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Deus como Mistério

No documento Tratado de Teologia Adventista (páginas 149-160)

Fernando L Canale

B. Deus como Mistério

Outro aspecto básico da doutrina de Deus se refere à natureza divina. Sob esse aspecto, o registro bíblico apresenta uma quantidade quase esmagadora de informa­ ção, Porém, antes de considerarmos alguns aspectos básicos da multiforme revelação de Deus apresentada na Bíblia, cumpre-nos reconhecer que, ao abordarmos o estudo de Deus, entramos em “terra santa", na qual o silêncio é ouro. Ou seja, ao procurarmos compreender a autorrevelação divina, deve­ mos reconhecer as limitações dos processos cognitivos humanos.

A deficiência de nosso processo cognitivo em relação a Deus como matéria de estudo manifesta-se não só quando descobrimos ser impossível para nós conhecer a Deus à parte de Sua autorrevelação (Jó 11:7), mas também quando percebemos nossas limitações até para compreender aquilo que já está reve­ lado. Tais limitações são resultado não só de nossa natureza pecadora, mas também e principalmente da própria natureza de Deus, cuja "grandeza é insondável” (SI 145:3).

Não podemos entender plenamente a realidade de Deus dentro do alcance da limitada e finita razão humana. Até mesmo quando se apoia em idéias bíblicas, qualquer

TRATADO DE TEOLOGIA

reivindicação humana de perfeitamente compreender Deus tende a corresponder, em última análise, não ao Deus vivo e infi­ nito, mas a um deus criado por nossa própria imaginação, A revelação de Deus na Bíblia é classificada na categoria de mistério, enten­ dida a palavra aqui não no seu sentido tra­ dicional, mas no sentido bíblico.

Em seu sentido tradicional, mistério é algo que, por sua própria natureza, não pode ser conhecido nem traduzido em palavras. A Bíblia, porém, estabelece uma íntima cor­ relação entre mistério e revelação (Dn 2:30, 47; Rm 16:25; ICo 15:51; Ef 1:9; Cl 2:2). Nela, mistério é algo que, mesmo oculto ao conhecimento humano, pode ser conhe­ cido mediante revelação. Além disso, mesmo

quando envolve uma revelação direta aces­ sível ao conhecimento humano, o mistério sobrepuja seus próprios aspectos revelados para evitar qualquer equiparação possível da realidade revelada com o mistério propria­ mente dito. E por isso que Paulo ora para que os efésíos possam 'conhecer o amor de Cristo, que excede todo entendimento" (Ef 3:19). O conhecimento desse amor sublime per­ tence à categoria de mistério, manifesto nas múltiplas formas pelas quais Deus escolheu Se revelar, conforme registradas na Bíblia. Deve-se tomar cuidado para evitar ultra­ passar o limite entre as facetas do mistério reveladas e as encobertas (Dt 29:29), prin- cipalmente ao se discutir questões como Trindade, presciência e eternidade.

III. Atributos Divinos A, Eternidade

O cristianismo sempre entendeu que Deus é eterno (Rm 16:26), A eternidade, como característica do ser divino, trata da relação de Deus com o tempo. Existe uma §► profunda e decisiva discordância entre a concepção tradicional e a concepção bíblica de eternidade. A concepção tradicional de eternidade mantida por cristãos em geral sofreu indevida influência da filosofia grega. Segundo ela, existe uma diferença qualita­ tiva intransponível entre o tempo e a eter­ nidade. Eternidade seria a ausência total de tempo e de qualquer coisa relacionada com o tempo. Gomo resultado, toma-se a eterni­ dade divina como significando que Deus é totalmente e completamente desvinculado e alheio a qualquer realidade temporal ou his­ tórica. As consequências de uma ideia como essa permeiam e condicionam toda a concep­ ção clássica da natureza e dos atos divinos.

