Fernando L Canale
A. Antecedentes Filosóficos
1. Neoplatonísmo
Como tendência filosófica, o neoplato- nismo designa um movimento sincretísta com fortes traços religiosos. Integra, nem sem pre de maneira bem-sucedida, elementos do 158
DOUTRINA DE DEUS platonismo, pitagorismo, aristotelismo e estoi-
cismo. Influenciadores do pensamento patrís- tico foram Filo (c. 20 a.C.-c. 50 d.C.), o grande filósofo judeu alexandrino, e Plutarco (c. 46-c.
120 d. C.), representantes do platonismo médio. Podemos considerá-los precursores do neoplatonismo, que recebeu formulação sis temática em Plotino (c. 205-270 d.C.). Esses autores abraçaram a teoria dos dois mundos de Platão, ainda que substancialmente modi ficada. Para eles, o reino celeste não era ape nas um mundo de entidades atemporais, mas o domínio transcendente do Eterno.
Filo concebia Deus como um Ser atempo ral, único, transcendente, pessoal, ilimitado, autossuficiente e inefável, que compartilha toda a perfeição de Sua natureza de um modo sublime. Considerava Deus tão diferente do mundo que se fazia necessária, entre Ele e o mundo, uma série de realidades intermediárias pertencentes ao mundo inteligível. Para o filó sofo judeu, Deus criara não somente o mundo inteligível, mas também o nosso mundo tem poral no qual Ele atua providencialmente por meio da presciência divina, ainda que permi tindo certo grau de liberdade humana. O plato nismo médio, conforme expresso por Plutarco, afastou-se de Filo no sentido de que conce bia Deus à maneira do Demiurgo de Platão, que organiza o mundo somente de acordo com as idéias celestes. Plotino, compartilhando o mesmo esquema básico, articulou a relação entre Deus, os seres intermediários e nosso mundo por meio de um panteísmo emanacio- nista todo abrangente.
2. Aristotelismo
A filosofia de Aristóteles se fundamentava no sistema de Platão, ao mesmo tempo em que o criticava. O sistema aristotélico não é con traditório ao platonismo ou ao neoplatonismo, mas um resultado crítico do platonismo. Há entre eles não somente diferenças distintas, mas também semelhanças básicas. Por essa razão, em sentido geral, o aristotelismo foi
sempre um fator contribuinte no desenvolvi mento da filosofia grega, até mesmo na ten dência neoplatônica acima comentada. E mais ainda, como abordagem sistemática global, o neoplatonismo foi bem-sucedido em influen ciar o período patrístico e o início do período medieval da teologia cristã. Em um sentido mais específico, o aristotelismo remonta sua-*§ profunda influência à descoberta e tradução dos escritos de Aristóteles, feita em Toledo, na Espanha, por diversos pensadores árabes e judeus no século 12. O aristotelismo tam bém ganhou impulso com a discussão e expli cação das obras de Aristóteles, em Oxford e Paris. Essa redescoberta das idéias do filósofo grego lançou os alicerces para a síntese esco- Iástica da teologia cristã no período medieval.
No tocante à natureza de Deus, o neoplato nismo concorda basicamente com Aristóteles. As diferenças que surgem dizem respeito às atividades divinas. Na visão desse filósofo, não há espaço para atividade divina ad extra. Deus não conhece o mundo. Ele não criou ex
nihilo, nem mesmo organizou o mundo, que é
eterno em seu âmbito espácio-temporal. Deus não tem nenhum relacionamento com a his tória humana, nem é capaz de realizar mila gres. A única atividade adequada à perfeição, autossuficiência, imutabilidade e eternidade divinas é concebida em analogia com a vida teórico-contemplativa do filósofo. A ação típica da divindade é conhecer a Si mesma. Por não precisar de outro objeto a não ser Ele próprio, a atividade divina é autossuficiente. Como ela ocorre na atemporalidade, é imutá vel. Visto que o “alvo” da ação é o ser perfeito que Deus é, Sua ação é absolutamente perfeita,
B. Período Patrístico
Durante o período patrístico, a doutrina cristã de Deus se desenvolveu sob a suposição admissível de que a concepção neoplatônica grega de Deus era, em sentido amplo, com patível com a revelação bíblica. Produziu-se uma síntese crescente, embora nem sempre
TRATADO DE TEOLOGIA
uniforme, entre a filosofia grega e as idéias bíblicas. Surgiram contradições internas nas construções teológicas, trazendo como resul tado uma concepção de Deus mais modelada pela matriz da filosofia grega do que pelo pen samento bíblico.
