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Problematizando o ensino para grupos minoritarizados: considerações à luz da Interculturalidade

1.2 O ensino para grupos minoritarizados e a questão das territorializações

1.2.2 Problematizando o ensino para grupos minoritarizados: considerações à luz da Interculturalidade

Maher (2007) faz ponderações que nos interessam bastante nesta pesquisa. A autora acredita ser fulcral, para o planejamento de programas educacionais direcionados a grupos minoritarizados25 – num sentido político, e não demográfico, do termo, como ressalva a autora –, que alguns elementos sejam tomados em conta: a necessidade do empoderamento, politização ou fortalecimento político desse grupo, alinhado com ações de educação do entorno e da presença de legislações favoráveis a esse grupo. Essa proposta de Maher (ibidem) se sustenta em uma visão crítica de educação, amparada pela perspectiva do Multiculturalismo ou, como a autora prefere, da Interculturalidade. Considerando que os princípios defendidos por Maher também podem ser fundamentais para o ensino de línguas adicionais para grupos compostos por imigrantes também minoritarizados – como é o caso dos deslocados forçados no Brasil, trataremos, ao longo desta seção, dos três “cursos de ação” (ibidem, p. 257) apontados pela autora para a proposta de projetos emancipatórios voltados para grupos minoritarizados: a politização ou fortalecimento político, a educação do entorno e avanços na legislação favorável a esses grupos.

Sobre o primeiro curso de ação, Maher (op. cit.) prefere usar o termo

politização ou fortalecimento político, em detrimento de empoderamento, para se referir ao “deslocamento ideológico” necessário para o reconhecimento e a legitimação de seus direitos, modos de ser/comportar ou de falar, consequentemente dando voz e visibilidade para alguma população minoritarizada. Segundo a autora, empoderamento é um termo que, apesar de importante para a LA – a nosso ver, principalmente aquela Crítica (RAJAGOPALAN, 2006), Transgressiva (PENNYCOOK, 2006) ou Indisciplinar (MOITA LOPES, 2006) –, vem sendo equivocadamente utilizado e, como consequência, tendo seu sentido, cada vez mais, esvaziado.

No entanto, conforme já nos referimos anteriormente, Maher (2007) acredita que, embora essencial, o conhecimento dos seus próprios direitos por parte de um

25 Preferimos adotar, aqui, o termo minoritarizado no lugar de minoritário, com vistas enfatizar a

condição de “minoritário” como consequência de um processo sóciohistórico e político de opressão, de destituição de direitos e/ou acessos, transpassado por relações de poder.

referido grupo minoritarizado não é suficiente para que as pessoas que o compõem possam, de fato, usufruírem de tais direitos. Para isso, podem ser fundamentais avanços na legislação. Num mundo ideal, dispondo de uma legislação que contribuísse para diminuir um pouco da desigualdade político-social enfrentada por esse grupo, conscientes sobre seus direitos e da legitimidade de suas demandas, bem como de suas características linguísticas e comportamentais – isso porque a autora refere-se a programas de cunho linguístico-culturais –, a população monoritarizada estaria num curso favorável para o exercício efetivo de tais direitos.

É preciso considerar, porém, que a garantia de certos direitos não implica, necessariamente, no seu exercício. No caso dos imigrantes deslocados forçados – grupo de interesse dos subsídios discutidos nesta pesquisa –, o conhecimento de que eles devem ter acesso aos mesmos direitos e serviços que os brasileiros nativos ou naturalizados, segundo o que prevê a legislação26, não é suficiente para que eles sejam tratados como tais. Mesmo quando de posse da documentação que lhes permite trabalhar no país, por exemplo, frequentemente, não conseguem um trabalho à altura de sua qualificação, como destacam Fernandes et. al. (2014b), ainda que haja vagas disponíveis, e estão mais propensos a sofrerem episódios de violações laborais27. Isso nos leva a discutir o terceiro ponto apresentado por Maher (2007): a educação do entorno, sustentada pela lógica da Interculturalidade. Para que seja possível discutirmos a educação do entorno, é necessário, primeiramente, discutir os conceitos de cultura e de multiculturalismo.

Para Maher (op. cit.), cultura não é algo, uma coisa que possa ser apropriada, ou, ao contrário, enfraquecida ou perdida (ibidem, p. 267). Para a autora, cultura pode ser entendida como um verbo, um processo de constante (re)construção de significados, responsável por definir “palavras, conceitos, categorias, valores” (ibidem, p. 262). Analogamente, Gee (1999) acredita na existência do que ele considera como “modelos culturais”, que podem ser entendidos por imagens, histórias ou descrições de mundos simplificados nas quais eventos prototípicos são revelados. Esses modelos são constituídos por um conjunto de pressupostos culturais e sociais que, envolvendo formas apropriadas comuns e/ou “normais” de agir, projetam pontos de vista sobre o

26 No terceiro capítulo, trataremos dos principais instrumentos legais em favor da população composta por

deslocados forçados no Brasil.