Quando se busca, porém, a ideia de eter­ nidade no registro bíblico, a primeira faceta que se apresenta é a de que as palavras comu- mente traduzidas por "eternidade” possuem

significado claramente temporal. No AT

*olãm e no NT atõn significam basicamente

"um tempo de longa duração”, e se referem a um período de tempo limitado ou ilimi­ tado. O fato de essa eternidade ser conce­ bida em um modo temporal não significa que a Bíblia equipare a eternidade com o tempo criado que vivenciamos como limite de nossa finitude. Significa, antes, que a eternidade de Deus não é alienada do nosso tempo. O tempo divino, porém, é qualitativa­ mente diferente do nosso tempo, não no sen­ tido de negar o tempo, mas de incorporá-lo e excedê-lo (ver II.B). Vivenciamos o tempo, por exemplo, como uma mensuração de nossa transitoriedade, ao passo que, em Sua eterni­ dade, Deus vivência o tempo sem esse caráter transitório (Sl 103:15-17; Jó 36:26).

Diferentemente da tradição cristã clás­ sica, influenciada pela filosofia grega, a Bíblia concebe o modo temporal e histórico da eter­ nidade de Deus como compatível com Sua imutabilidade (Sl 102:24-27; Hb 1:10-12). Paulo nos diz que o plano da salvação foi elaborado “antes da fundação do mundo” 124

DOUTRINA DE DEUS (Ef 1:4). “Antes" pressupõe claramente o

tempo anterior à criação. A afirmação pau- lina de que o plano da salvação esteve, “desde os séculos, oculto em Deus, que criou todas as coisas” (Ef 3:9), aponta para a eternidade passada, como abrangendo o tempo como uma característica da eternidade de Deus. O tempo humano teve um começo (cf. 1 Co 2:7), quando o nosso Universo finito e seus habi­ tantes foram criados. O Criador transcende tais limitações em Seu ser e em Sua experi­ ência de tempo e história. O tempo humano é limitado e finito, cuja posse está nas mãos de Deus, sob formas que excedem completa­ mente até nossos melhores esforços racionais e imaginativos. Procurar definir o tempo de Deus seria uma tentativa teórica de penetrar no mistério de Sua natureza. Nesse ponto, o silêncio é eloquência.

Entendemos, porém, algo importante, a saber, que, de acordo com a Bíblia, o eterno e imutável (ver III.B) Deus pode Se relacio­ nar de maneira direta e pessoal com homens e mulheres dentro do plano da história humana, a ponto de Ele e os seres humanos compar­ tilharem a mesma história. A eternidade de Deus designa o dinamismo e a infinitude da vida e da história divinas, as quais ao mesmo tempo incluem e excedem completamente o âmbito de nossa história criada. Segundo a Bíblia, a distância que atualmente obstrui a comunhão direta e histórica entre Deus e Sua criação não é resultado da diferença entre um Deus atemporal e imutável e um ser humano histórico, mas a diferença entre um Deus santo e uma humanidade pecadora (Gn 3:22-24; Is 59:2).

B. Imutabilidade

Outra característica do ser divino que tem sido importante componente da doutrina cristã de Deus através dos séculos é a imutabilidade. Esse atributo tem que ver com o fato de Deus não mudar (Ml 3:6; Tg 1:17), Lamentavelmente, porém, a teologia tradicional equiparou

imutabilidade com impassibilidade. Essa equi­ paração foi necessária devido à concepção atemporal de eternidade (ver III.A), Quando se entende imutabilidade como impassibilidade, diz-se que Deus possui uma vida estática, da qual relações, emoções, novas experiências e mudanças de vida estão inteiramente excluí­ das. Ou seja, a imutabilidade descreve a vida divina como desvinculada da experiência e da história humanas. Essa concepção não deixa nenhuma margem para a compreensão histó- rica do grande conflito entre Deus e Satanás (ver Grande Conflito II-V), ou para a encarna­ ção histórica e real de Jesus Cristo (ver Cristo I.A.2). Ao ministrar um ensino como esse, a teologia clássica seguiu a filosofia grega, em completa desatenção ao conceito bíblico de imutabilidade.