1. Justino Mártir (c. 100-c, 165)
Ao adotar a concepção platônico-aristo- télica de um Deus eterno, imutável, impas sível e incorpóreo {Primeira Apologia, 13, 61;
Segunda Apologia, 6 [ANF 1:166, 183, 190]),
Justino e os apologistas estabelecem o modelo para a teologia clássica. Mas, Justino também tratou de Deus em termos bíblicos e pessoais, termos estes que, conforme se encontram na Escritura, são incompatíveis com as idéias filo sóficas de eternidade, imutabilidade e impassi- bilidade divinas, implicitamente adotadas por Justino. Essa descrição de Deus corresponde ao Pai de Cristo. Visto que tal Ser não pode atuar na história, precisa-se de um mediador. Influenciado pelo judaísmo posterior, pelo estoicismo e por Filo, Justino discorre sobre o Logos divino. Este Logos preexistiu em Deus como Sua razão e está contido em Sua essên cia {Diálogo com Trifo, 128,129 [ANF 1:264]). Por geração-emanação, o Logos nasceu da von tade do Pai, tornando-se pessoa pouco antes da criação {Diálogo com Trifo, 61, 62 [ANF 1:227, 228]). Sendo Verbo e Unigênito de Deus, o Logos também era divino {Primeira
Apologia, 63 [ANF 1:184]). O Logos, e não o
Pai, encarnou-Se em Jesus Cristo {Primeira
Apologia, 5; Segunda Apologia, 10 [ANF 1:164,
191]). Em Justino, prepara-se o terreno para a doutrina da Trindade imanente, junto com certo subordinacionismo claramente implícito na doutrina do Logos.
2. Irineu (c. 115-c. 202)
Irineu abordou a doutrina de Deus a par tir de sua preocupação apologética contra as heresias gnósticas. Seguiu propositada mente a Escritura, embora categorias neoplatônicas
pareçam desempenhar algum papel em sua teologia. Enfocou, desse modo, a doutrina de Deus mais da perspectiva de Suas obras do que de Sua natureza, Duas idéias principais foram fundamentais para a concepção de Deus adotada por Irineu: criação e Trindade. Para Irineu, Deus é o Criador do mundo ex nihilo
{Contra as Heresias, 2.1.1; 2.10.4 [AN F 1:359,
370]). A Trindade Se desloca para o âmbito histórico, onde a Escritura apresenta Deus realizando a salvação. Por conseguinte, a con cepção de Trindade adotada por Irineu era eco nômica, e envolvia tanto a realidade interna de Deus quanto Seus atos de salvação na história + humana. Devido à sua falta de rigor filosófico, essa concepção foi tida como ingênua, sendo superada pela reflexão teológica posterior. 3. Orígenes (c. 185-c. 254)
No apogeu da Escola Alexandrina, o pensamento de Orígenes representou a pri meira tentativa de derrotar heresias por meio de uma abordagem teológica sistemática. Lamentavelmente, esse pai da igreja desen volveu uma abordagem teológica baseada não somente na Escritura, como Irineu havia ten tado, mas também em idéias filosóficas neo- platônicas. Essas idéias influenciaram, em grande medida, a concepção de Orígenes sobre a natureza divina: Deus é uma realidade una, simples, atemporal, ilimitada, imutável, impassível, invisível, intelectual e pessoal {De
