Fernando L Canale
B. Deus como Mistério
Outro aspecto básico da doutrina de Deus se refere à natureza divina. Sob esse aspecto, o registro bíblico apresenta uma quantidade quase esmagadora de informa ção, Porém, antes de considerarmos alguns aspectos básicos da multiforme revelação de Deus apresentada na Bíblia, cumpre-nos reconhecer que, ao abordarmos o estudo de Deus, entramos em “terra santa", na qual o silêncio é ouro. Ou seja, ao procurarmos compreender a autorrevelação divina, deve mos reconhecer as limitações dos processos cognitivos humanos.
A deficiência de nosso processo cognitivo em relação a Deus como matéria de estudo manifesta-se não só quando descobrimos ser impossível para nós conhecer a Deus à parte de Sua autorrevelação (Jó 11:7), mas também quando percebemos nossas limitações até para compreender aquilo que já está reve lado. Tais limitações são resultado não só de nossa natureza pecadora, mas também e principalmente da própria natureza de Deus, cuja "grandeza é insondável” (SI 145:3).
Não podemos entender plenamente a realidade de Deus dentro do alcance da limitada e finita razão humana. Até mesmo quando se apoia em idéias bíblicas, qualquer
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reivindicação humana de perfeitamente compreender Deus tende a corresponder, em última análise, não ao Deus vivo e infi nito, mas a um deus criado por nossa própria imaginação, A revelação de Deus na Bíblia é classificada na categoria de mistério, enten dida a palavra aqui não no seu sentido tra dicional, mas no sentido bíblico.
Em seu sentido tradicional, mistério é algo que, por sua própria natureza, não pode ser conhecido nem traduzido em palavras. A Bíblia, porém, estabelece uma íntima cor relação entre mistério e revelação (Dn 2:30, 47; Rm 16:25; ICo 15:51; Ef 1:9; Cl 2:2). Nela, mistério é algo que, mesmo oculto ao conhecimento humano, pode ser conhe cido mediante revelação. Além disso, mesmo
quando envolve uma revelação direta aces sível ao conhecimento humano, o mistério sobrepuja seus próprios aspectos revelados para evitar qualquer equiparação possível da realidade revelada com o mistério propria mente dito. E por isso que Paulo ora para que os efésíos possam 'conhecer o amor de Cristo, que excede todo entendimento" (Ef 3:19). O conhecimento desse amor sublime per tence à categoria de mistério, manifesto nas múltiplas formas pelas quais Deus escolheu Se revelar, conforme registradas na Bíblia. Deve-se tomar cuidado para evitar ultra passar o limite entre as facetas do mistério reveladas e as encobertas (Dt 29:29), prin- cipalmente ao se discutir questões como Trindade, presciência e eternidade.
III. Atributos Divinos A, Eternidade
O cristianismo sempre entendeu que Deus é eterno (Rm 16:26), A eternidade, como característica do ser divino, trata da relação de Deus com o tempo. Existe uma §► profunda e decisiva discordância entre a concepção tradicional e a concepção bíblica de eternidade. A concepção tradicional de eternidade mantida por cristãos em geral sofreu indevida influência da filosofia grega. Segundo ela, existe uma diferença qualita tiva intransponível entre o tempo e a eter nidade. Eternidade seria a ausência total de tempo e de qualquer coisa relacionada com o tempo. Gomo resultado, toma-se a eterni dade divina como significando que Deus é totalmente e completamente desvinculado e alheio a qualquer realidade temporal ou his tórica. As consequências de uma ideia como essa permeiam e condicionam toda a concep ção clássica da natureza e dos atos divinos.