Apesar de não ser encontrado na Escritura nenhum termo que expresse o conceito de “imutabilidade”, a Bíblia afirma claramente que em Deus “não pode existir variação ou sombra de mudança” (Tg 1:17). A maneira como a Bíblia entende a eternidade divina (ver Í1I.A) leva em conta o fato de a compatibilidade entre a perfeição de Deus e uma concepção da vida de Deus incluir alterações dinâmicas tais como realização de coisas novas (Is 43:19; Jr 31:31; Ap 21:5), emoções (Êx 34:14; Nm 11:33; Dt4:24; 6:15), relacionamento (Lv 26:12; 2c 13:9; Ap 21:3) e até mesmo arrependimento (Ex 32:14; Jr 18:8; 42:10). Não resta dúvida de que a imu­ tabilidade do Deus bíblico, que é capaz de mudar Sua decisão de destruir Nfnive (Jn 3:4) por causa da reação positiva dos nini- vitas à pregação de Jonas (v. 10), não pode ser compreendida como impassibilidade. Não obstante, o fato de Deus mudar de ideia, como quando Se arrepende, não significa uma mudança no propósito para com os seres humanos. Trata-se mais de uma adaptação à mudança de ideia e propósito por parte do ser humano. Para a Bíblia, a mudança divina também tem que ver com a vida dinâmica

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de Deus, e não com a constituição de Seu ser. Ou seja, a realidade de Deus não varia nem muda de um ser menos perfeito para um mais perfeito. Deus é sempre o mesmo (SI 102:26-27; Hb 13:8).

De acordo com a doutrina bíblica de Deus, o movimento e a mudança na vida divina, incon­ cebíveis para a teologia clássica, desempenham papel central na natureza perfeita da vida e ati­ vidade divinas. Além do mais, a encarnação presume que Deus seja capaz não apenas de Se relacionar e viver dentro dos conceitos do tempo criado, mas também de vivenciar pessoalmente novos e genuínos acontecimentos históricos. A encarnação envolve uma progressão histórica e real dentro da própria 'rida divina de Deus sem haver a necessidade de mudança ou desenvol­ vimento na estrutura do ser divino (Fp 2:6-8). Dentro desse contexto, a imutabilidade de Deus é coerentemente apresentada através da Bíblia como “fidelidade1' ou constância em Seus atos

históricos. Deus é capaz de agir na história e de mudar de ideia (Jr 18:8; 42:10; Jn 3:9, 10) sem infringir a perfeição de Seu próprio ser, ou com­ pletar um processo de desenvolvimento interior de um nível mais simples para um nível mais alto de existência. Ainda assim, Sua eterna fide­ lidade (SI 100:5; 117:2) garante que Ele nunca mudará de ideia, mas que sempre cumprirá Seus planos (Is 25:1), juramentos (Hb 7:21) e promessas de recompensa (Is 61:8), proteção (SI 91:14) ou castigo (SI 119:75) em relação às escolhas humanas. A fidelidade histórica é, portanto, uma característica divina que dis­ tingue Deus dos seres humanos (Nm 23:19; ISm 15:29). A imutabilidade de Deus, portanto, é compreendida não como impassibílídade, mas como eterna identidade da natureza de Deus consigo mesmo e fidelidade histórica, constân­ cia e coerência de Seu relacionamento, propó­ sitos e ações para conosco. Esse pressuposto é necessário para conceitos teológicos tais como tipologia, encarnação, cruz e o grande conflito entre Deus e Satanás, conforme apresentados ao longo da Bíblia.

C. Amoreira

Diversas são as maneiras pelas quais a predestinação (IV.B), a criação (IV. C), a revelação geral (I.B), a presença histórica (IV.D) e a providência (IV.E) revelam Deus como um ser relacionai, cuja essência é o amor (ljo 4:8). Exatamente por causa disso, a ira é estranha à Sua natureza (Is 28:21). Para compreender adequadamente os con­ ceitos bíblicos de ira e amor divinos, é neces­ sário reconhecer que Deus pode expressar ambos os sentimentos sem ser contraditó­ rio. Ao revelar Sua glória a Moisés, Deus explicou que era um "Deus compassivo, cle­ mente e longânimo e grande em misericór­ dia e fidelidade; que guarda a misericórdia em mil gerações, que perdoa a iniquidade, a transgressão e o pecado, ainda que não ino­ centa o culpado, e visita a iniquidade dos pais nos filhos e nos filhos dos filhos, até à ter­ ceira e quarta geração" (Êx 34:6, 7). «£ 1. O Amor de Deus

