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Segurança Alimentar e Nutricional: conceitos e princípios

2 MARCO CONCEITUAL

2.2 SAN e DHAA: conceitos, princípios e articulação com a saúde

2.2.1 Segurança Alimentar e Nutricional: conceitos e princípios

A histórica construção do conceito de Segurança Alimentar e Nutricional no Brasil, relatada no capítulo anterior, evidencia que esse foi constituído a partir de dois enfoques principais: o socioeconômico e o de saúde e nutrição (BRASIL, 2011b). Além destes enfoques, na LOSAN estão consignadas as dimensões ambiental, cultural, regional e social (BRASIL, 2006b). A SAN consiste:

[...] na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis (BRASIL, 2004, p.4).

Este conceito abrange várias dimensões que influenciam e determinam a situação alimentar e nutricional das populações. Portanto, a concepção de alimentação que embasa a construção dessa conceituação parece ancorar-se no pressuposto de que a alimentação constitui-se “um fenômeno sociocultural historicamente derivado”, “modelada pela cultura”,

sofrendo “os efeitos da organização da sociedade, não comportando a sua abordagem olhares unilaterais” (CANESQUI; GARCIA, 2005, p. 9).

A multideterminação das condições de alimentação e nutrição dos indivíduos, famílias e comunidades requer que a SAN seja pensada como um campo de práticas e concepções agregador de vários saberes oriundos de diversos campos disciplinares, como a ecologia, política, cultura, agricultura, nutrição, sociologia, entre outros (BURLANDY; MALUF, 2011). A natureza abrangente e interdisciplinar da conceituação de SAN representa um desafio para a sua abordagem, uma vez que cada área do conhecimento possui expectativas acerca da apreensão e utilização desse conceito, as quais estão ancoradas em marcos teóricos particulares. Esses marcos não podem ser tomados isoladamente na abordagem da SAN, pois permitiriam uma atenção fragmentada de alguma ou algumas dimensões do problema, restringindo-a aos estreitos limites de uma disciplina (KEPLLE; SEGALL-CORRÊA, 2011). Portanto, os pressupostos das disciplinas envolvidas devem ser tomados a partir de uma perspectiva integrada que permita a abordagem integral da questão. Essa visão torna incoerente qualquer abordagem fragmentada da questão, tornando premente a assunção dessa perspectiva pelo nutricionista.

Esta perspectiva integrada que conforma a SAN tem questionado atualmente os modos de produção, comercialização e consumo de alimentos. Evidenciando a premência da

elaboração de políticas públicas que promovam a transformação de contextos e processos que condicionam as práticas alimentares vigentes (BURLANDY; MALUF, 2011). Assim, esse panorama remete à necessidade da adoção da intersetorialidade como estratégia central na construção da política de segurança alimentar e nutricional.

Analogamente, a concretização da SAN em ação do Estado requer a mobilização e o permanente diálogo de vários setores do governo e sociedade civil para a estruturação de estratégias de enfrentamento da problemática alimentar e nutricional (BURLANDY; MALUF, 2011). Burlandy (2004) afirma que a SAN demanda um desenho de política pública de caráter supra-setorial, no qual cada setor atue em observância aos objetivos mais amplos da SAN. A autora faz referência à intersetorialidade como uma construção conjunta e partilhada entre diversos setores de um projeto integrado destinado a alcançar objetivos mais amplos.

Alguns desafios apresentam-se à construção da intersetorialidade necessária à efetivação da SAN através das políticas sociais, entre eles a histórica desarticulação entre setores e a fragmentação institucional características da máquina estatal brasileira. Outro desafio refere-se à presença de distintos interesses de segmentos da sociedade civil e governo na arena da questão alimentar e nutricional, podendo resultar em conflitos em relação à promoção da SAN. Tais fatores tornam complexa a construção de projetos integradores (CENTRO DE REFERÊNCIA EM SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL- CERESAN, 2006).

Os conflitos de interesses referidos acima, embora não específicos do tema em questão, tornam-se particularmente importantes na abordagem da SAN, visto que o sistema alimentar e a construção do contexto que condiciona as práticas alimentares das populações refletem o modo como a sociedade se organiza, produz e distribui suas riquezas, abrangendo as contradições inerentes à trama social. Assim, a redistribuição de recursos materiais e de renda e de redução da pobreza são mecanismos centrais para a garantia da SAN. Nesse sentido, a SAN apresenta-se como uma potencialidade na ampliação da cooperação entre setores e segmentos sociais em prol do alcance dos objetivos amplos a que ela se propõe, podendo fornecer importante contribuição na construção de um modelo de desenvolvimento que integre crescimento econômico, social e humano (CERESAN, 2006).