Quando se busca, porém, a ideia de eter nidade no registro bíblico, a primeira faceta que se apresenta é a de que as palavras comu- mente traduzidas por "eternidade” possuem
significado claramente temporal. No AT
*olãm e no NT atõn significam basicamente
"um tempo de longa duração”, e se referem a um período de tempo limitado ou ilimi tado. O fato de essa eternidade ser conce bida em um modo temporal não significa que a Bíblia equipare a eternidade com o tempo criado que vivenciamos como limite de nossa finitude. Significa, antes, que a eternidade de Deus não é alienada do nosso tempo. O tempo divino, porém, é qualitativa mente diferente do nosso tempo, não no sen tido de negar o tempo, mas de incorporá-lo e excedê-lo (ver II.B). Vivenciamos o tempo, por exemplo, como uma mensuração de nossa transitoriedade, ao passo que, em Sua eterni dade, Deus vivência o tempo sem esse caráter transitório (Sl 103:15-17; Jó 36:26).
Diferentemente da tradição cristã clás sica, influenciada pela filosofia grega, a Bíblia concebe o modo temporal e histórico da eter nidade de Deus como compatível com Sua imutabilidade (Sl 102:24-27; Hb 1:10-12). Paulo nos diz que o plano da salvação foi elaborado “antes da fundação do mundo” 124
DOUTRINA DE DEUS (Ef 1:4). “Antes" pressupõe claramente o
tempo anterior à criação. A afirmação pau- lina de que o plano da salvação esteve, “desde os séculos, oculto em Deus, que criou todas as coisas” (Ef 3:9), aponta para a eternidade passada, como abrangendo o tempo como uma característica da eternidade de Deus. O tempo humano teve um começo (cf. 1 Co 2:7), quando o nosso Universo finito e seus habi tantes foram criados. O Criador transcende tais limitações em Seu ser e em Sua experi ência de tempo e história. O tempo humano é limitado e finito, cuja posse está nas mãos de Deus, sob formas que excedem completa mente até nossos melhores esforços racionais e imaginativos. Procurar definir o tempo de Deus seria uma tentativa teórica de penetrar no mistério de Sua natureza. Nesse ponto, o silêncio é eloquência.
Entendemos, porém, algo importante, a saber, que, de acordo com a Bíblia, o eterno e imutável (ver III.B) Deus pode Se relacio nar de maneira direta e pessoal com homens e mulheres dentro do plano da história humana, a ponto de Ele e os seres humanos compar tilharem a mesma história. A eternidade de Deus designa o dinamismo e a infinitude da vida e da história divinas, as quais ao mesmo tempo incluem e excedem completamente o âmbito de nossa história criada. Segundo a Bíblia, a distância que atualmente obstrui a comunhão direta e histórica entre Deus e Sua criação não é resultado da diferença entre um Deus atemporal e imutável e um ser humano histórico, mas a diferença entre um Deus santo e uma humanidade pecadora (Gn 3:22-24; Is 59:2).
B. Imutabilidade
Outra característica do ser divino que tem sido importante componente da doutrina cristã de Deus através dos séculos é a imutabilidade. Esse atributo tem que ver com o fato de Deus não mudar (Ml 3:6; Tg 1:17), Lamentavelmente, porém, a teologia tradicional equiparou
imutabilidade com impassibilidade. Essa equi paração foi necessária devido à concepção atemporal de eternidade (ver III.A), Quando se entende imutabilidade como impassibilidade, diz-se que Deus possui uma vida estática, da qual relações, emoções, novas experiências e mudanças de vida estão inteiramente excluí das. Ou seja, a imutabilidade descreve a vida divina como desvinculada da experiência e da história humanas. Essa concepção não deixa nenhuma margem para a compreensão histó- rica do grande conflito entre Deus e Satanás (ver Grande Conflito II-V), ou para a encarna ção histórica e real de Jesus Cristo (ver Cristo I.A.2). Ao ministrar um ensino como esse, a teologia clássica seguiu a filosofia grega, em completa desatenção ao conceito bíblico de imutabilidade.