As Escrituras declaram que "Deus é amor" (ljo 4:8, 16). Revelam um "Deus de amor” (2Co 13:11), bem como o “amor de Deus" (2Co 13:14; cf. Ef 2:4) por Sua cria­ ção. O Pai (ljo 3:1), o Filho (Ef 3:19) e o Espírito Santo (Rm 15:30) Se empenham em expressar Sua amorável natureza íntima, não só nos atos de criar o Universo e se comu­ nicar com ele, mas também, e mais nota­ velmente, no ato de elaborar e implementar um surpreendentemente sábio e complexo plano de salvação. A definição do amor de Deus não pode ser extraída por analogia de conceitos ou experiências humanas. O sig­ nificado do amor só pode ser definido por Deus através de um ato de x-evelação direta. O amor é uma realidade relacionai. João expõe com clareza a natureza relacionai do amor quando observa que "conhecemos e cremos no amor que Deus tem por nós. Deus é amor, e aquele que permanece no amor permanece em Deus, e Deus, nele" (ljo 4:16).

DOUTRINA DE DEUS Há, porém, mais amor divino do que

o pode sugerir sua estrutura relacionai. O amor divino é explicitado nos mínimos detalhes quando, segundo a predestinação eterna de Deus, “Se manifestou a benigni- dade de Deus, nosso Salvador” (Tt 3:4), e o Pai e Jesus Cristo nos deram "eterna conso­ lação e boa esperança, pela graça" (2Ts 2:16). O amor de Deus apresenta sua mais surpre­ endente e inesperada manifestação na vida e morte de Jesus Cristo (Rm 8:39; IJo 4:10; Rm 5:8). O amor divino é a base não somente da criação (ÍV.C), mas também da reden­ ção, A encarnação e a cruz de Cristo reve­ lam efetivamente que o amor divino é um ato de abnegação em favor dos seres huma­ nos, inclusive dos humildes, desprezados e indignos. A Escritura descreve a essência do amor divino no ato de o Pai entregar o Filho (Jo 3:16; Rm 8:32; cf. 2Co 5:21) e, simulta­ neamente, no ato de o Filho Se entregar a Si mesmo (G1 2:20; Ef 5:2; Hb 9:14). Paulo explica a autorrendição do amor do Filho pelo mundo, ressaltando que Cristo Jesus “não julgou como usurpação o ser igual a Deus; antes, a Si mesmo Se esvaziou, assu­ mindo a forma de servo, tornando-Se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana, a Si mesmo Se humilhou, tornando-Se obediente até à morte e morte de cruz” (Fp 2:6-8). Com base nisso, não admira ouvir Paulo afirmar que o amor demonstrado por Cristo “excede todo enten­ dimento" (Ef 3:19). Segue-se, pois, que o amor divino é a fonte (IJo 4:7) e o modelo (ICo 13) do amor humano,

2. A Ira de Deus

Que o Deus bíblico Se ire e traduza em ação Sua ira sobre os pecadores, destrui.ndo-os pelo fogo eterno, parece algo estranho à Sua natureza (Is 28:21). Contudo, o conceito bíblico da ira de Deus não é contraditório nem incompatí­ vel com Sua natureza amorosa. Visto que

