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O poder-dever da administração na deflagração da persecução disciplinar

2.2 OBRIGATORIEDADE DE REALIZAÇÃO DO PROCESSO PARA O EXERCÍCIO

2.2.1 O poder-dever da administração na deflagração da persecução disciplinar

De acordo com o art. 143 da Lei nº 8.112/90, a autoridade que tiver ciência de

irregularidade no serviço público é obrigada a promover a sua apuração imediata, mediante

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75 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 311.

sindicância

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ou processo administrativo disciplinar.

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Com efeito, a apuração não é

discricionária, o que não impede, entretanto, a Administração de recusar denúncia carente de

qualquer fundamento.

Assim, previamente, dispõe a administração da investigação preliminar,

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cuja

finalidade não é outra senão verificar até que ponto existe base racional para estimar se houve

cometimento de infração disciplinar, a fim de evitar a existência de um processo sem

fundamento com os correspondentes efeitos desagradáveis e gravosos para o agente público.

Essa investigação preliminar, como não constitui sindicância ou processo disciplinar, que são

os instrumentos legais previstos em lei para a apuração de infração, não tem o condão de

interromper a prescrição, o que obriga a administração a realizar avaliação com celeridade.

O caso clássico de aplicação da investigação preliminar é para averiguar as denúncias

apócrifas, as quais, em princípio, não seriam idôneas para deflagrar a persecução

administrativa (Art. 144

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da Lei nº 8.112/90), conforme se depreende da leitura do Despacho

nº 396/2007

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, do então Advogado–Geral da União José Antônio Dias Toffoli:

c) O Poder Público, provocado por delação anônima (disque-denúncia, por exemplo) pode adotar medidas sumárias de verificação, com prudência e discrição, sem formação de processo ou procedimento, destinadas a conferir a plausibilidade dos fatos nela denunciados. Acaso encontrados elementos de verossimilhança, poderá o Poder Público formalizar a abertura do processo ou procedimento cabível, desde que mantendo completa desvinculação desse procedimento estatal em relação à peça apócrifa, ou seja, desde que baseada nos elementos verificados pela ação preliminar do próprio Estado.

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Inciso II do art. 4º da Portaria CGU nº 335/06 conceitua sindicância como o “procedimento preliminar sumário, instaurada com o fim de investigação de irregularidades funcionais, que precede ao processo administrativo disciplinar, sendo prescindível de observância dos princípios constitucionais do

contraditório e da ampla defesa”. Esta seria a sindicância prevista na Lei nº 8.112/90. 77

O conceito de processo administrativo disciplinar está positivado no art. 148 da Lei nº 8.112/90:

“Art. 148. O processo disciplinar é o instrumento destinado a apurar responsabilidade de servidor por infração praticada no exercício de suas atribuições, ou que tenha relação com as atribuições do cargo em que se encontre investido.”

78 A Portaria nº 335/2006, da Controladoria-Geral da União define a investigação preliminar como é procedimento administrativo sigiloso, desenvolvido no âmbito do Órgão Central e das unidades setoriais, com objetivo de coletar elementos para verificar o cabimento da instauração de sindicância ou processo administrativo disciplinar. (art. 6º).

79 “Art. 144. As denúncias sobre irregularidades serão objeto de apuração, desde que contenham a identificação e o endereço do denunciante e sejam formuladas por escrito, confirmada a autenticidade”. Confira-se a respeito da interpretação deste artigo, o seguinte julgado do Superior Tribunal de Justiça: “A previsão do art. 144 busca dar maior segurança ao servidor público, evitando que possa vir a ser denunciado caluniosamente por colega ou terceiro protegido no anonimato. Mas isso também não significa que a denúncia anônima deva ser absolutamente desconsiderada, acarretando, inclusive, nulidade na raiz do processo. É possível que ela venha a ser considerada, devendo a autoridade proceder com maior cautela, de modo a evitar danos ao denunciado eventualmente inocente.” (MS nº 7069. Relator: Ministro Felix Fischer, Terceira Seção, DJU de 12.03.2001, p. 86).

No mesmo sentido, é a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:

Mandado de Segurança nº 24.369, do STF - Ementa: Delação anônima. Comunicação de fatos graves que teriam sido praticados no âmbito da Administração Pública. Situações que se revestem, em tese, de ilicitude (procedimentos licitatórios supostamente direcionados e alegado pagamento de diárias exorbitantes). A questão da vedação constitucional do anonimato (CF, art. 5º, IV, “in fine”), em face da necessidade ético-jurídica de investigação de condutas funcionais desviantes. Obrigação estatal, que, imposta pelo dever de observância dos postulados da legalidade, da impessoalidade e da moralidade administrativa (CF, art. 37, “caput”), torna inderrogável o encargo de apurar comportamentos eventualmente lesivos ao interesse público. Razões de interesse social em possível conflito com a exigência de proteção à incolumidade moral das pessoas (CF, art. 5º, X). O Direito Público subjetivo do cidadão ao fiel desempenho, pelos agentes estatais, do dever de probidade constituiria uma limitação externa aos direitos da personalidade? Liberdades em antagonismo. Situação de tensão dialética entre princípios estruturantes da ordem constitucional. Colisão de direitos que se resolve, em cada caso ocorrente, mediante ponderação dos valores e interesses em conflito.81