27 O Grupo de teatro Benkadi, composto por imigrantes malineses, lançou, em outubro de 2016, o

documentário de curta-metragem “Cenas da Construção” em que denunciam a situação de exploração laboral enfrentada por imigrantes de nacionalidades africanas no contexto da construção civil no Brasil. Disponível em: <http://reporterbrasil.org.br/2016/10/cenas-da-construcao/>. Acesso em: 26 out. 2016.

que é certo ou errado e o que pode ou não pode ser feito no mundo. Nas duas perspectivas, a cultura pode ser entendida como as lentes pelas quais olhamos/entendemos qualquer coisa no mundo e, também, os sapatos que calçamos para trilhar os caminhos desse mundo – ou como bússolas, como ilustra Maher (2007, p. 262).

É preciso ressaltar que as culturas, enquanto processos sócio-historicamente localizados, não são estáticas. Ao contrário, estão em constante ressignificação e nunca formam um todo acabado, “porque a cultura não é só pensada, ela é vivida” (MAHER, 2007, p. 262). Da mesma maneira, não são automaticamente partilhadas igualitariamente por seus membros, pois uma cultura nunca “forma um todo homogêneo, integrado, coerente” (ibidem, p. 262) e, por esse motivo, a cultura é palco de constantes disputas. Dessa forma, a cultura é compreendida, como

uma multiplicidade de discursos, em interação ou em disputas,

dentro de um complexo sistema de configurações, de manipulação e de produção de políticas culturais. Daí só ser possível falarmos em

“cultura nacional” enquanto conjunto de representações, nunca como um dado da realidade. Pois, se a cultura não é uniforme, se ela é

sempre alvo de disputas, quem falaria em nome de todos? O que seria tomado como padrão dessa totalidade que é heterogênea? E,

assim sendo, também, nada justifica considerar qualquer indivíduo

como emblema, encarnação de sua cultura (MAHER, 2007, p. 262-

263, grifos nossos).

Essa noção de cultura está em consonância com a ótica do

Multiculturalismo Crítico, ou da Interculturalidade, tal como considera Maher (2007). Trata-se de uma visão sobre o fenômeno do pluriculturalismo na educação que surge como resposta a duas outras perspectivas de multiculturalismo: o conservador e o liberal. Descreveremos, sumariamente, essas duas vertentes do Multiculturalismo, para, depois, tratarmos da sua perspectiva crítica/intercultural, dada a sua importância para a prática da educação do entorno – um dos conceitos fundamentais para essa pesquisa.

Diferentemente da sua concepção liberal, o Multiculturalismo Conservador28 enxerga a interculturalidade na educação como algo negativo. Por esse motivo, acredita que o papel da escola seja “contribuir para a assimilação dos grupos sociais que julgam inferiores à ordem estabelecida”, elegendo práticas escolares eurocêntricas e deslegitimando crenças, valores, conhecimentos, línguas não

hegemônicos (MAHER, op. cit., p. 259, grifos nossos). Por mais radical que esse posicionamento possa parecer, Maher (ibidem) afirma que existem adeptos a essa corrente, manifestada em movimentos como o English Only, nos Estados Unidos, cuja premissa é que programas de educação bilíngue para as comunidades de hispanofalantes naquele país sejam exterminados porque, segundo seus defensores, ameaçariam o inglês e, ao mesmo tempo, impossibilitariam a assimilação étnica e linguística desses grupos minoritarizados à cultura estadunidense (ibidem).

O Multiculturalismo Liberal, por sua vez, assim como o Crítico, advoga pela inter/multiculturalidade; no entanto, assume uma posição que tende ao apagamento das diferenças. Segundo Maher (op. cit.), dentro dessa perspectiva liberal, há dois grupos de posicionamentos distintos: um advogado da universalidade; outro, da diferença. Aqueles que compartilham do princípio da universalidade, embora assumam a existência de diferenças, acreditam que todos os seres humanos são igualmente competentes intelectualmente e desconsideram as relações de poder que perpassam as questões sociais. Nessa perspectiva, se todas as pessoas tivessem as mesmas oportunidades, competiriam igualitariamente pelo seu sucesso acadêmico-profissional. No entanto, como ressalva Maher (ibidem),