Deus é amor, Seu objetivo é salvar todos os seres humanos. Paulo expôs com preci­ são esse fato básico da teologia cristã em uma afirmação concisa: “Deus não nos des­ tinou para a ira, mas para alcançar a salva­ ção mediante nosso Senhor Jesus Cristo" (lTs 5:9). A resposta de Deus ao pecado humano é a oferta da salvação em Jesus Cristo (Gn 3:15). Se Deus é amor e Seu pro­ pósito explícito é salvar pecadores, surge a pergunta: o que Lhe causa ira? Segundo a Escritura, a ira divina é provocada quando o pecado persistente (Dt 9:7; 2Cr 36:16; Jr 7:20-34; 32:31-33; Os 12:14; Rm 2:5; Cl 3:5, 6) leva homens e mulheres a rejeitar sistematicamente a amorosa oferta de sal­ vação em Jesus Cristo (Jo 3:36; Hb 6:4-6). Porque Deus é amor, Ele não quer "que nenhum pereça, senão que todos cheguem ao arrependimento” (IRs 8:46-51; 2Pe 3:9). A ira divina pode, porém, ser evitada pelo arrependimento (IRs 8:46-51; J1 2:12-14), confissão (Dn 9:16-19), restituição (Lv 5:16; Nm 5:7, 8) e intercessão (Êx 32:9-14).

Em suma, a ira divina pode ser desviada se os seres humanos aceitarem a vontade de Deus (Sua lei) e o perdão que Ele ofe­ rece gratuitamente a todos por meio de Jesus Cristo. Mas quando rejeitam teimosa e per­ sistentemente a vontade de Deus e a amo- rável dádiva da salvação oferecida em Jesus Cristo, os pecadores se tornam obstinados ◄ em sua oposição ao Senhor, tornando-se, por conta disso, inimigos de Deus. Naum explica que a ira de Deus é executada sobre Seus ini­ migos: “O Senhor é Deus zeloso e vingador, o Senhor é vingador e cheio de ira; o Senhor toma vingança contra os Seus adversários e reserva indignação para os Seus inimi­ gos” (Na 1:2). Durante a história da salva­ ção, a ira de Deus foi executada somente de forma ocasional e parcialmente (Lm 2:1-3; cf. At 17:30). Será, porém, executada esca- tologicamente no último día, quando "todos os que cometem perversidade serão como

TRATADO DE TEOLOGIA

o restolho; o dia que vem os abrasará, diz o Senhor dos Exércitos, de sorte que não lhes deixará nem raiz nem ramo” (Ml 4:1; cf. Ap 14:10, 19; 19:15-21; ver Juízo ILE.; IIJ.B.3).

D> Tmnscenâência

Transcendência é outro conceito teoló­ gico que aparece na Bíblia sem uma palavra específica que a expresse. Transcendência significa basicamente "independência" de alguma coisa e tem que ver, no estudo da natureza de Deus, com a independência que Ele manifesta em Seu relacionamento com o Universo.

O sentido no qual Deus é diferente da criação tem sido compreendido tradicional­ mente com base em Sua eternidade atem­ poral e impassível imutabilidade. Ou seja, Deus é diferente da criação porque não está subordinado ao tempo nem à história, ao passo que a criação é temporal e histórica. Seguindo esse princípio, a teologia clássica encontra uma semelhança ou analogia básica entre a realidade transcendente de Deus e a realidade criada. Tal semelhança é o fun­ damento que permite a razão humana dis­ correr sobre Deus e construir uma teologia natural. Outros têm sugerido que entre Deus e a criação existe uma diferença total e absoluta, designada como "transcendên­ cia absoluta”. A transcendência absoluta não admite nenhuma similitude entre a natu­ reza eterna de Deus e Sua criação histórica.

A Bíblia concebe Deus diferente do mundo, tanto em termos de realidade (Deus não é o mundo, nem está o mundo incluído em Seu ser) como em termos de natureza. E óbvio, porém, que quando a diferença é entendida como “transcendência absoluta”, Deus Se torna o grande desconhecido. As consequências das abordagens tradicional e moderna à interpretação da transcen­ dência de Deus foram, em última análise, responsáveis pela reviravolta nas concep­ ções panteístas da imanência divina nos

três últimos séculos. De acordo com essa concepção, Deus não é mais uma pessoa independente do mundo, senão o próprio mundo, em sua profunda causa antológica ou poder para sê-lo.

