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1 Inevitabilidade do dizer (-se)

1.1.2. Diálogo interiorizado: a dramaturgia da voz

De um modo geral, a modalidade discursiva mais difundida e declinada na narrativa literária para jovens nas duas últimas décadas do século XX é o monólogo, apesar de, como sublinham Carlos Reis e Ana Cristina Macário Lopes, este ser na sua essência “(…) um diálogo interiorizado, onde o ego cindido se desdobra num eu que fala e num eu (tu) que escuta” (Reis e Lopes, 1990: 97). De facto, e porque nem sempre as personagens encontram nas diversas representações da alteridade a comunhão empática que lhes permita verbalizarem as suas inquietações e os seus anseios mais íntimos sem constrangimentos, as narradoras socorrem-se frequentemente do registo monologal para darem voz ao seu pensamento e aos seus estados emotivos, numa tentativa de inquirirem sobre a sua identidade e de encontrarem soluções para o enigma existencial.

Na verdade, o eu textual que se inscreve no discurso em primeira pessoa é um eu-sujeito-observador que continuamente reflecte e se interroga sobre os meandros da personalidade do eu-sujeito-observado, ocasionalmente reconvertido num tu sem capacidade de resposta. Esta dimensão do sujeito cindido, do sujeito em permanente diálogo consigo, sinaliza aliás a tendência para o desdobramento e a multiplicidade do indivíduo em que se funda, no plano ontológico, a literatura intimista contemporânea (cf. Rocha, 1992: 48). Nesse processo inconcluso de construção de si, aconsciência que se julga e que incessantemente se interroga “(…) é o lugar por excelência duma alteridade através da qual o sujeito procura a sua identidade. É nessa consciência enquanto alteridade que radica o movimento auto-reflexivo próprio da literatura do eu” (Rocha, 1992: 49).

De facto, na sua busca incessante de (auto)conhecimento, as personagens deparam-se frequentemente com situações de incomunicabilidade e não-resposta por

parte das diversas representações da alteridade, como veremos, o que poderá explicar, pelo menos em parte, o recurso à dialogização da palavra monologal nas obras seleccionadas - estratégia discursiva que corrobora a ideia, amplamente difundida pela literatura da modernidade, da multiplicidade dialogante do eu (cf. Rocha, 1992: 48).

Aliás, o entendimento do indivíduo como um ser plural, que encontrou expressão literária privilegiada em Rimbaud, Valéry e em toda a poética pessoana, consubstancia-se, nos textos em estudo, e à semelhança dos procedimentos atinentes à literatura para adultos moderna e contemporânea, em situações discursivas que problematizam e equacionam o estatuto do eu e as suas relações com a linguagem (cf. Rocha, 1992: 45).

De entre essas situações discursivas que sinalizam a construção literária do sujeito como pluralidade, o desdobramento do eu numa segunda pessoa verbal e pronominal institui-se, nas obras em estudo, como uma estratégia de auto-representação peculiar, encenando uma “(…) situação de autocomunicatividade intratextual (…)” (Aguiar e Silva, 1986: 307) mesmo quando o procedimento se inscreve numa lógica meramente retórica:

Quando a porta bateu no trinco, e eu fiquei no silêncio do pequeno corredor (…) dei comigo a falar para o tecto (…): - Como é que te vais sair desta alhada, Marta Joaquina?!... (CT, 37)

O silêncio parece atordoar o sujeito atirado para uma situação de indesejada solidão. Marta, a jovem protagonista de Cortei as Tranças, que, devido à morte abrupta da mãe, tem de trabalhar para sobreviver e sustentar a família, vê-se confrontada com uma nova realidade: recém-empregada em casa de um casal de médicos, tem de limpar a casa e tomar conta dos pequenos gémeos de três anos, sem qualquer tipo de preparação ou mesmo predisposição para tal. A menina-mulher que só gosta de executar tarefas tradicionalmente consideradas masculinas sente-se, de repente, perdida e

desorientada. Sem ninguém que a possa ajudar, que lhe possa indicar um caminho, Marta questiona-se, recorrendo a uma segunda pessoa pronominal e verbal (“Como é que te vais sair...”) e ao vocativo em posição final, que adquire uma maior produtividade semântica pelo facto de incluir o segundo nome próprio, aquele que usualmente Marta rejeita na apresentação de si aos outros, na fórmula que endereça a si própria de forma especular. Assim, o tom de solenidade imprimido pelo discurso reitera a densidade dramática experimentada pelo sujeito inquieto.