Principiis [Tratado dos Princípios]), 1.1.6;
1.2.4, 6; 1.3.4 [ANF, 4:245, 247, 252, 253]). Orígenes tentou exprimir a revelação bíblica do Deus trinitário dentro das mesmas categorias filosóficas neoplatônicas. Ao fazer isso, deslocou-se do nível econômico-histó- rico no qual a Escritura revela a Divindade para um nível imanente, atemporal, ilimitado, que correspondia à natureza de Deus em Si mesmo. Entendido assim, somente o Pai é a causa simples e não originada de tudo (ibid., 1.3.5 [ANF, 4:253]). Para explicar a “multi plicidade” divina das hipóstases, Orígenes 160
DOUTRINA DE DEUS inventou a ideia de geração eterna, segundo
a qual o Filho é eternamente gerado pelo Pai (ibid., 1.2.4,6 [ANF, 4:247]). O Espírito Santo, embora participante da Trindade, pertence a uma posição ontológica inferior a do Filho. O Pai, como fonte de tudo, ocupa a posição mais elevada, até mesmo acima do Filho (ibid., 1.3.4, 5 [ANF, 4:252, 253]). Um duplo e claro subor- dinacionismo acha-se implícito na interpreta ção de Orígenes da Trindade imanente. Para Orígenes, a Trindade é eternamente ativa como criadora, benfeitora e provedora (ibid., 1.4.3; edi ção de Butterworth de 1973). O bendito e preva- lente poder da Trindade “exerce domínio sobre todas as coisas” (ibid.), O poder de Deus não implica a existência eterna da criação temporal. Contudo, seguindo a ontologia platônica dualís- tica básica, Orígenes ensinou que todas as coi sas “sempre existiram em sabedoria, por meio de uma prefiguração e pré-formação" (ibid., 1,4,3,5). Isso constituiu a base para a doutrina da pre destinação divina. O que foi feito por Deus na criação é o que já estava feito, e, portanto, pre destinado, na eterna atividade de Deus. 4. Heresias Trinitarianas
Do segundo ao quarto século da era cristã formularam-se algumas conceitualizações malsucedidas do ensino bíblico a respeito da Divindade. O monarquianismo dinâmico, o monarquianismo modalista e o arianismo representaram esforços para compreender a
Trindade a partir do pano de fundo intelec
tual provido pelo neoplatonismo na tradição de Justino Mártir e Orígenes.
O monarquianismo dinâmico se iniciou com Teodoto (c. 190), sendo desenvolvido mais tecnicamente por Paulo de Samósata (segunda metade do terceiro século). Essa doutrina se baseava no adocianismo, here sia cristológica segundo a qual Cristo foi
um mero homem sobre o qual desceu o Espírito, que O ungiu com poderes divinos no momento do Seu batismo e tornando-0 Filho adotivo de Deus a partir de então. Ensina
essa doutrina que não existe na natureza do Deus eterno pluralidade de pessoas. A ideia de uma Trindade eterna e imanente é subs tituída pela ideia da presença “dinâmica” de Deus em Cristo pela habitação do Espírito. Para o monarquianismo, Deus não é uma plu ralidade de pessoas, mas um soberano eterno e uno, O termo "dinâmico” significa que o Deus uno está ligado ao homem Jesus Cristo mediante poder espiritual impessoal.
