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Panorama da migração de deslocados forçados em números: no mundo e no Brasil

DESLOCADOS FORÇADOS E A LEGISLAÇÃO VIGENTE NO BRASIL

2.3 Panorama da migração de deslocados forçados em números: no mundo e no Brasil

No século XXI, temos assistido ao fenômeno da globalização, que pode ser entendido, em uma de suas definições, como a “crescente aceleração dos movimentos de pessoas, mercadorias e ideias entre diferentes países e regiões”, cada vez mais presente nos discursos em diversas áreas da sociedade, principalmente depois do advento das tecnologias da informação (MATTOS, 2014, p. 104). Entretanto, conforme destacado na seção anterior, apesar da aparente livre circulação divulgada pelo sistema de globalização neoliberal, verifica-se que as fronteiras podem ser bastante sólidas e limitadas para as vítimas de migrações forçadas. Segundo dados da ONU, a população mundial alcançou, em 2015, a marca dos 7.349.472 de pessoas. O mais recente relatório populacional sobre migrações internacionais da ONU, revela que, à parte dos deslocados forçados, 244 milhões de pessoas migraram internacionalmente no ano de 2015 – o que corresponde à aproximadamente 3.3% da população mundial daquele ano (ONU, 2015). De acordo com este mesmo relatório, em 2015, 67% dos migrantes internacionais concentravam-se em apenas 20 países do globo. Para este total de migrantes, os principais destinos foram a Europa (76 milhões), Ásia (75 milhões) ou América do Norte (54 milhões) (ONU, 2015, p.1).

É interessante observar que as rotas de migrações de migrantes internacionais provenientes da mesma região (major area) de desenvolvimento aumentou consideravelmente se comparados aos dados da ONU de 2013. Em 2015, a maioria dos migrantes que viviam na África (87%), Ásia (82%), América Latina e Caribe (66%) e Europa (53%) advinham do mesmo continente (ONU, 2015, p. 1), ao passo que, em 2013, dos 136 milhões de migrantes vivendo no Norte, 60% eram migrantes provenientes de países em desenvolvimento, ou seja, do Sul54 (ONU, 2013, p.1). Tais tendências de migração internacional entre Norte-Sul são representadas pelo gráfico ilustrado pela Figura 1, organizado pela ONU em 2013.

Observa-se, pelo gráfico representado pela Figura 1, adiante, que a tendência no aumento das migrações Sul-Sul a partir dos anos 2000, acompanha a inclinação das migrações Sul-Norte, ou seja, há um aumento das relações migratórias

54 Entendemos que as relações Norte-Sul são complexas. Estar no Norte ou no Sul não automaticamente

implica desenvolvimento ou baixo desenvolvimento. Além disso, cada vez mais, as relações de migração Sul-Sul vem se estreitando e, muitas vezes, países do “Sul” são vistos como um “Norte” para outros países do Sul. Para uma discussão mais ampla entre relações Norte-Sul, ou Sul-Sul, cf. DINIZ & BIZON (2015).

entre países da mesma área de desenvolvimento. Os dados das migrações de 2015 confirmam a previsão da ONU (expressa pela Figura 1, de 2013) que antecipavam o aumento dessas migrações55.

FIGURA 1 – Número de migrantes internacionais por origem e destino, 1990-2013 (em milhões)

Fonte: United Nations, Department of Economic and Social Affairs (2013). Trends in International Migrant Stock: The 2013

Revision-Migrants by Destination and Origin (United Nations database, POP/DB/MIG/Stock/Rev.2013/Origin).

Nota: Adaptado para português.

No contexto das migrações forçadas, os fluxos migratórios vão ao encontro da previsão da ONU (2013), principalmente no que tange às relações Sul-Sul. Segundo o mais recente relatório do ACNUR (2016), atingiu-se, em 2015, o maior recorde já registrado de deslocados forçados no mundo: 65,3 milhões de pessoas, dentre deslocados internos, refugiados e solicitantes de asilo (ACNUR, 2016). A maioria desses deslocados forçados vem de países pouco ou subdesenvolvidos e, ao contrário do que se pensa e do que é veiculado na mídia – principalmente sobre a situação na Europa

55 É importante salientar que, pelas relações questões político-sociais complexas, e não apenas

geográficas, que envolvem a categorização entre Norte e Sul, a ONU, aparentemente, não mais usa em seus relatórios esses termos, mas, sim, os termos região (major área), países/áreas em desenvolvimento e

e a suposta invasão de imigrantes56, muitas vezes referida como ondas de imigração57 86% do total desses imigrantes encontra-se em regiões também não desenvolvidas ou

em desenvolvimento, sendo a Turquia o país que mais acolheu esses migrantes (2,5 milhões) em 2015 (ACNUR, 2016, p. 2).

