1.5 FUNDAMENTO DO PODER DISCIPLINAR DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
1.5.1 A relação especial de sujeição
1.5.1.1 Origem e objetivos
Como dito linhas atrás, parte da doutrina defende que o fundamento do poder
disciplinar reside em uma relação especial de sujeição que se estabelece entre a
Administração e o agente público
53.
Cabe aqui, antes de avançarmos no tema, uma breve digressão histórica do instituto da
relação especial de sujeição, uma vez que, como será demonstrado, na sua origem, este não
homenageava o princípio da legalidade e o respeito aos direitos fundamentais.
54O conceito especial de “sujeição” surgiu na Alemanha como resultado do confronto
entre os princípios monárquico e democrático, em que o monarca reservava para si diversos
domínios, entre os quais a Administração Pública.
Otto Mayer, que foi o principal expoente desta teoria e responsável por disseminá-la
pela Europa, definiu “sujeição” como o vínculo de duas pessoas desiguais do ponto de vista
jurídico, cujo conteúdo é determinado pela pessoa superior.
55Dizia ainda o autor:
Nesse sentido, a relação entre Estado e súdito é um vínculo de sujeição importante. Mas, principalmente, com essa palavra queremos designar uma relação de sujeição
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Derecho se mantenga em iguales o siquiera parecidos términos hasta el presente; como muestra el hecho, no sólo reconocido, sino reclamado por los próprios autores mantenedores de la diversidade Derecho penal- Derecho disciplinario, de la jurisdicción progressiva de este último.” (Potestad disciplinaria. Libro homenaje al professor José Luís Vilar Polosí. Civitas, 1989, p. 1326 e ss).
53 Para Rafael Munhoz de Mello, “a única diferença entre as relações de sujeição geral e as de sujeição especial, no que diz respeito às sanções administrativas e à incidência do princípio da legalidade, é que no primeiro caso a tipificação deve ser legal, enquanto no segundo admite-se a tipificação em regulamento. Tanto um quanto noutro, porém, exige-se a tipificação e a anterioridade”. (Princípios constitucionais de Direito Administrativo Sancionador. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 39).
54 Direitos fundamentais são aqueles devidamente positivados numa Constituição, ou em documento equivalente; através deles, faz-se exsurgir uma necessária teia de relações entre a estatalidade e os seus cidadãos, tudo de modo a assegurar os valores, os princípios e as regras de cogência inarredável no referido sistema jurídico. Impende mencionar, agora, a tríade elementar dos direitos fundamentais, a saber, (a) o Estado; (b) o indivíduo; e (c) o texto normativo regulador das relações entre o Estado e os indivíduos. Nessa senda, é oportuno repisar o entendimento de que a noção de indivíduo é recente e, nessa qualidade, a partir do Estado moderno, alinha-se todo um complexo de direitos a ele associado/vinculado em face de possíveis relações do Estado e, claro, também de terceiros, donde exsurge o indivíduo como sujeito de direitos (DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 21-23). 55 MAYER, Otto. Derecho Administrativo alemán. Parte General. Tradução do francês por Horacio H. Heredia e
criada especialmente para o súdito, ou melhor, para uma certa pluralidade de súditos. É uma relação jurídica de direito público pela qual o indivíduo está vinculado em relação ao Estado por efeito da obrigação geral de regular sua conduta conforme a um certo interesse público. Em virtude dessa obrigação, a ele são dadas ordens detalhadas. Essas ordens, que têm todas as qualidades de um ato administrativo, apresentam a particularidade, já mencionada, de que podem ser emitidas sob a forma de uma regra geral. E quando se trata de uma ordem especial, não emana necessariamente de uma autoridade; são simples empregados do serviço público interessado que têm esse direito de mando. É nesses dois aspectos, pois, que a relação de sujeição, por sua natureza excepcional, apresenta particularidades.56
Otto Mayer menciona como exemplos de relações de sujeição especial as obrigações
do funcionário público, o poder disciplinador, o poder de direção nos estabelecimentos
públicos e o poder das corporações públicas sobre seus membros.
57Walter Jellineck, outro importante teórico da matéria, exclui o princípio da legalidade,
e consequentemente o da reserva de lei, das relações especiais de sujeição. Para esse autor, as
relações do Estado com seus organismos, como relações dentro do Estado, não são relações
jurídicas, e sempre e quando o Estado regule exclusivamente uma relação com seus próprios
agentes poderá proceder à sua regulamentação através de regulamentos desprovidos de
natureza jurídica, uma vez que um procedimento que permanece estritamente dentro de sua
personalidade e que por si só não produz efeitos em relação a terceiros não poderá nunca ser
qualificado como norma jurídica.