[e]ssa ênfase na eqüidade e na meritocracia individual abre espaço para posturas que culpam a própria vítima pelo fracasso escolar: se o indivíduo falhou é porque não estava motivado o suficiente, não se esforçou o suficiente para aprender (Kubota, 2004). Acredita-se, equivocadamente, que todos os seres humanos são totalmente “livres” para fazer suas escolhas. Mas não são. Suas escolhas [...] são determinadas, são condicionadas por fatores sociopolíticos mais amplos. Não é como se um aluno proveniente de um grupo marginalizado pudesse, sempre e livremente, optar entre motivar-se, ou não, para a aprendizagem; esforçar-se, ou não, por aprender. Porque não há como desassociar a diferença das relações de poder:

são essas últimas que criam e preservam a primeira (MAHER,

2007, p. 259).

Como se pode perceber, essa perspectiva desconsidera as relações de poder que existem nas diferenças culturais e, consequentemente, ainda de acordo com Maher (op. cit.), banalizam a diversidade e a noção de “educação multicultural” – considerando-a como apenas algo politicamente correto –, acabando por enaltecer apenas “aquilo que está na superfície das culturas (comidas, danças, música), sem conectá-las com a vida real das pessoas e de suas lutas políticas” (ibidem, p. 260). Concordamos com a afirmação de Maher (2007) de que, nessa visão do

Multiculturalismo de vertente Liberal, a diferença é apenas tolerada e, assim, “cria-se uma igualdade ilusionista, enquanto mantêm-se as relações de poder existentes às quais, espera-se, as pessoas marginalizadas possam ser assimiladas”29.

Por outro lado, o ponto de vista não-universalista do Multiculturalismo Liberal tende a reafirmar e, ao mesmo tempo, a essencializar a diferença. Nesse prisma, elegem-se representantes “autênticos” dos grupos minoritarizados a partir de certas experiências. Uma amostra da artimanha desse pensamento totalizante seria, por exemplo, a ideia de que, “índio que se preza fala uma língua indígena – o índio monolíngue em língua portuguesa é ‘índio falso’” (ibidem, p. 268). Além dessa tendência “essencializante”30, outro caráter desse pensamento é entender a população minoritarizada como um todo homogêneo, “isento de contradições ou equívocos”, num sentido de santificação dessas pessoas (MAHER, op. cit., p. 260-261). Para a autora,

[...] estamos todos inseridos em formações discursivas e ideológicas muito complexas e, ainda que nossas experiências coletivas sejam

importantes na construção de nossa identidade política, essas experiências precisam ser analisadas no interior dessas formações

(MAHER, 2007, p. 261, grifos nossos).

Para Maher (op. cit.), na base das compreensões de Multiculturalismo Conservador e Liberal, está a conceituação equivocada de cultura. Com base naquilo que pressupõem, percebe-se que as referidas abordagens consideram cultura como algo finalizado, um todo homogêneo que pode, consequentemente, ser apropriado e compartilhado por um grupo.

Na contramão dessas perspectivas, que desconsideram as questões de poder que envolvem as culturas e as relações culturais, surge o Multiculturalismo Crítico ou a

Interculturalidade– conceito fundamental para o entendimento da prática da educação

do entorno, sobre a qual trataremos mais adiante nesta seção. A nosso ver, essa concepção alinha-se com os preceitos da LAI, sobre a qual tratamos na seção 1.1 deste capítulo, na medida em que reconhece “o caráter dinâmico, híbrido, não-consensual e não hierarquizável das culturas” e “traz para o centro do debate as diferenças de forças entre os diferentes grupos culturais” (MAHER, 2007, p. 264). Em diálogo com Semprini (1999), Maher (2007) apresenta quatro princípios que orientam o Multiculturalismo Crítico, a saber: “a) a realidade é uma construção; b) as

29 KUBOTA, 2004, p. 36 apud MAHER, op. cit., p. 260.

30 Para Maher (2007), essa essencialização gera um efeito colateral de separatismo ou guetização dos

interpretações são subjetivas e construídas discursivamente; c) os valores são relativos; e d) o conhecimento é um ato político” (MAHER, ibidem, p. 264).

Enquanto prática anti-hegemônica, o Multiculturalismo Crítico reconhece a importância e a inclusão de outras formas de conhecimento, além do oficial, em práticas investigativas e educativas. Além disso, o foco é sempre o questionamento das relações de poder que perpassam as diferenças culturais, buscando, conforme advoga Maher (2007), ecoando Fleury (2003), uma educação que “contribua para promover uma leitura positiva da pluralidade social e cultural e para assegurar a igualdade de oportunidades para grupos sociais desprestigiados no país” (MAHER, op. cit., p. 264).