Ainda segundo a base de dados do ACNUR, do total de 65,3 milhões de pessoas deslocadas forçadas em 2015, 40,8 milhões eram deslocados internos, 21,3 milhões o refugiados e 3,2 milhões requerentes de asilo (ACNUR, 2016, p. 2). Seguindo uma tendência que tem se mantido significativa nos últimos anos (SANTOS, 2014, p. 28), 51% do número total de refugiados eram compostos por crianças e adolescentes menores de 18 anos de idade (ACNUR, 2016, p.3), sendo que 98.400 – maior número desde 2006 – eram crianças desacompanhadas ou separadas de suas famílias que figuravam entre o total de 3,2 milhões de requerentes de asilo (ibidem).

Embora os 65,3 milhões de deslocados forçados não somarem nem 1% da população mundial, este número representa que uma média de 24 pessoas por minuto se deslocaram forçadamente em 2015, uma número assustadoramente alto. Hipoteticamente, caso esses deslocados forçados formassem uma nação, esta seria a 21º maior do mundo em número de habitantes (ACNUR, 2016, p. 2), somente para ilustrar a dimensão da situação. Além disso, se considerarmos que esses dados não contemplam – conforme foi discutido na seção anterior deste capítulo – outros migrantes deslocados forçados, como muitos dos considerados migrantes econômicos, além daqueles não documentados ou que não estão sob a supervisão do ACNUR, podemos imaginar que a situação real seja ainda mais alarmante.

No contexto brasileiro, há atualmente, até o fechamento desta pesquisa, 8.863 refugiados reconhecidos, de 79 nacionalidades diferentes, sendo Síria, Angola, Colômbia, República Democrática do Congo e Palestina os países de origem cujos números de imigrantes são mais expressivos no Brasil (CONARE, 2016). Esse número de refugiados reconhecidos no país expressa um aumento significativo de 127%, se comparado aos 3.904 em 2010 (FIGURA 2). Dentre os refugiados reconhecidos, a

56 Como exemplos desses discursos da mídia, conferir as notícias disponíveis em:

<http://g1.globo.com/mundo/noticia/2016/08/como-o-mundo-ve-alemanha-um-ano-apos-crise-

migratoria.html>, <http://ultimosegundo.ig.com.br/mundo/2016-07-21/crise-europa.html>,

<https://paniscumovum.blogspot.com.br/2016/02/onda-de-imigracao-na-europa-capa-de.html> e

<http://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2015/09/06/um-olhar-sobre-a-pior-crise-de- migracao-desde-a-segunda-guerra-mundial.htm>. Acessos em: 28 ago. 2016.

57 Geralmente, o discurso da mídia representa processos imigratórios como “ondas”, “invasões” e outras

terminologias que remetem à fenômenos que não se pode controlar. A esse respeito, cf. Van Dijk (1997, 2000).

maioria são homens (71,8%) jovens, com idade entre 18 e 29 anos (42,6%). Apesar do considerável aumento no número de reconhecimento de casos de refúgio no país (FIGURA 2) e sua política de concessão de vistos humanitários – sobre a qual discorreremos melhor na próxima seção deste capítulo –, o Brasil ainda figura, segundo o ACNUR, como um dos países que menos acolhe refugiados no mundo (CHADE, 2016). Dos 197 países avaliados, o Brasil figura, negativamente, como a 137ª nação em acolhimento, apresentando uma taxa de 0,04 refugiados por cada mil habitantes, em contraste com o Líbano que atualmente tem 183 refugiados por mil habitantes, seguido da Jordânia, com 87, e Nauru, com 50 refugiados para cada mil habitantes. No quesito extensão geográfica, o Brasil ocupa a 148ª posição, com 1 refugiado para cada mil quilômetros quadrados (ibidem).

FIGURA 2 – Refugiados reconhecidos no Brasil (total acumulado)

Fonte: Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE, 2016, p.10)

No entanto, o Brasil recebe um número relativamente alto de solicitações de refúgio, se comparado com o seu número de refugiados reconhecidos. No ano de 2015, o Brasil recebeu 28.670 solicitações, um número 2.868% maior do que o montante de 966 de solicitações recebidas em 2010 (CONARE, 2016). No total acumulado, até março de 2016, os haitianos lideravam como país de origem com maior número de solicitações de refúgio no país, seguidos pelos senegaleses, sírios, bengalis e nigerianos (FIGURA 3). Os solicitantes são, em sua maioria, homens (80,8%) e com idade entre 18 a 29 anos (48,7%).