58Mediante as relações especiais de sujeição, justificava-se uma forte intervenção sobre
determinados sujeitos – sem respeito a seus direitos fundamentais nem ao princípio da reserva
legal – que seriam intoleráveis para os cidadãos que se encontravam em uma relação de
sujeição geral.
Hartmur Mauer explica que, em sua concepção original, a relação de poder especial
concernia a relações específicas entre Estado e o particular, decorrentes de determinados
âmbitos da Administração tais como escola, efetivação de pena, relação funcional e relação do
serviço militar. Essas relações eram associadas ao âmbito intra-administrativo, considerado
livre juridicamente, estando subtraídas aos direitos fundamentais, à reserva de lei e à proteção
jurídica. Assim, o Executivo podia promulgar regulações necessárias para a formação das
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56 MAYER, Otto. Derecho Administrativo alemán. Parte General. Tradução do francês por Horacio H. Heredia e Ernesto Krotoschin. t. I, Buenos Aires: Depalma, 1949, p. 145. Tradução livre para o português do autor. 57 MAYER, Otto. Derecho Administrativo alemán. Parte General. Tradução do francês por Horacio H. Heredia e
Ernesto Krotoschin. t. I, Buenos Aires: Depalma, 1949, p. 149. Tradução livre para o português do autor. 58 ANABITARE, Alfredo Gallego. Las relaciones especiales de sujeción y el principio de la legalidade de la
relações de poder especiais (prescrições administrativas que, segundo a concepção da época,
não tinham caráter jurídico-externo) e ordenar intervenções sem autorização legal.
59Esse Regime, extremante cômodo para a organização administrativa e a gestão dos
serviços públicos se manteve durante a época de Weimar, durante o nacional socialismo e,
inclusive, durante a vigência da Lei Fundamental de Bonn.
As críticas doutrinárias
60que com o tempo foram-se avolumando – posto que se
considerava que tal excepcionalidade era incompatível com um autêntico Estado
Constitucional de Direito – encontraram ressonância na sentença do Tribunal Constitucional
Federal de 14 de março de 1972, na qual, pela primeira vez, se declarou expressamente que as
relações especiais de sujeição não escapam às garantias da reserva de lei, dos direitos
fundamentais e da proteção do Poder Judiciário.
O recurso (Reclamação Constitucional) foi motivado pela restrição à liberdade de
expressão de um preso que teve sua correspondência violada por um agente público do
presídio, com fundamento em uma disposição administrativa. Na decisão, o Tribunal afirmou
a vigência dos direitos fundamentais e do princípio da legalidade no âmbito das relações
especiais de sujeição, determinando que (i) os direitos fundamentais dos presos somente
podem ser restringidos por intermédio ou com base em uma lei; (ii) as intervenções nos
direitos fundamentais dos presos, sem fundamento legal, somente podem ser de caráter
provisório; (iii) a limitação dos direitos fundamentais dos presos somente pode ser
considerada quando tal for indispensável para alcançar os fins da sociedade, abrangidos pela
ordem de valores da Lei Fundamental; (iv) cabia ao legislador expedir uma lei de execuções
penais em conformidade com a concepção moderna de direitos fundamentais, que
contemplasse critérios rigorosos sobre as circunstâncias nas quais poderia haver intervenções
nos direitos fundamentais.
61A relação especial de sujeição constituía, portanto, uma figura jurídica que visava
estabelecer uma diferenciação entre os administrados, diminuindo os direitos daqueles que se
encontravam em determinadas situações de vínculo direto com a Administração Pública,
dentre eles o laboral.
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59 Direito Administrativo geral. Tradução de Luís Afonso Heck. 14. ed. Barueri: Manole, 2006, p. 195.
60 Conferência sobre relações especiais de sujeição, realizada em Mainz, em 1956, relatada por Marianl Lopez Benitez, in Naturaleza y presupuestos constitucionales de las relaciones especiales de sujeción. Madrid: Civitas, 1994, p. 122 e ss.
61 SCHWABE, Jürgen. Cincuenta años de juriprudencia del Tribunal Constitucional Federal alemán. Trad. Marcela Anzola Gil. Colômbia: Edições Jurídicas Gustavo Ibañez, 2003, p. 12-16. Tradução livre para o português do autor.