Na materialidade da prática educativa, ainda segundo Maher (ibidem), essa visão crítica do multiculturalismo anuncia que as diferenças sejam respeitadas e, ainda, colocadas em questão, ao invés de celebradas ou toleradas, como fazem as suas perspectivas conservadora e liberal. No viés dessa perspectiva crítica, a autora sugere que o termo “diversidade” seja discutido, uma vez que é amplamente utilizado “[...] talvez com o objetivo de anular ou atenuar os conflitos culturais e seus efeitos; [como] um bálsamo que cria a falsa idéia de uma equivalência dentro da cultura e entre as culturas” (SKLIAR, 2003, p. 205 apud MAHER, ibidem, p. 265). É sobre essa conjuntura que a teórica considera o termo interculturalidade mais adequado, pois “evoca, mais prontamente, a relação entre as culturas, que é o que de fato importa” (MAHER, 2007, p. 265, grifos nossos).

A prática da Interculturalidade é central para o desenvolvimento da

educação do entorno (MAHER, 2007). Segundo a autora, “todo projeto educativo voltado para o empoderamento de grupos minoritarizados tem que também contemplar a educação do entorno para a convivência respeitosa com as especificidades linguísticas e culturais desses grupos” (ibidem, p. 267). Acreditamos, em consonância com Maher (op. cit.), que sem essa educação, esses grupos não são capazes de exercer plenamente ou o farão de forma cerceada ou precária31 – os direitos que, eventualmente, venham a

ter.

A educação do entorno, na perspectiva da autora, está ancorada em dois preceitos principais que precisam ser desenvolvidos. O primeiro deles diz respeito à

necessidade de aprender a aceitar o caráter mutável do outro: entendendo que a cultura não é algo homogêneo, estático e, muito menos, que possa ser “possuído”.

31 Para ecoar a noção de territorialização precária (HAESBAERT, 2004 apud BIZON, 2013), discutida

Consequentemente, é preciso questionar os padrões que são elegidos como “autênticos” das culturas para não cairmos no erro de considerar que existem “perdas culturais”. Como exemplo desse equívoco, a autora cita como tende a ser mal visto um índio que faz uso das novas tecnologias, colocando-os numa posição de reféns de sua ancestralidade (MAHER, 2007, p. 267). O segundo preceito faz referência à

necessidade de aprender a destotalizar o outro. É preciso não essencializar o Outro como se ele fosse um representante exemplar de sua cultura, reconhecendo diferenças

intraculturais (heterogeneidade /diversidade/interculturalidade) tanto quanto

interculturais. Segundo a autora, essa desconstrução é crucial para não reforçamos a prática equivocada de perceber os grupos culturais como monolíticos, o que acaba levando, em última instância, à sua estereotipificação, observada em enunciados como “todo grupo minoritarizado a que se refere é/faz/fala...” (exemplo: “todo surdo de

verdadefaz uso da língua de sinais”). A educação do entorno é, portanto, o campo em que o Multiculturalismo Crítico, ou a Interculturalidade tal como prefere Maher (2007), é colocado em ação e em xeque.

No caso do imigrantes deslocados forçados – grupo focalizado nesta investigação –, a ponte de acesso entre eles e o conhecimento seus diretos (faceta necessária para o exercício de tais direitos) passa, inevitavelmente, pelo território da língua portuguesa. É por isso que advogamos que o ensino de PLAc nesse contexto deve ser intercultural e contemplar dois dos três cursos de ação defendidos por Maher (2007): a politização desses imigrantes e a educação do entorno para reconhecimento e legitimação de tais direitos, contribuindo, de certa forma e ainda que indiretamente, para o terceiro curso de ação que seria a conquista de avanços na legislação favorável a eles32. A nosso ver, isso pode contribuir, sobremaneira, para processos de retorritorialização (BIZON, 2013) menos precários por parte dessas pessoas no Brasil.

Tendo isso em vista, passaremos, na próxima seção, à discussão do termo

Português como Língua de Acolhimento.

32 Salientamos que este último curso de ação não é algo que pode ser promovido por um curso de idioma,

obviamente porque as mudanças na legislação são promovidas por atores específicos na estrutura legislativa do Estado brasileiro. Apesar disso, acreditamos que os outros dois cursos de ação, principalmente a educação do entorno, poderiam ser cruciais nesse sentido na medida em que contribuem para a visibilidade das demandas e especificidades de determinado grupo minoritarizado – como os imigrantes deslocados forçados no contexto desta pesquisa –, atraindo mais pessoas favoráveis à causa, o que poderia, em algum momento, através da pressão popular, por exemplo, levar o Estado a promover tais avanços na legislação.

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