O monarquianismo modalista floresceu no fim do segundo século por Noeto de Esmirna (c. 200). Como no caso do monarquianismo dinâmico, o monarquianismo modalista tam bém postulava a existência de um só Deus: o Pai. Se Cristo era Deus, como queria a fé cristã, então Ele devia ser idêntico ao Pai. Pai e Filho não seriam duas pessoas divinas diferentes, mas nomes de um mesmo Deus envolvido em diferentes atividades em épo cas diferentes. O Espírito não desempenha ria outro papel, a não ser outra palavra para designar o Pai. No monarquianismo moda- lista, o termo “monarquia" garante que Deus é um só, ou seja, o Pai, enquanto "modalismo" declara que Deus Pai é capaz de adotar um modo específico de revelação histórica em Jesus Cristo, o Filho. O monarquianismo modalista constitui uma heresia antitrinita- riana, pois rejeita a ideia da Trindade, tanto em níveis imanentes como em econômicos.
O modalismo sabeliano imagina Deus como uma mônada, que se manifesta em três sucessivas operações históricas, a saber, o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Ao incluir o Espírito Santo e colocar o Pai no mesmo nível que as outras pessoas, o sabelianismo melhora a versão do modalismo de Noeto. Apesar disso, reconhece a Trindade de pes soas apenas como diferentes formas de mani festação divina, e não como algo intrínseco à natureza de Deus.
O arianismo se originou com Ario (c. 250- 336), que abordou a compreensão da Trindade imanente dentro de uma concepção de Deus
TRATADO DE TEOLOGIA
mais próxima do aristotelismo do que do pla- tonismo e do neoplatonismo. Apesar de par tilhar da concepção adotada por Orígenes de que Deus é imutável, atemporal e simples, o arianismo rejeitou a ideia de emanação implí cita no seu conceito de geração eterna do Filho. Precisamente por causa da simplicidade e imu tabilidade de Deus Pai, Ário ficou convencido de que a essência divina não é comunicável por emanação ou geração. Para ele, a transcendên cia atemporal de Deus precisava de um media dor capaz de executar os propósitos de Deus no espaço e no tempo. Assim, Ário substituiu a ideia de Orígenes de uma geração eterna pela ideia de criação a partir do nada, uma criação descrita como “anterior” e “exterior" ao tempo, embora “tenha havido um tempo em que Ele [o Filho] não era" (0’CarroIl, 26). O Filho seria, portanto, a criatura mais exaltada, sem paralelo com o restante da criação, sendo Ele mesmo o Criador do mundo. O Espírito Santo é criado pelo Filho e a Ele subordinado. Como se vê, o arianismo constitui a mais grave distor ção do conceito trinitariano de Deus, levando o monarquianismo e o subordinacionismo ã sua expressão mais extrema. 5
5. Concilio de Niceia (325)
O primeiro concilio ecumênico se realizou em Niceia, com o objetivo de tratar da amea ça representada pelo arianismo, que foi termi- nantemente condenado, O concilio confirmou a divindade de Cristo, proclamou oficialmen te a doutrina da eterna geração do Filho - o Filho “nascido do Pai e consubstanciai ao Pai”, e expôs a bastante discutida consubstanciali- dade (homoousios) do Pai e do Filho. Ratificou, por fim, o Espírito Santo como uma refle xão tardia dizendo: “E [cremos] no Espírito Santo”. Em 381, reuniu-se o segundo conci lio ecumênico, dessa vez em Constantínopla. Promulgou-se ali o que se conhece como Credo Niceno-Constantinopolitano, que am plia a declaração de Niceia, afirmando explíci tamente a divindade do Espírito Santo.
6. Agostinho (354-430)
Nas obras de Agostinho, a síntese patrís- tica do neoplatonismo e das Escrituras alcançam sua formulação mais articulada e influente. De acordo com Agostinho, Deus é atemporal, simples, imutável, autossufi- ciente, impassível, onisciente e onipotente
(Cojifissões, 7.11; 12.15; 11.11; 11.13; 13.16
[NPNF-1, 1:110, 167, 180, 196]; Da Santa
Trindade, 1.1.3; 5.2.3 [NPNF-1, 3:18, 88]; A Cidade de Deus, 11.10; 22.1 [NPNF-1,
2:210, 479]). Partindo desse princípio, Agostinho levou a doutrina da Trindade à sua expressão teológica clássica em seu livro
Da Santa Trindade. Diferentemente dos pais
capadócios, Agostinho parte da concepção da unicidade de Deus, e daí avança para Sua tri- plicidade. Ele concebe a unicidade de Deus se baseando na consubstancialidade (identi dade de substância) das pessoas. A simples e atemporal essência de Deus constituí não apenas o fundamento decisivo para Sua uni cidade ontológica, mas também coloca o Pai como o nascedouro da Trindade, tornando- Se assim a fonte da qual se derivam tanto as pessoas como a unidade delas.