Apesar de não ser encontrado na Escritura nenhum termo que expresse o conceito de “imutabilidade”, a Bíblia afirma claramente que em Deus “não pode existir variação ou sombra de mudança” (Tg 1:17). A maneira como a Bíblia entende a eternidade divina (ver Í1I.A) leva em conta o fato de a compatibilidade entre a perfeição de Deus e uma concepção da vida de Deus incluir alterações dinâmicas tais como realização de coisas novas (Is 43:19; Jr 31:31; Ap 21:5), emoções (Êx 34:14; Nm 11:33; Dt4:24; 6:15), relacionamento (Lv 26:12; 2c 13:9; Ap 21:3) e até mesmo arrependimento (Ex 32:14; Jr 18:8; 42:10). Não resta dúvida de que a imu tabilidade do Deus bíblico, que é capaz de mudar Sua decisão de destruir Nfnive (Jn 3:4) por causa da reação positiva dos nini- vitas à pregação de Jonas (v. 10), não pode ser compreendida como impassibilidade. Não obstante, o fato de Deus mudar de ideia, como quando Se arrepende, não significa uma mudança no propósito para com os seres humanos. Trata-se mais de uma adaptação à mudança de ideia e propósito por parte do ser humano. Para a Bíblia, a mudança divina também tem que ver com a vida dinâmica
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de Deus, e não com a constituição de Seu ser. Ou seja, a realidade de Deus não varia nem muda de um ser menos perfeito para um mais perfeito. Deus é sempre o mesmo (SI 102:26-27; Hb 13:8).
De acordo com a doutrina bíblica de Deus, o movimento e a mudança na vida divina, incon cebíveis para a teologia clássica, desempenham papel central na natureza perfeita da vida e ati vidade divinas. Além do mais, a encarnação presume que Deus seja capaz não apenas de Se relacionar e viver dentro dos conceitos do tempo criado, mas também de vivenciar pessoalmente novos e genuínos acontecimentos históricos. A encarnação envolve uma progressão histórica e real dentro da própria 'rida divina de Deus sem haver a necessidade de mudança ou desenvol vimento na estrutura do ser divino (Fp 2:6-8). Dentro desse contexto, a imutabilidade de Deus é coerentemente apresentada através da Bíblia como “fidelidade1' ou constância em Seus atos
históricos. Deus é capaz de agir na história e de mudar de ideia (Jr 18:8; 42:10; Jn 3:9, 10) sem infringir a perfeição de Seu próprio ser, ou com pletar um processo de desenvolvimento interior de um nível mais simples para um nível mais alto de existência. Ainda assim, Sua eterna fide lidade (SI 100:5; 117:2) garante que Ele nunca mudará de ideia, mas que sempre cumprirá Seus planos (Is 25:1), juramentos (Hb 7:21) e promessas de recompensa (Is 61:8), proteção (SI 91:14) ou castigo (SI 119:75) em relação às escolhas humanas. A fidelidade histórica é, portanto, uma característica divina que dis tingue Deus dos seres humanos (Nm 23:19; ISm 15:29). A imutabilidade de Deus, portanto, é compreendida não como impassibílídade, mas como eterna identidade da natureza de Deus consigo mesmo e fidelidade histórica, constân cia e coerência de Seu relacionamento, propó sitos e ações para conosco. Esse pressuposto é necessário para conceitos teológicos tais como tipologia, encarnação, cruz e o grande conflito entre Deus e Satanás, conforme apresentados ao longo da Bíblia.