Em relação à concepção de desenvolvimento, Treminio (2010) afirma que muitos escritos o confundem com crescimento econômico. Essa autora enfatiza que crescimento econômico refere-se somente à dinâmica de produção de riqueza em uma sociedade, já o desenvolvimento inclui os valores sociais do conjunto de atores na determinação das prioridades e na fiscalização das ações. Para Maluf (2000), a promoção do crescimento

econômico não pode passar à margem da discussão acerca da equidade social, pois, ainda que a renda monetária de uma sociedade tenha um papel determinante nas suas condições de vida, a mesma não se constitui como um parâmetro suficiente de equidade e bem-estar social dos diversos segmentos da sociedade. O autor destaca que se torna necessário associá-lo à busca

da melhoria da qualidade de vida “através de processos com ativa participação das respectivas

comunidades na definição dos seus fins e dos meios para persegui-los” (2000, p.16).

Para alguns autores, a participação ativa dos diversos segmentos da sociedade

civil na construção de políticas públicas, teria “o potencial de resgatar nos processos

decisórios princípios que, em tese, pautam as ações societárias não mercantis, tais como a

cooperação, a solidariedade e a equidade” (BURLANDY, 2011, p. 64).

No caso da construção do conceito de SAN no Brasil, Valente (2002) afirma que a mesma ocorre intrinsecamente à luta da população brasileira contra a fome, pela redemocratização do país e pela constituição de uma nação com mais equidade, justiça social e econômica. A importante contribuição de segmentos da sociedade civil na discussão da problemática alimentar e nutricional brasileira, o diálogo entre estes e Estado, muito embora marcado por avanços e recuos ao longo da história, parecem ter ecoado na institucionalidade governamental que estabelece a SAN como uma prioridade no contexto de desenvolvimento do Brasil.

Assim, a SAN “trata exatamente de como uma sociedade organizada, por meio de

políticas públicas, de responsabilidade do Estado e da sociedade como um todo, pode e deve

garantir o direito à alimentação...”, correspondendo a “um dever do Estado e da sociedade”

(VALENTE, 2002, p.111).

Neste sentido, conforme discutido no capítulo anterior, o Brasil tem avançado muito nos últimos anos na conformação de uma base legal que estabelece a garantia da SAN como dever do Estado, e a alimentação adequada como um direito fundamental do ser humano. A Lei Orgânica de SAN estabelece dois princípios a que a SAN deve estar subordinada: Direito Humano à Alimentação Adequada e Soberania Alimentar. Isso significa que estes dois princípios devem orientar a definição de estratégias de desenvolvimento do país, bem como a construção de políticas públicas que objetivam a garantia da SAN, seus modos de implementação e instrumentos de monitoramento e controle social (BRASIL, 2006b; BURITY et al., 2010).

A soberania alimentar, um conceito desenvolvido inicialmente pela Via Campesina, está relacionada ao direito dos povos em definir suas próprias políticas de produção, distribuição e consumo de alimentos. Esse princípio tem sido referência na

promoção de modelos agroecológicos sustentáveis e de base familiar, em inciativas propiciadoras de maior proximidade entre produtor e consumidor de alimentos e de valorização da diversidade alimentar (BURITY et al., 2010). Apesar de constituir-se como direito e princípio para as iniciativas de promoção da SAN, o modelo de desenvolvimento adotado atualmente pouco tem colaborado para o alcance deste, uma vez que os modos de produzir, comercializar e consumir alimentos refletem o oligopólio de grandes corporações no sistema alimentar nacional, perpassando desde os insumos e produtos agrícolas até a publicidade de alimentos (BURLANDY; MALUF, 2011).

Outro marco importante na consolidação da SAN enquanto objetivo do Estado brasileiro foi o estabelecimento de uma Política Nacional de SAN. A leitura da PNSAN evidencia alguns princípios que embasam os eixos estratégicos que visam à promoção da SAN em território nacional, tais como: universalidade, equidade, sustentabilidade, integralidade da assistência à saúde, participação social, soberania alimentar e direito humano à alimentação adequada.

A partir desse ponto, enfocarei o Direito Humano à Alimentação Adequada, por esse fundamentar a definição da Segurança Alimentar e Nutricional (BURLANDY; MALUF, 2011) e requerer para a sua plena concretização princípios enunciados acima.