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DHAA e Direito Humano à Saúde: conexões no Sistema Único de Saúde

2 MARCO CONCEITUAL

2.2 SAN e DHAA: conceitos, princípios e articulação com a saúde

2.2.5 DHAA e Direito Humano à Saúde: conexões no Sistema Único de Saúde

Em toda a extensão do texto, a relação entre saúde, DHAA e SAN pôde ser evidenciada. A discussão acerca da saúde está imbricada tanto na definição desses dois conceitos, quanto na institucionalização de uma ordem pública que objetive a concretização destes em práticas alimentares adequadas e saudáveis pela população brasileira.

Assim como relatado anteriormente, a característica de indivisibilidade dos direitos humanos requer a plena realização de todos esses direitos. Contudo, o DHAA e o Direito Humano à Saúde – DHS são particularmente e fortemente relacionados. Uma vez que, sem saúde o corpo não dispõe de condições para ter o DHAA garantido, bem como sem o DHAA garantido a plena concretização do DHS está impossibilitada. Do mesmo modo, para a realização da SAN, o setor saúde tem funções específicas e importantes que contribuem para o conjunto de políticas de governo voltadas para a concretização do DHAA.

As iniquidades sociais resultantes da forma de organização da sociedade, seus modos de produzir, comercializar e consumir alimentos, bem como a publicidade envolvida nesse processo, condicionam as práticas alimentares das pessoas, gerando situações de

insegurança alimentar e nutricional e de violações do DHAA. Essas situações, sejam geradas pela privação ou pelo excesso alimentar, e suas consequências afetam a saúde da população, gerando demandas ao setor saúde (VALENTE, 2002). Portanto, o atual modelo de desenvolvimento econômico repercute nas condições de alimentação e nutrição de todas as classes sociais, não apenas nos grupos vulneráveis da sociedade.

O atual perfil epidemiológico brasileiro corrobora essa reflexão, visto que as principais causas de morte e a ocorrência das principais doenças no Brasil estão relacionadas à alimentação, seja pela quantidade insuficiente de alimentos consumida ou pela má qualidade nutricional dos mesmos. Assim, na atualidade, a sociedade brasileira convive tanto com as doenças associadas à pobreza e à exclusão, tais como a desnutrição, quanto com aquelas relacionadas a hábitos alimentares não saudáveis, como a hipertensão arterial, diabetes, doenças cardiovasculares, obesidade e sobrepeso.

Somam-se a esses indicadores epidemiológicos, outras preocupações referentes à alimentação, como a repercussão dos insumos químicos utilizados pelas práticas agrícolas produzindo agravos à saúde humana, como intoxicações e câncer e a utilização maciça de aditivos alimentares pela indústria alimentícia. Além disso, a incorporação de alimentos geneticamente modificados na alimentação e sua inconclusiva relação com os riscos à saúde humana, dentre os quais estão sendo levantados o aumento dos casos de alergias e resistência a antibióticos, bem como o alastramento do consumo de alimentos industrializados e a publicização destes pela mídia são aspectos inerentes ao consumo alimentar contemporâneo que se configuram como formas refinadas de violação do DHAA (CAVALLI, 2001).

Tendo em vista esse panorama e a necessidade da adoção, por parte do setor saúde, de uma política de alimentação e nutrição consoante com a promoção da SAN e da realização progressiva do DHAA, foi instituída a Política Nacional de Alimentação e Nutrição - PNAN em 1999, atualizada em 2012 (BRASIL, 2012b). Essa política, segundo Recine e Vasconcellos (2011), representa o elo potencial entre o Sistema Único de Saúde e o Sistema Nacional de SAN, pontuando a contribuição do setor saúde neste sistema.

A política considera a alimentação e nutrição como requisitos fundamentais para a promoção e proteção da saúde, relacionando-as à qualidade de vida e à cidadania. Desse modo, coloca como seu propósito fundamental a melhoria das condições de alimentação e

nutrição da população brasileira, “mediante a promoção de práticas alimentares adequadas e

saudáveis, a vigilância alimentar e nutricional, a prevenção e o cuidado integral dos agravos relacionados à alimentação e nutrição” (BRASIL, 2012, p. 13).