C. Amoreira
Diversas são as maneiras pelas quais a predestinação (IV.B), a criação (IV. C), a revelação geral (I.B), a presença histórica (IV.D) e a providência (IV.E) revelam Deus como um ser relacionai, cuja essência é o amor (ljo 4:8). Exatamente por causa disso, a ira é estranha à Sua natureza (Is 28:21). Para compreender adequadamente os con ceitos bíblicos de ira e amor divinos, é neces sário reconhecer que Deus pode expressar ambos os sentimentos sem ser contraditó rio. Ao revelar Sua glória a Moisés, Deus explicou que era um "Deus compassivo, cle mente e longânimo e grande em misericór dia e fidelidade; que guarda a misericórdia em mil gerações, que perdoa a iniquidade, a transgressão e o pecado, ainda que não ino centa o culpado, e visita a iniquidade dos pais nos filhos e nos filhos dos filhos, até à ter ceira e quarta geração" (Êx 34:6, 7). «£ 1. O Amor de Deus
As Escrituras declaram que "Deus é amor" (ljo 4:8, 16). Revelam um "Deus de amor” (2Co 13:11), bem como o “amor de Deus" (2Co 13:14; cf. Ef 2:4) por Sua cria ção. O Pai (ljo 3:1), o Filho (Ef 3:19) e o Espírito Santo (Rm 15:30) Se empenham em expressar Sua amorável natureza íntima, não só nos atos de criar o Universo e se comu nicar com ele, mas também, e mais nota velmente, no ato de elaborar e implementar um surpreendentemente sábio e complexo plano de salvação. A definição do amor de Deus não pode ser extraída por analogia de conceitos ou experiências humanas. O sig nificado do amor só pode ser definido por Deus através de um ato de x-evelação direta. O amor é uma realidade relacionai. João expõe com clareza a natureza relacionai do amor quando observa que "conhecemos e cremos no amor que Deus tem por nós. Deus é amor, e aquele que permanece no amor permanece em Deus, e Deus, nele" (ljo 4:16).
DOUTRINA DE DEUS Há, porém, mais amor divino do que
o pode sugerir sua estrutura relacionai. O amor divino é explicitado nos mínimos detalhes quando, segundo a predestinação eterna de Deus, “Se manifestou a benigni- dade de Deus, nosso Salvador” (Tt 3:4), e o Pai e Jesus Cristo nos deram "eterna conso lação e boa esperança, pela graça" (2Ts 2:16). O amor de Deus apresenta sua mais surpre endente e inesperada manifestação na vida e morte de Jesus Cristo (Rm 8:39; IJo 4:10; Rm 5:8). O amor divino é a base não somente da criação (ÍV.C), mas também da reden ção, A encarnação e a cruz de Cristo reve lam efetivamente que o amor divino é um ato de abnegação em favor dos seres huma nos, inclusive dos humildes, desprezados e indignos. A Escritura descreve a essência do amor divino no ato de o Pai entregar o Filho (Jo 3:16; Rm 8:32; cf. 2Co 5:21) e, simulta neamente, no ato de o Filho Se entregar a Si mesmo (G1 2:20; Ef 5:2; Hb 9:14). Paulo explica a autorrendição do amor do Filho pelo mundo, ressaltando que Cristo Jesus “não julgou como usurpação o ser igual a Deus; antes, a Si mesmo Se esvaziou, assu mindo a forma de servo, tornando-Se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana, a Si mesmo Se humilhou, tornando-Se obediente até à morte e morte de cruz” (Fp 2:6-8). Com base nisso, não admira ouvir Paulo afirmar que o amor demonstrado por Cristo “excede todo enten dimento" (Ef 3:19). Segue-se, pois, que o amor divino é a fonte (IJo 4:7) e o modelo (ICo 13) do amor humano,
2. A Ira de Deus
Que o Deus bíblico Se ire e traduza em ação Sua ira sobre os pecadores, destrui.ndo-os pelo fogo eterno, parece algo estranho à Sua natureza (Is 28:21). Contudo, o conceito bíblico da ira de Deus não é contraditório nem incompatí vel com Sua natureza amorosa. Visto que
Deus é amor, Seu objetivo é salvar todos os seres humanos. Paulo expôs com preci são esse fato básico da teologia cristã em uma afirmação concisa: “Deus não nos des tinou para a ira, mas para alcançar a salva ção mediante nosso Senhor Jesus Cristo" (lTs 5:9). A resposta de Deus ao pecado humano é a oferta da salvação em Jesus Cristo (Gn 3:15). Se Deus é amor e Seu pro pósito explícito é salvar pecadores, surge a pergunta: o que Lhe causa ira? Segundo a Escritura, a ira divina é provocada quando o pecado persistente (Dt 9:7; 2Cr 36:16; Jr 7:20-34; 32:31-33; Os 12:14; Rm 2:5; Cl 3:5, 6) leva homens e mulheres a rejeitar sistematicamente a amorosa oferta de sal vação em Jesus Cristo (Jo 3:36; Hb 6:4-6). Porque Deus é amor, Ele não quer "que nenhum pereça, senão que todos cheguem ao arrependimento” (IRs 8:46-51; 2Pe 3:9). A ira divina pode, porém, ser evitada pelo arrependimento (IRs 8:46-51; J1 2:12-14), confissão (Dn 9:16-19), restituição (Lv 5:16; Nm 5:7, 8) e intercessão (Êx 32:9-14).