FIGURA 3 – Solicitações de refúgio, por país de origem (total acumulado)

Fonte: Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE, 2016, p.5)

Faz-se importante esclarecer que, apesar de darem entrada no país como solicitantes de refúgio/asilo, em razão de limitações na legislação, muitos desses imigrantes não se enquadram na categoria jurídica brasileira de refugiado. Destes, alguns são contemplados por outras categorias de vistos de caráter especial, como é o caso de imigrantes haitianos, senegaleses e bengalis58, e os demais têm seus pedidos indeferidos. Nesse sentido, a quantidade de imigrantes que solicitaram refúgio no país e acabaram não sendo reconhecidos como tal é quase proporcional à quantidade de refugiados reconhecidos no país. Isso pode ser percebido pela número de indeferimentos de solicitações de refúgio ao longo dos anos 2010-2015, que foi de 4.341, em 2010, para os 6.817 indeferimentos em 2015 (CONARE, 2016, p.13). Segundo dados do CONARE (2016), os países cujos imigrantes lideram os casos de recusa de reconhecimento de situação de refúgio são Colômbia, Romênia, Angola, Guiné-Bissau e Líbano (FIGURA 4).

Além de significarem, evidentemente, que o imigrante não foi qualificado pela lei brasileira como refugiado, os indeferimentos indicam que esses sujeitos tampouco foram recomendados para receberem outros tipos de permanência no país, a exemplo do visto de caráter humanitário. Chegamos a essa conclusão pela ausência de

58 A situação dos haitianos é peculiar pelo histórico estabelecido entre os dois países desde 2004, quando

o Brasil assumiu a coordenação da Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (MINUSTAH). A imigração haitiana no Brasil se tornou expressiva a partir de 2010, após o terremoto que atingiu drasticamente aquele país. Devido a essa relação, os pedidos de refúgio dos haitianos são encaminhados ao Conselho Nacional da Imigração (CNIg) que decide pela concessão de vistos de caráter humanitário aos nacionais do Haiti. Também são contemplados com vistos humanitários os senegaleses e bengalis (CAVALCANTI et. al., 2015, p. 48). Esse tópico será mais explorado na próxima seção deste capítulo.

dados de haitianos, senegaleses e bengalis, por exemplo, no gráfico elaborado pelo CONARE sobre os indeferimentos, expresso pela Figura 4.

FIGURA 4 – Indeferimentos da condição de refugiado no Brasil, por país de origem (total acumulado)

Fonte: Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE, 2016, p.14)

Sabe-se que aos nacionais destes países – Haiti, Senegal e Bangladesh – é concedida a permanência através de outros instrumentos legislativos e, apesar de serem negados a condição de refúgio, não lhes é vetado o asilo no país. Consequentemente, como estas nacionalidades não se encontram nos dados do gráfico de indeferimentos (FIGURA 4), acreditamos que as nacionalidades apresentadas representam imigrantes que realmente não conseguiram o direito de permanecer legalmente no país. Tal fato, a princípio, pode não expressar problema algum. No entanto, principalmente com base no que foi discutido na seção anterior deste capítulo – e no conceito de multerritorialidades59, discutido no capítulo I – e perante o baixo número de refugiados reconhecidos no país, cabe-nos questionar, diante desse panorama, qual seria a real razão, à parte da legislação, pela qual esses imigrantes não tiveram suas solicitações de refúgio atendidas. Infelizmente não temos dados e espaço suficientes para responder a tal questionamento. Sem mencionar a situação de haitianos e demais imigrantes que recebem vistos especiais por razões humanitárias, indagamo-nos se os imigrantes que tiveram suas solicitações de refúgio indeferidas realmente não estão em uma situação em que deveriam receber proteção do Estado. Isso só poderia ser verificado se dispuséssemos de uma legislação que reconhecesse um conceito mais amplo e

abrangente de deslocado forçado. Acreditamos que uma análise individualizada do processo de solicitação de refúgio e uma ampliação das categorias jurídicas de refúgio e de outros vistos de caráter especial possam ser caminhos para uma política de imigração inclusiva para os deslocados forçados no Brasil.

No que diz respeito à imigração de outros deslocados forçados reconhecidos no país, as estimativas do CNIg não são definitivas. Em nota à imprensa, o Ministério da Justiça e Cidadania (MJC) assumiu que o Brasil abriga, atualmente, cerca de 85 mil habitantes haitianos (MJC, 2016). Apesar de o número desses imigrantes ser bastante elevado, se comparado ao número de refugiados reconhecidos, não há, pelo menos não evidentemente, uma organização dos dados da sua imigração60, o que pode ser interpretado como uma falta de visibilidade dessa população. Talvez, se tivéssemos uma legislação mais abrangente, esses imigrantes seriam incluídos não apenas nos dados, mas no escopo da proteção e status recebido pelos refugiados.

Para que seja possível entender melhor esta última consideração, passaremos, na próxima seção, a tratar a questão da legislação vigente no Brasil voltada para os refugiados e outros deslocados forçados.

2.4 Legislação vigente no Brasil voltada para imigrantes deslocados forçados

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