Agostinho, porém, não foi feliz ao usar a palavra “pessoas”, provavelmente porque o termo sugere a ideia de indivíduos separados. Ele acredita que o termo é empregado “não^£ para dar uma explicação completa, mas para que não fôssemos obrigados a permanecer em silêncio” {Da Santa Trindade, 5.9 [NPNF-1, 3:92]). A teoria agostiníana é a de que as pes soas divinas são relações inalteráveis, origi nais e subsistentes. Apropriando-se das idéias de geração e processão eternas, utiliza-as para definir as relações. As pessoas são assim redu zidas a relações de procriar, ser procriado e proceder. Dentro dessa estrutura e defendendo que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho
{Filioque), Agostinho promove a ideia de que
o Espírito Santo, como pessoa subsistente, é fruto do amor mútuo entre Pai e Filho, o elo consubstanciai que Os une. Há razões para se 162
DOUTRINA DE DEUS perguntar se essa visão faz justiça à revelação
bíblica de três pessoas independentes. O Deo
imo parece absorver o Deo trino. A Trindade
é substituída pela monarquia.
A atemporalidade da essência simples de Deus faz surgir a interpretação da providên- cía-predestinação-presdência divina como a causa soberana, eterna e divina da multipli cidade, da criação temporal e da história (ver
A Cidade de Deus, 22.2 [NPNF-1, 2:480]).
A duplicação platônica da eternidade no tempo não é produzida por um demiurgo, mas por Deus, que é visto como Criador tanto do mundo das idéias como de sua duplicação no tempo (ibid,),
7. O Credo Atanasiano (c. 430-500)
Considera-se que o Credo Atanasiano, também conhecido como Qiticunque, seja a expressão definitiva da crença católica na Trindade. Redigido por um autor desconhe
cido, esse credo revela a influência da teolo gia agostíniana sobre a Trindade, Ele enuncia explicítamente a pluralidade e a unicidade simultânea de Deus: “O Pai é Deus, o Filho é Deus, (e) o Espírito Santo é Deus; e ape sar disso não há três deuses, mas há um só Deus" (Denzinger, 15). Declara a divindade de pessoas não só chamando cada uma expli citamente de Deus e Senhor, mas também atribuindo a cada uma, respectivamente, as qualidades divinas de incriabilidade, imensi dade, eternidade e onipotência. Faz clara dis tinção entre as três pessoas, que não devem ser confundidas (contra o sabelianismo). Conserva, infelizmente, uma forma sutil de monarquianismo e subordinacionismo onto- Iógico, quando explica as diferenças das pes soas metafisicamente, recorrendo às idéias de geração e processão. Para o credo ata nasiano, o Pai não é gerado; mas o Filho é gerado do Pai, e o Espírito Santo procede do Pai e do Filho (daí a expressão Filtoque). A unicidade da Trindade é explicada com base em sua substância ou natureza divina:
“A natureza divina do Pai e do Filho e do Espírito Santo é uma” (Denzinger, 39).
C. Período Medieval
A reflexão teológica durante a Idade Média articulou, de maneira sistemática, as consequências lógicas da síntese agos- tiniana. Diferentemente de Agostinho, Tomás de Aquino (1225-1274), o repre sentante mais destacado da teologia esco- lástica, desenvolveu sua teologia sobre o alicerce filosófico aristotélico.