Em suma, a ira divina pode ser desviada se os seres humanos aceitarem a vontade de Deus (Sua lei) e o perdão que Ele ofe rece gratuitamente a todos por meio de Jesus Cristo. Mas quando rejeitam teimosa e per sistentemente a vontade de Deus e a amo- rável dádiva da salvação oferecida em Jesus Cristo, os pecadores se tornam obstinados ◄ em sua oposição ao Senhor, tornando-se, por conta disso, inimigos de Deus. Naum explica que a ira de Deus é executada sobre Seus ini migos: “O Senhor é Deus zeloso e vingador, o Senhor é vingador e cheio de ira; o Senhor toma vingança contra os Seus adversários e reserva indignação para os Seus inimi gos” (Na 1:2). Durante a história da salva ção, a ira de Deus foi executada somente de forma ocasional e parcialmente (Lm 2:1-3; cf. At 17:30). Será, porém, executada esca- tologicamente no último día, quando "todos os que cometem perversidade serão como
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o restolho; o dia que vem os abrasará, diz o Senhor dos Exércitos, de sorte que não lhes deixará nem raiz nem ramo” (Ml 4:1; cf. Ap 14:10, 19; 19:15-21; ver Juízo ILE.; IIJ.B.3).
D> Tmnscenâência
Transcendência é outro conceito teoló gico que aparece na Bíblia sem uma palavra específica que a expresse. Transcendência significa basicamente "independência" de alguma coisa e tem que ver, no estudo da natureza de Deus, com a independência que Ele manifesta em Seu relacionamento com o Universo.
O sentido no qual Deus é diferente da criação tem sido compreendido tradicional mente com base em Sua eternidade atem poral e impassível imutabilidade. Ou seja, Deus é diferente da criação porque não está subordinado ao tempo nem à história, ao passo que a criação é temporal e histórica. Seguindo esse princípio, a teologia clássica encontra uma semelhança ou analogia básica entre a realidade transcendente de Deus e a realidade criada. Tal semelhança é o fun damento que permite a razão humana dis correr sobre Deus e construir uma teologia natural. Outros têm sugerido que entre Deus e a criação existe uma diferença total e absoluta, designada como "transcendên cia absoluta”. A transcendência absoluta não admite nenhuma similitude entre a natu reza eterna de Deus e Sua criação histórica.
A Bíblia concebe Deus diferente do mundo, tanto em termos de realidade (Deus não é o mundo, nem está o mundo incluído em Seu ser) como em termos de natureza. E óbvio, porém, que quando a diferença é entendida como “transcendência absoluta”, Deus Se torna o grande desconhecido. As consequências das abordagens tradicional e moderna à interpretação da transcen dência de Deus foram, em última análise, responsáveis pela reviravolta nas concep ções panteístas da imanência divina nos
três últimos séculos. De acordo com essa concepção, Deus não é mais uma pessoa independente do mundo, senão o próprio mundo, em sua profunda causa antológica ou poder para sê-lo.