A PNAN considera o DHAA e DHS como seus pressupostos e elenca princípios que devem ser observados no alcance de seus propósitos e na realização de suas ações. Entre esses, estão os princípios doutrinários e organizativos do SUS: universalidade, integralidade, equidade, descentralização, regionalização, hieraquização e participação popular. Além desses, acrescenta: a alimentação como elemento de humanização das práticas de saúde; o respeito à diversidade e à cultura alimentar; o fortalecimento da autonomia dos indivíduos; a determinação social e a natureza interdisciplinar e intersetorial da alimentação e nutrição; e a segurança alimentar e nutricional com soberania. Alguns foram discutidos previamente neste texto, tendo em vista coincidirem com os princípios que embasam o DHAA e a SAN.

A alimentação como elemento de humanização das práticas de saúde é um princípio presente na política que requer atenção, uma vez que a formação dos profissionais de saúde, no caso em questão o nutricionista, centrada no paradigma biológico conflita com esse entendimento. Segundo a PNAN, esse princípio refere-se às relações sociais, valores e história expressos na alimentação de um indivíduo ou grupo populacional, tendo estes implicações diretas na saúde e qualidade de vida. Portanto, a alimentação vista a partir dessa perspectiva contribui para a valorização do ser humano, para além da sua condição biológica, e reconhece a sua centralidade no processo de produção de saúde-doença (BRASIL, 2012).

Gallian (2007), ao realizar uma reflexão acerca da desumanização do comer na atualidade, contribui afirmando que, no resgate da humanização do comer, é importante a apreensão do sentido de refeição, pois, desse modo, podemos estabelecer leituras acerca da relação integral que um indivíduo estabelece com a sua alimentação.

[...] é importante mencionar a relação intrínseca que existe entre a dimensão – podemos dizer – estética e a dimensão ética da refeição. De acordo com a máxima clássica, também no universo da gastronomia o belo e o bem andam sempre juntos: uma bela refeição deve necessariamente ser uma refeição saudável. [...] É em sua dimensão ética que a refeição entrelaça as diversas esferas da experiência humana individual – a experiência dos sentidos, dos afetos e da inteligência – e, ao mesmo tempo, se apresenta também como espaço de encontro, de transcendência dessa mesma experiência individual. Aqui a experiência do humano, da humanização se completa e se abre. Isso porque, na autêntica refeição, se compartem não apenas os alimentos, mas também e principalmente as experiências, as impressões, as idéias; enfim, as próprias pessoas que dela fazem parte (GALLIAN, 2007, p.180-181).

Portanto, a intervenção do profissional de saúde nas questões alimentares e nutricionais da população, em consonância com o DHAA e a SAN, deve considerar as dimensões subjetivas que condicionaram e condicionam suas escolhas alimentares. A educação nutricional não deve ser concebida, portando, como um processo simplista, técnico e reducionista.

A PNAN enfatiza que um dos papéis dos profissionais de saúde refere-se a fomentar o desenvolvimento de habilidades pessoais relacionadas à alimentação e nutrição nos usuários do SUS. Para isso ressalta que a educação nutricional deve ser realizada através de um processo dialógico entre profissionais e comunidade, visando a autonomia e

autocuidado. O que “pressupõe, sobretudo, trabalhar com práticas referenciadas na realidade

local, problematizadoras e construtivistas, considerando-se os contrates e as desigualdades

sociais que interferem no direito universal à alimentação” (BRASIL, 2012b, p. 35).

Desse modo, a PNAN ressalta a necessidade da realização de uma abordagem integral do cuidado aos agravos relacionados à alimentação e nutrição, em consonância com o conceito de DHAA e SAN. A política está também organizada em diretrizes, as quais abrangem o escopo da atenção nutricional no SUS, a qual deve estar integrada às demais ações nas redes de atenção e ordenada pela atenção básica (BRASIL, 2012b).

Assim, a PNAN representa uma importante conquista ao contribuir na definição das atribuições do setor saúde visando a garantia da SAN e a concretização do DHAA.

Por ser a Atenção Básica à Saúde ordenadora das ações em saúde no SUS, conforme discutido no capítulo seguinte, a ESF representa um importante lócus para a promoção da SAN a partir do setor saúde. A ESF, por permitir uma maior aproximação dos profissionais de saúde com a realidade da vida dos usuários, fornece elementos importantes que auxiliam na construção de uma atuação voltada para um cuidado integral aos agravos relacionados à alimentação e nutrição.