialidade seria o “processo por meio do qual são construídos os territórios, [que] não necessita de uma construção material” (ibidem, p. 122, grifos nossos). Para melhor explicar essa ressalva, a linguista aplicada retoma as seguintes palavras de Haesbaert (2011):

embora todo território tenha uma territorialidade (tanto no sentido genérico de “qualidade de ser território” quanto no de sua dimensão simbólica), nem toda territorialidade – ou se quisermos também, aqui, espacialidade – possui um território (no sentido de sua efetiva

17 HAESBAERT, 2004 apud BIZON, 2013, p. 118, grifos no original.

construção material). O caso da “Terra Prometida” dos judeus é sempre o primeiro exemplo que nos vem à mente, pois a uma referência sobre um espaço simbólico não correspondia um território em seu sentido material [...]19.

Não podendo desconsiderar a relação de poder político-econômica que perpassa territórios e territorialidades/territorializações, é preciso relembrar que, segundo Haesbaert (2004),

é evidente que, como toda relação de poder, a territorialização é

desigualmente distribuída entre seus sujeitos e/ou classes sociais e,

como tal, haverá sempre, lado a lado, ganhadores e perdedores, controladores e controlados, territorializados que desterritorializam por uma reterritorialização sob seu comando e desterritorializados em busca de uma outra reterritorialização, de resistência e, portanto, distinta daquela imposta por seus desterritorializadores. Esta constatação, muito mais do que um mero jogo de palavras, é extremamente importante, pois implica identificar e colocar em

primeiro plano os sujeitos da des-re-territorialização, ou seja, quem des-territorializa quem e com que objetivos. Permite também

perceber o sentido relacional desses processos mergulhados em teias múltiplas onde se conjugam permanentemente distintos pontos de vista e ações que promovem aquilo que podemos chamar de territorializações desterritorializantes e desterritorializações reterritorializadoras20.

Essa passagem indica que as territorializações − perpassadas por relações de poder, de diferentes ordens político-econômicas − podem ser determinadas e controladas por grupos que detêm o poder. Portanto, é necessário questionar “quem delimita ou controla esse espaço e quais podem ser as consequências desse processo”, isso porque

Quando definimos o território de alguém, ou seja, quando ele é de

alguma maneira imposto, muito mais que construído, não há uma territorialização de fato, pois ser “territorializado” sem opção ou sem grandes interferências ou agências significa desterritorializar-se (BIZON, 2013, p.123, grifos nossos).

Sob esse ponto de vista, Bizon (op. cit.) afirma que a resistência é indispensável em processos de reterritorialização, no sentido de combater/ deixar nossas marcas (na)aquilo que nos é pré-determinado, uma vez que, “quando não exercemos efetivo domínio e apropriação sobre o território, mesmo quando ocupamos um

19 HAESBAERT, 2011, p. 51 apud BIZON, 2013, p.122.

espaço físico aparentemente bem definido, continuamos desterritorializados.” (BIZON, 2013, p. 123, grifos nossos). Relembramos que a primeira característica das territorializações/territorialidades, enquanto processo, é o agenciamento – ou seja, esse campo e possibilidade de resistência. Se, de alguma forma, esse agenciamento, em forma de resistência, for interrompido ou inexistente, mesmo se o indivíduo estiver posicionado em “espaços físicos aparentemente bem definidos”, conforme se refere a autora, este é um processo considerado por Haesbaert (2004) como territorialização

precária (BIZON, 2013).