O eu que assim se dirige a um eu-tu sem capacidade de resposta é pois um eu à deriva dentro de si próprio, que dialoga com a voz da sua consciência na expectativa de encontrar uma solução para os problemas momentâneos que o afligem. A inquietação interior necessita de ser projectada para fora do sujeito, as palavras precisam de ser exteriorizadas, pronunciadas em voz alta. O sujeito não consegue silenciar-se, sendo que falar é, neste contexto, uma inevitabilidade e um imperativo de ordem pessoal.

A situação de autocomunicatividade, pulverizada nesta obra de forma esparsa mas consistente, sinaliza o isolamento a que a protagonista se encontra submetida e, em última instância, a afirmação da incomunicabilidade radical dos sujeitos. Sendo o diálogo com os outros muitas vezes inconsequente e inoperante no contexto desta obra - as conversas com as diferentes representações da alteridade deixam a protagonista de

Cortei as Tranças farta (28), aborrecida (28), confusa (34), nervosa (36) e soam-lhe

estranhas (“Eu ficava calada e pensava de mim para mim que aquela conversa cheirava a bafio” (46)) -, Marta encontra em si, ou na voz da sua consciência, a força anímica para continuar, traduzida discursivamente em formulações de carácter imperativo:

- Não tenhas medo, Marta – disse de mim para mim, fechando os olhos para imaginar o rosto da mãe (CT, 49); - Aguenta-te, Marta Joaquina – voltei a repetir em voz alta (CT, 41); Ai, Marta Joaquina, se não te despachas chegas atrasada ao teu emprego!, pensei eu. (CT, 63)

Como facilmente se percebe, a estratégia de auto-nomeação preferencial (Marta Joaquina) serve o intuito de confrontar a identidade do eu-criança com uma nova identidade, a do eu-adulto, e com a sua nova condição social, a de um sujeito com responsabilidades acrescidas perante si e perante os outros. Parecendo acompanhar o crescimento abrupto da criança, o nome próprio também adquire uma outra dimensão - linguística e social -, ajustando-se à nova fase de maturidade da protagonista. O processo metonímico, alicerçado na relação dual entre a parte (o nome) e o todo (a pessoa), parece pois contribuir para a conformação de uma nova imagem social do sujeito.

A relação dialógica entre o eu e o Mesmo, manifestação discursiva privilegiada da autocomunicatividade intratextual anunciada por Aguiar e Silva (cf. Aguiar e Silva, 1986: 307), como vimos, enfatiza justamente o movimento auto-reflexivo que sustenta o processo de autognose. Dialogar consigo próprio53, na acepção bakhtiniana, significa

desdobrar-se funcionalmente em duas pessoas gramaticais e adoptar diferentes pontos de vista, o do eu emotivo e sensível e o do outro, racional e objectivo, que assumem alternadamente quer a função de emissor quer a função de receptor. Daí que as narradoras adolescentes das obras em estudo, como sucede com a protagonista de Cortei

as Tranças, mas também com Mariana em Chocolate à Chuva (28) ou Lote 12-2º Frente (23), oscilem entre o acto de assumir a solidão da própria voz a necessidade de

criarem outro para o diálogo (cf. Rodrigues, 2006: 223), como acontece também em

Flor de Mel (47).

Aliás, o recurso à dialogização do monólogo é uma das fórmulas encontradas para de certa forma suprir ou compensar o déficit de comunicação interpessoal a que as personagens estão sujeitas.

53 A este propósito assinala justamente Paula Morão: “It is (…) common to talk to ourselves as if addressing a second person, a you” (Morão, 2007: 254).

No entanto, outras estratégias atestam igualmente a presença obsessiva do eu no interior dos textos. De entre os procedimentos mais utilizados, o recurso à memória e à retrospecção, bem como a insistente utilização da interrogação retórica instituem-se como dois dos mais declinados nas obras em análise, atestando a necessidade de o eu se projectar no discurso e de encontrar respostas para as questões existenciais e identitárias que continuamente se lhe colocam no presente.