As Sagradas Escrituras apresentam uma concepção diferente da transcendência de Deus. Desde o princípio, a doutrina da cria­ ção prepara o terreno tanto para a trans­ cendência como para a semelhança entre Deus e Sua criação. A criação divina esta­ belece a independência entre a realidade de Deus e a realidade do Universo (Gn 1:1; Hb 11:3) e, por consequência, a dependên­ cia do Universo em relação a Deus (Is 42:5).

A Escritura fala claramente da trans­ cendência divina, tomando como ponto de partida a imanência de Deus no santuário. O relato da cerimônia de dedicação do tem­ plo de Salomão (2Cr 5-7) aponta para o fato de que a transcendência do ser divino está além do âmbito da criação. Começando com a afirmação da imanência pessoal e histó­ rica de Deus (IV. D), a narrativa identifica o lugar de habitação de Deus em dois espa­ ços: primeíramente, a habitação de Sua gló­ ria pessoal no templo-santuãrio terrestre (2Cr 5:13-6:2; 6:41; 7:1-3; cf. Êx 40:34-38), e depois, Sua morada celeste (2Cr 6:21, 25, 27, 30, 33, 39; cf. Hb 8:1, 2; Ap 7:15). A morada celeste de Deus não é, contudo, o âmbito de Sua transcendência, visto que o “Céu” é parte da criação de Deus. O fato de Deus habitar no Céu deve, portanto, ser entendido como uma referência à Sua ima­ nência histórica, isto é, Sua relação com as outras criaturas não afetadas pelo pecado. Duas habitações divinas são necessárias, não por causa da transcendência de Deus, mas devido à introdução do pecado na Terra e à necessidade da presença pessoal de Deus com Seu povo.

A dimensão da transcendência divina entra em foco novamente quando Salomão pergunta: “Mas, de fato, habitaria Deus com 128

D O U TRIN A D E D EU S

► os homens na terra? Eis que os céus e até o céu dos céus não Te podem conter, quanto menos esta casa que eu edifiqueí” (2Gr 6:18; lRs 8:27). Percebe-se e expressa-se aqui o mistério da realidade de Deus. Ele real­ mente vive na terra, mesmo em um templo, e no Céu (ímanência), mas Seu ser excede completamente a criação (transcendência). Somente quando o mistério do ser de Deus — que é totalmente independente e comple­ tamente insuperável, e no entanto capaz e disposto a estabelecer uma íntima relação de morada com Sua criação — for revelado, seremos capazes de reconhecer e adorar a Deus em Sua majestade divina, Nenhum esforço da razão ou da imaginação humana pode penetrar a revelação de Deus em Sua essência divina.

A Bíblia, porém, não adota a ideia de uma transcendência “absoluta”, que exclua as semelhanças entre Deus e a criação. Ao contrário, segundo o relato bíblico de Gênesis, homem e mulher foram criados “à imagem de Deus” (Gn 1:27), o que afirma claramente uma semelhança entre Deus e a humanidade. O fato, porém, de existir essa semelhança não justifica o uso especulativo da razão sozinha para compreender Deus. Somente Deus, que conhece perfeitamente ambos os lados da analogia entre Ele e a criação, pode extrair analogias cognitivas ou comparações de Seu próprio Ser com a

nossa ordem criada. Os seres humanos, que

conhecem apenas seu próprio lado da cria­ ção, não podem traçar um quadro analógico apropriado da realidade divina.

Com base nisso, nenhuma analogia extraída da criação pode servir de funda­ mento para atribuir a Deus alguma forma física ou conceituai. Ou seja, a analogia que existe entre Deus e a criação não possibilita o desenvolvimento de uma teologia natural. Gomo era de se esperar, o segundo manda­ mento nos instrui a não fazer “imagem de escultura, nem semelhança alguma do que

há em cima nos céus, nem embaixo na terra, nem nas águas debaixo da terra” (Ex 20:4). Só Deus pode empregar analogias para reve- lar-Se sem correr o risco de descambar para as vãs especulações.

Algumas das analogias empregadas por Deus são chamadas de antropomorfismos,

No documento Tratado de Teologia Adventista (páginas 149-160)