Cumpre fazer referência ainda à Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção,

incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto nº 5.687, de 31/01/06,

portanto, posterior à Lei nº 8.112/90, na qual a República Federativa do Brasil se obrigou a

apurar denúncias anônimas, conforme se depreende da leitura do art. 13.2:

2. Cada Estado-Parte adotará medidas apropriadas para garantir que o público tenha conhecimento dos órgãos pertinentes de luta contra a corrupção mencionados na presente Convenção, e facilitará o acesso a tais órgãos, quando proceder, para a denúncia, inclusive anônima, de quaisquer incidentes que possam ser considerados constitutivos de um delito qualificado de acordo com a presente Convenção.

Assim, no Direito brasileiro, a deflagração de sindicância ou processo administrativo é

imperativo para a administração, ressalvados os casos de denúncias sem fundamento, as quais

devem ser recusadas.

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Mandado de Segurança nº 24.369/DF. Relator: Ministro Celso de Mello, decisão publicada no DJU de 16.10.2002. No mesmo sentido: “Nada impede, contudo, que o Poder Público, provocado por delação

anônima (“disque-denúncia”, p. ex.), adote medidas informais destinadas a apurar, previamente,em averiguação sumária, “com prudência e discrição”, a possível ocorrência de eventual situação de ilicitude penal, desde que o faça com o objetivo de conferir a verossimilhança dos fatos nela denunciados, em ordem a promover, então, em caso positivo, a formal instauração da “persecutio criminis”, mantendo-se, assim, completa desvinculação desse procedimento estatal em relação às peças apócrifas. (HC nº 100042 MC/RO. Relator: Ministro Celso de Mello, decisão publicada no DJE de 08.10.2009). A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça não destoa do entendimento da Suprema Corte: “Não enseja a nulidade do processo administrativo disciplinar o simples fato de sua instauração ser motivada por fita de vídeo encaminhada anonimamente à autoridade pública, vez que esta, ao ter ciência de irregularidade no serviço, é obrigada a promover sua apuração. (MS nº 12.429/DF. Relator: Ministro Felix Fischer, Terceira Seção, julgado em 23.05.2007, DJ de 29.06.2007, p. 484).

No Direito Comparado, o ordenamento jurídico espanhol é semelhante ao nosso:

conhecida a infração, nasce para a Administração o dever de apurá-la. Há semelhança

inclusive no que concerne à investigação preliminar, denominada investigação reservada

naquele país.

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O ordenamento jurídico português, entretanto, trata a questão de forma diferente.

Naquele país, o exercício do poder disciplinar não é um poder-dever. Entende-se que a

instauração da persecução disciplinar é uma faculdade da administração, devendo esta se

orientar pelos critérios de oportunidade e conveniência.

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Sustenta Marcelo Caetano que, ao contrário da repressão penal que deve ser exercida

sempre que se verifique a existência de um crime, a repressão disciplinar só tem lugar quando,

segundo o critério dos chefes, a vantagem da punição do funcionário é maior para a boa

ordem do serviço público do que o esquecimento da falta.

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Assim vem decidindo a jurisprudência administrativa daquele país:

No âmbito disciplinar nem a toda falta tem que corresponder a um procedimento, nem toda falta neste apurada contra certo agente tem que corresponder necessariamente a uma sanção disciplinar.85

A administração goza da faculdade de instaurar ou não o processo disciplinar de acordo com o entendimento quanto a oportunidade e conveniência de tal medida.86

Esta faculdade conferida à Administração de deflagrar ou não a persecução disciplinar

é criticada por Maria Teresa de Melo Ribeiro Helena. Para a autora portuguesa, encerra a

concepção de uma época em que se entendia que a administração gozava de amplos poderes

discricionários, designadamente no Direito Disciplinar, reflexo do entendimento da

discricionariedade administrativa como uma zona de liberdade da Administração Pública,

hoje em dia ultrapassada.

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O poder discricionário já não é concebido como algo que permita à Administração

fazer o que lhe apeteça, desde que não proibido; porém, o princípio da legalidade impõe que

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82 JIMÉNEZ, J.M. Trayter. Manual de Derecho Disciplinario de los Funcionarios Públicos. Marcial Pons, Barcelona, 1992, p. 316.

83 A respeito: ABREU, Luís Vasconcelos. Para o estudo do processo administrativo disciplinar português

vigente. As Relações com o processo penal. Coimbra: Almedina, 1993, p. 51 e ss. 84 Do poder disciplinar. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1932, p. 44.

85 Supremo Tribunal Administrativo. Rec. nº 2502, julgado em 25 de fevereiro de 1999. 86 Supremo Tribunal Administrativo. Rec. nº 21154, julgado em 30 de março de 1993.

87 RIBEIRO HELENA, Maria Teresa de Melo. O Princípio da Imparcialidade da Administração Pública. Coimbra: Almedina, 1993, p. 245.

toda atividade da Administração esteja sujeita à lei e à Constituição e, em particular, em

respeito aos direitos fundamentais.