Tomás de Aquino não formulou um novo conceito de Deus, senão que, tomando Agostinho como base, elevou a doutrina clás sica de Deus a um nível de especificidade téc nica e coerência interna não alcançada por seus predecessores. Alicerçou seu sistema de pen samento em sua própria interpretação cristã de Aristóteles. Tratou primeiramente da dou trina sobre Deus, que é por ele descrito como um Ser eterno, uno, simples, imutável, per feito e bom (Suma Teológica, la.20.4; la.11.3; la.3.6, 7; la.9.1; la.4.1; la.6.1). Concluída a doutrina sobre Deus, apresentou uma longa discussão sobre a doutrina da Trindade (ibid., la.27-43). Ele concebe a una e simples essência ou substância de Deus em analogia com as ati vidades e características do intelecto humano; mais precisamente, com a semelhança da inter pretação aristotélica do intelecto. Como resul tado, as pessoas da Divindade não são centros independentes de conhecimento e atividade, conforme o declara o registro bíblico. Isso-*;jE implicaria em triteísmo. Para ele, as pessoas são distinções reais dentro da essência divina absoluta e simples. As distinções, que deter- ' minam as pessoas como subsistentes dentro da essência, são relações dentro da essên cia, e as relações são concebidas como pro venientes da geração do Filho e da processão do Espírito Santo. Tomás incorpora o ensino clássico da geração eterna e da processão do Espírito como "resultados” necessários do inte lecto de Deus (o Pai), que, ao expressar-Se,
TRATADO DE TEOLOGIA
produz em Si mesmo uma Palavra (o Filho). Afinal de contas, Deus não está somente conhecendo, mas também simultaneamente amando. O amor surge de duas pessoas divi nas, o Pai e o Filho, em um ato que é des crito como o movimento unitivo, uma espécie de retorno. Esse movimento, que emana tanto do Pai como do Filho, precipita uma erupção dentro deles, a saber, o Espírito Santo, que Se toma tão real quanto Eles. O Espírito Santo é o ato pelo qual o amor que emana do Pai e do Filho é consumado. Estabelece-se, assim, uma tríplice distinção de oposição mútua (paterni dade, filiação, expiração-processão) dentro da essência simples de Deus como idêntica a ela. Essas relações subsistentes, entendidas como oposição dentro da essência simples de Deus, são conhecidas como hipóstases ou pessoas. As relações, porém, são idênticas â essência sim ples. Revela-se, assim, na estrutura interna da substância simples uma certa relacionalidade.
Para Tomás de Aquino, presciência, pre destinação e providência se fundamentam na própria natureza atemporal de Deus (ibid., la.14.13; la.19.3, 4; la.22), dando continui dade assim à tradição agostiniana. As per cepções de Aquino sobre Deus são cativantes e coerentes dentro do sistema filosófico que ele escolheu seguir. Visto, porém, que sua abordagem não emana da Escritura, ele é incapaz de apresentar a coerência interna da concepção bíblica de Deus.
D. A Reforma
O interesse teológico da Reforma Protestante centralizou-se em questões sote- riológicas e eclesiológicas. Essa ênfase tal vez explique por que a doutrina de Deus não passou por uma revisão. Em termos gerais, o protestantismo reafirmou a abordagem clássica de Deus, ao mesmo tempo em que intensificou e modificou algumas ênfases. Também não tratou especificamente da fun damentação filosófica para a teologia. As teo- logias luteranas e calvinistas empregaram
em alto grau informações e linguagem bíbli cas, dando assim a impressão de estarem-se fundamentando unicamente na Escritura. Há, contudo, nos escritos desses reformado res influências neoplatônicas, agostiníanas e ockamistas em operação, tanto de maneira implícita como explícita.
1. Martinho Lutero (1483-1546)
A teologia de Deus elaborada por Lutero se baseia na revelação divina em Jesus Cristo.