As Sagradas Escrituras apresentam uma concepção diferente da transcendência de Deus. Desde o princípio, a doutrina da cria ção prepara o terreno tanto para a trans cendência como para a semelhança entre Deus e Sua criação. A criação divina esta belece a independência entre a realidade de Deus e a realidade do Universo (Gn 1:1; Hb 11:3) e, por consequência, a dependên cia do Universo em relação a Deus (Is 42:5).
A Escritura fala claramente da trans cendência divina, tomando como ponto de partida a imanência de Deus no santuário. O relato da cerimônia de dedicação do tem plo de Salomão (2Cr 5-7) aponta para o fato de que a transcendência do ser divino está além do âmbito da criação. Começando com a afirmação da imanência pessoal e histó rica de Deus (IV. D), a narrativa identifica o lugar de habitação de Deus em dois espa ços: primeíramente, a habitação de Sua gló ria pessoal no templo-santuãrio terrestre (2Cr 5:13-6:2; 6:41; 7:1-3; cf. Êx 40:34-38), e depois, Sua morada celeste (2Cr 6:21, 25, 27, 30, 33, 39; cf. Hb 8:1, 2; Ap 7:15). A morada celeste de Deus não é, contudo, o âmbito de Sua transcendência, visto que o “Céu” é parte da criação de Deus. O fato de Deus habitar no Céu deve, portanto, ser entendido como uma referência à Sua ima nência histórica, isto é, Sua relação com as outras criaturas não afetadas pelo pecado. Duas habitações divinas são necessárias, não por causa da transcendência de Deus, mas devido à introdução do pecado na Terra e à necessidade da presença pessoal de Deus com Seu povo.
A dimensão da transcendência divina entra em foco novamente quando Salomão pergunta: “Mas, de fato, habitaria Deus com 128
D O U TRIN A D E D EU S
► os homens na terra? Eis que os céus e até o céu dos céus não Te podem conter, quanto menos esta casa que eu edifiqueí” (2Gr 6:18; lRs 8:27). Percebe-se e expressa-se aqui o mistério da realidade de Deus. Ele real mente vive na terra, mesmo em um templo, e no Céu (ímanência), mas Seu ser excede completamente a criação (transcendência). Somente quando o mistério do ser de Deus — que é totalmente independente e comple tamente insuperável, e no entanto capaz e disposto a estabelecer uma íntima relação de morada com Sua criação — for revelado, seremos capazes de reconhecer e adorar a Deus em Sua majestade divina, Nenhum esforço da razão ou da imaginação humana pode penetrar a revelação de Deus em Sua essência divina.
A Bíblia, porém, não adota a ideia de uma transcendência “absoluta”, que exclua as semelhanças entre Deus e a criação. Ao contrário, segundo o relato bíblico de Gênesis, homem e mulher foram criados “à imagem de Deus” (Gn 1:27), o que afirma claramente uma semelhança entre Deus e a humanidade. O fato, porém, de existir essa semelhança não justifica o uso especulativo da razão sozinha para compreender Deus. Somente Deus, que conhece perfeitamente ambos os lados da analogia entre Ele e a criação, pode extrair analogias cognitivas ou comparações de Seu próprio Ser com a
nossa ordem criada. Os seres humanos, que
conhecem apenas seu próprio lado da cria ção, não podem traçar um quadro analógico apropriado da realidade divina.
Com base nisso, nenhuma analogia extraída da criação pode servir de funda mento para atribuir a Deus alguma forma física ou conceituai. Ou seja, a analogia que existe entre Deus e a criação não possibilita o desenvolvimento de uma teologia natural. Gomo era de se esperar, o segundo manda mento nos instrui a não fazer “imagem de escultura, nem semelhança alguma do que
há em cima nos céus, nem embaixo na terra, nem nas águas debaixo da terra” (Ex 20:4). Só Deus pode empregar analogias para reve- lar-Se sem correr o risco de descambar para as vãs especulações.
Algumas das analogias empregadas por Deus são chamadas de antropomorfismos,