Para explicar melhor o conceito de territorialização precária, é preciso retomar a noção de multiterritorialidades de Haesbaert (op. cit), dicutida por Bizon (2013). Em diálogo com Deleuze & Guattari, o autor argumenta que, em nossas vidas estamos, constantemente, envolvidos em processos de des(re)territorializações, tão incessantemente que ele considera ser impossível haver uma desreterritorialização completa. Nesse sentido, Haesbaert (2004) acredita que existam multiterritorialidades ou, como sintetiza Bizon (op. cit.), “um entrecruzamento de diferentes territórios ou em um encaixe de vários territórios em diferentes dimensões ou escalas (a família, o trabalho, a nação etc.)” (ibidem, p. 124). Como todo espaço político, as multiterritorialidades não são isentas de conflitos, existindo, segundo Bizon (op. cit.), uma multiterritorialidade potencial (a possibilidade de ser acionada ou construída) e uma multiterritorialidade efetiva (a que se realiza de fato). Assim,

as implicações políticas desta distinção são importantes, pois sabemos que a disponibilidade do “recurso” multiterritorial – ou a

possibilidade de ativar ou de vivenciar concomitantemente múltiplos territórios – é estrategicamente muito relevante na atualidade e, em geral, encontra-se acessível apenas a uma minoria. Assim, enquanto

uma elite globalizada tem a opção de escolher entre os territórios que melhor lhe aprouver, vivenciando efetivamente uma

multiterritorialidade, outros, na base da pirâmide social, não têm

sequer a opção do “primeiro” território, o território como abrigo,

fundamento mínimo de sua reprodução física cotidiana21.

Nesse sentido, podemos afirmar que os imigrantes deslocados forçados − neste caso, material e simbolicamente desterritorializados − encontram-se em outro espaço em busca de novas reterritorializações, empreendendo um movimento perpassado por relações de poder, conflitos e contradições. Muitos dos deslocados

forçados, conforme discutiremos na seção 2.2 do capítulo II, já são destituídos desse primeiro território sobre o qual trata Haesbaert (2004) na passagem destacada. Diante disso, é preciso se questionar como (ou se) lhes está sendo dado o direito a uma multiterritorialização, ou se estamos diante de processos de reterritorializações precárias, relegando essas pessoas a um estado de constante desreterritorialização, presas em um universo da multiterritorialidade potencial, que dificilmente se efetiva. Assim como Bizon (2013), concordamos com Haesbaert (2004) que

o que efetivamente importa é estar “livre para abrir e fechar” territórios, ter a capacidade – ou a escolha – para aí entrar, sair,

passar ou permanecer, de acordo com sua necessidade ou vontade. Isto significa termos o poder de tornarmo-nos mais ou menos “controlados”, de fazer as articulações ou conexões que nos

aprouver, dotando assim de significado ou de “expressão” própria o nosso espaço22.

Acreditamos que, como primeiro passo para a mudança desse cenário, ou seja, para que tenhamos a capacidade de controlar nossos espaços, precisamos tomar consciência de nossa condição social, de como somos posicionados e como pode(ría)mos nos posicionar23 em nossos processos de des(re)territorialização. Isso significa dizer que, a nosso ver, devemos ser capazes de lutar por acesso a multiterritorialidades efetivas.

No caso específico desta pesquisa, acreditamos que o ensino de PLAc possa figurar como um território de politização24, que possa levar à promoção de

territorializações menos precárias por parte de imigrantes deslocados forçados no Brasil. É preciso ponderar que, por si só, o PLAc não seria suficiente para garantir multiterritorialidades efetivas; no entanto, endossamos a convicção de Maher (2007) de que um ensino empoderador, sob a perspectiva da Interculturalidade, associado a avanços na legislação em favor dessa população, e, ainda, à educação do entorno (MAHER, op. cit.), seria crucial no sentido de promover “processos de reterritorializações socialmente mais justos e dignos” (LOPEZ & DINIZ, 2016, no prelo, s/p).

22 HAESBAERT, 2004, p. 361 apud BIZON, 2013, p. 126, grifos nossos.

23 Para um aprofundamento sobre a questão do posicionamento, cf. a discussão “Posicionamento: onde

afloram performances e performatividades” em Bizon (2013, pp. 87-96).

24 A nosso ver, é isso que procuram fazer vertentes teóricas como a Pedagogia Crítica, baseada

principalmente em Freire (2015 [1996]), embora talvez não com tanta ênfase na questão dos territórios e das territorializações.

É para a discussão dessa proposta que dedicamos a próxima seção deste capítulo.

1.2.2 Problematizando o ensino para grupos minoritarizados: considerações à luz da

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